John Watson estava acomodado confortavelmente em sua poltrona no centro da sala de estar do número 221B da Baker Street, solvendo um delicioso chá de hortelã sem açúcar, sem leite e com dois cravos como era de seu gosto e lendo tranquilamente o tabloide de noticias mais recentes de Londres.

Como o médico dedicado que era, um de seus passatempos recorrentes durante os tempos de quarentena era monitorar as novidades sobre a recente pandemia que se instaurara no mundo com a mesma velocidade com que o Usain Bolt percorre uma maratona.

Ele esfregou as têmporas, desanimado.

"Até agora, nada de novo" pensou enquanto vagava os olhos pelas mais variadas notícias

Kanye West havia causado outra confusão em uma casa de shows em Louisiana, Justin Bieber hostilizara mais uma vez uma multidão de fãs desesperados que o esperavam em frente a algum hotel luxuoso em Miami e o Coronavírus continuava dando mais dores de cabeça aos líderes mundiais do que enxaqueca generalizada.

John folheou o jornal com interesse, sendo atraído instintivamente para os artigos de criminologia. Nada.

Nenhum triplo homicídio, nenhum serial killer ou mesmo um simples roubo de supermercado, nada que pudesse acrescentar alguma adrenalina a vida do doutor e seu parceiro excêntrico e único detetive consultor do mundo - como ele mesmo fazia questão de pontuar - Sherlock Holmes. Ao que parece, até os maiores delinquentes haviam cedido ao isolamento social e adiado os compromissos de suas agendas criminosas.

O doutor colocou o jornal de lado, suspirando.

Se as coisas continuassem assim, Sherlock perderia a sanidade. Quantos dias mais o detetive aguentaria ficar preso em casa sem exercitar suas maravilhosas habilidades de dedução? Será que ele enlouqueceria em tempo recorde dessa vez?

— A resposta é sim, John.

O médico deu um pulo de sua poltrona engasgando-se com o chá.

— Sherlock, tá maluco?! Quer me matar do coração?

O cacheado revirou os olhos jogando seu corpo esguio sob a poltrona preta a frente do doutor. John olhou-o dividindo-se entre o espanto e a admiração, jamais entenderia como Sherlock conseguia adivinhar seus pensamentos.

— Eu não adivinho, John. Eu deduzo com excelência, o que acaba sendo fácil já que você é sempre muito óbvio. – disse com desdém visível em sua voz — O que está acontecendo com a classe criminosa dessa cidade? Resolveram se isolar numa colônia de férias no Hawai? – resmungou

John sorriu, esticando as pernas sob o carpete da sala.

— Talvez você deva considerar que a classe criminosa dessa cidade tenha sido extinta desde que um certo detetive começou a bancar o Batman, ou...que grande parte dela tenha mais medo do coronavírus do que de você e por isso não estejam cumprindo os caprichos de vossa majestade. – debochou

O detetive bufou audivelmente, passando as duas mãos pela massa de cabelos escuros e se enrolando com destreza em seu roupão de seda azul como uma criança birrenta.

John observou sua inquietação sem dar sinais de estar surpreso, esse era Sherlock afinal, e John não o amaria tanto se ele fosse diferente.

— Fique calmo, se tivermos sorte logo tudo isso vai acabar e você vai poder vestir sua capa de super-herói novamente. – brincou

Sherlock o encarou chocado, naturalmente ofendido que o médico tenha o comparado com algo tão irracional e ilógico quanto personagens de histórias em quadrinhos.

— Você não entende, John. Sua mente é simplória, limitada e comum. Você se contentaria em continuar nesse apartamento abafado, assistindo documentários do Discovery Investigação ou atendendo aos seus pacientes chatos, naquela clinica chata, repleta de gente chata. Eu não sou assim! Preciso de um caso!

— Sherlock, você resolveu dois casos de relevância razoável há apenas alguns dias!

— Alguns dias? Isso foi há duas semanas, 14 dias, 336 horas e 4,704 minutos, John. Eu estou entediado!

— Ótimo, e o que você sugere para acabar com o tédio, Sr. Sou A Impaciência em Pessoa Holmes?

Ele abriu a boca de imediato com uma aparente resposta na ponta da língua antes que o loiro pudesse interromper.

— Só pra lembrar: Nós não vamos fazer nada que envolva sair por aquela porta e entrar em alguma missão suicida. – pontuou, a voz repleta de autoridade militar

Sherlock fez beicinho, uma ruga de decepção formando-se na junção de suas sobrancelhas e tornando sua expressão ainda mais adorável. O médico conteu um sorriso afetuoso, esforçando-se para não levantar e beijá-lo ali mesmo.

— Nesse caso, sugiro que você me faça chá. Com um pouco de leite e dois cubos de açúcar, do jeito que eu gosto.

John bufou uma risada.

— Não mesmo, já fiz chá hoje e pelo que eu me lembre nós combinamos que eu não seria o único aqui a realizar essa tarefa, lembra?

— John, primeiro esse vírus idiota resolve boicotar o meu trabalho e agora você não quer me fazer chá? – indagou, soando indignado – Está tentando me torturar ou o quê?

— Quem quer torturar quem aí? – uma voz infantil se fez ouvir na escada

John voltou os olhos para a entrada do 221B onde uma figura diminuta de cabelos loiros arenosos e feições tão suaves quanto as de uma boneca de porcelana acabara de surgir. Ela fixou os olhinhos azuis nos dois homens na sala encarando-os com um interesse familiar.

— Oi filha, cansou de brincar lá embaixo?

— Não, mas a vovó Hudson sim e eu fugi de lá antes que ela começasse a chorar assistindo aquelas novelas melosas.

Rosie deu de ombros, jogando-se em sua poltrona três vezes menor que a dos pais.

— Que bom que a brincadeira terminou cedo hoje, assim podemos passar mais tempo juntos.

— Tá brincando né, pai? Nem é tão cedo assim. Já são quase cinco da tarde.

— E como é que você sabe disso?

— Pelo relógio, oras.

Ela apontou para o relógio vermelho em formato de coração, muito fora de moda de acordo com Sherlock que ficava pendurado na parede da sala.

John riu surpreso.

— Não sabia que já estava familiarizada com relógios de ponteiros.

— Eu a ensinei. – gabou-se Sherlock — Aprender as horas num relógio convencional é com certeza bem mais útil do que perder tempo fazendo esculturas idiotas com massinha de modelar, não acha, Rosie? – provocou

John estreitou os olhos em direção do detetive, obviamente entendendo a referência a tarde anterior onde ele havia proposto que os três passassem o tempo confeccionando esculturas, o que resultou em mãos e roupas manchadas com as variadas cores das massinhas de modelar utilizadas e um Sherlock resmungão questionando qual era a lógica daquilo tudo.

— Você só fala isso porque está com dor de cotovelo! – rebateu, recebendo um olhar indignado do detetive — Pode adimitir, Sherlock. Vamos combinar que aquele cisne que você TENTOU fazer com biscuit branco mais parecia um patinho feio.

Sherlock mostrou-lhe a língua e virou-se para a TV.

Rosie gargalhou, abafando o riso numa das mãozinhas, o rostinho gorduxo ficando vermelho de diversão.

— Ai, seus chatos! Eu acho as duas coisas muito úteis se querem saber. – ela revelou, os lábios se alargando num sorriso banguela devido a perda recente de outro dente de leite — Além disso, é bom que os dois estejam aqui na sala, preciso mesmo perguntar uma coisa pra vocês. – disse, endireitando-se na poltrona

O médico sorriu.

Rosie era uma garota naturalmente esperta e recentemente atingira uma idade em que parecia ter uma curiosidade genuína sobre tudo e todos, portanto vinha sendo comum que ele e o detetive fossem diariamente interrogados com as mais diversas perguntas, desde "Por que o céu é azul?" a "Quem desliga o sol quando é de noite?", nada parecia saciar a sede de sua filha por respostas e mesmo que as vezes as perguntas não fizessem o menor sentido, ele se divertia em respondê-las.

— Pode falar. – disse, assumindo uma já manjada postura didática

Mas nada poderia prepará-lo pro que veio a seguir.

— O que é sexo?

John arregalou os olhos, os cravos do chá entalaram em sua garganta e a xicara de porcelana que segurava em mãos agora se resumia a cacos confusos espalhados pelo tapete da sala tão grande era seu espanto.

Rosie o observou com os olhinhos brilhando e voltou-se para Sherlock que sustentava uma expressão de profunda calmaria no rosto proeminente.

— O que será que deu nele?

O detetive de cabelos cacheados ergueu os olhos felinos para a pequena.

— Não sei. Mas deve ter sido algo muito grave, pois ele acaba de quebrar a porcelana francesa do enxoval de casamento da Sra.Hudson.

— A vovó não vai ficar nada contente com isso. – a garotinha afirmou, balançando a cabeça negativamente – Ei, papai? O que há?

— R-Rosie? O-o que foi que você disse?

— Eu perguntei o que era sexo.

John arregalou ainda mais os olhos e se inclinou para frente tossindo descontroladamente, aparentemente ainda entalado com os cravos do chá.

— John, se continuar arregalando os olhos dessa forma, além de assustar a Rosie suas córneas vão começar a secar e você sofrerá de pelo menos cinco minutos de efeitos colaterais como ardência nos olhos, aumento de sensibilidade, vermelhidão nos globos oculares-

— Sherlock, por Deus, eu sei o que acontece quando os olhos ficam abertos por muito tempo! Eu sou médico, esqueceu?

— Claro que não, sua obsessão com aquele vírus estúpido jamais me deixaria esquecer disso.

— Ei, alguém aqui vai me dizer o que é sexo ou eu vou ter que perguntar pra vovó Hudson?

— NÃO! – os dois exclamaram ao mesmo tempo

— Tá bom, então podem ir falando.

John olhou para o companheiro como um politico olharia para um eleitor ao pedir votos. O cacheado deu de ombros, voltando sua atenção ao noticiário da BBC onde um documentário a respeito do sistema solar aparentemente parecia ser bem mais importante do que explicar o que era sexo pra sua filha de apenas seis anos de idade.

O médico olhou-o irritado soltando uma exalação trêmula antes de se voltar para a menina, encarando seus olhinhos de um azul cinzento furiosamente curiosos muito parecidos com os seus.

— Rosie, querida, sente-se aqui. – indicou o sofá ao lado para a filha que o obedeceu prontamente

Limpando audivelmente a garganta, ele começou.

— Primeiro, precisamos estabelecer que sexo é algo que se faz quando se tem maturidade, responsabilidade, prudência...

— E órgãos genitais.

— Sherlock!

— O que...? Ah, sim! Preservativos também Rosie, nunca se esqueça dessa parte.

O doutor agora mais se assemelhava a tomates extremamente maduros em época de colheita enquanto o companheiro não parecia nem milimetricamente envergonhado.

— Você quer parar de me interromper??

O detetive passou, teatralmente, um zíper nos lábios e calou-se.

John respirou fundo e começou o conhecido monólogo constrangedor sobre sementinhas, plantinha do amor e todo aquele papo que os pais temem contar aos filhos como o diabo teme a cruz.

— Entendeu, Rosie?

A menina balançou a cabeça afirmativamente parecendo menos confusa mas ainda assim encabulada.

John suspirou aliviado, olhando para o parceiro que comprimia os lábios, claramente tentando conter uma crise de risos.

— Posso saber qual é a graça?

— Quanto blá, blá, blá! – caçoou Sherlock – Sementinhas, plantinha do amor... Isso foi uma aula de educação sexual ou de como plantar batatas?

O médico levantou-se jogando o Jornal na poltrona e voltando-se para o homem sentado a sua frente.

— Ok, Sr.Sou A Perfeição Encarnada Holmes, você consegue fazer melhor que isso? – desafiou

— Pode apostar que sim, Sr.Não Aceito Ser Criticado Watson.

Rosie rolou os olhos como fazia sempre que seus pais começavam a implicar um com o outro.

— Podem parar, essas briguinhas só fazem vocês parecerem ainda mais perdidamente apaixonados um pelo outro. – exclamou a garota como se fosse óbvio

— Haha! Eu não sou perdidamente apaixonado pelo John. – Sherlock disse, teimosamente

O médico arqueou as sobrancelhas, as mãos apoiadas nos quadris enquanto o encarava com um sorriso inquisitivo nos lábios.

A expressão do detetive amoleceu como um sorvete sob um sol escaldante.

— Tá bom, talvez eu seja um pouquinho.

E antes que Rosie se desse conta, eles estavam sorrindo apaixonadamente um para o outro.

"Foi aqui que estava acontecendo uma discussão há... sei lá, dois minutos atrás?" ela pensou, rolando os olhos mais uma vez

— Olha só, eu acho que entendi tudo, mas eu tenho outra pergunta.

— Se você vai perguntar mais sobre esse assunto, sugiro que deixe isso pra quando arranjar um namorado ou daqui há uns quarenta anos que é mais ou menos quando o seu pai já vai ter se recuperado do susto de hoje.

O loiro riu, dando um tapinha divertido no braço do detetive.

— Namorado? Eca, que nojo! – Rosie protestou — Eu só quero saber como colocar isso que o papai falou no meu papelzinho.

— Como é? – eles indagaram em unissono

— É que um homem do serviço de saúde passou hoje na casa da vovó Hudson e entregou essas fichinhas pra gente preencher e eu acho que o que vocês disseram não vai caber aqui.

Ela estendeu um cartão azul bebê para os pais, ambos se encararam brevemente em confusão, os cenhos franzidos enquanto se aproximavam para ler o que estava escrito.

No centro da folha, abaixo da caligrafia bem desenhada de Rosie e do brasão do Serviço de Vigilância Sanitária de Londres, se lia algumas informações sobre o novo coronavírus e instruções para que se preenchesse corretamente o cartão com alguns dados pessoais afim de ajudar no monitoramento da população.

Não foi preciso procurar muito para encontrar a palavra SEXO bem impressa em grandes letras garrafais emoldurada ao lado das opções "Feminino" e "Masculino".

John olhou para Sherlock, Sherlock olhou para John, a confusão se dissolveu no ar e ambos explodiram numa risada alta, espontânea e duradoura que inundou toda Baker Street, divertiu os poucos pedrestres que passavam pela rua e provavelmente pôde ser ouvida por toda a vizinhança.

Rosamund Mary Watson Holmes nunca entendeu o porque dos risos, só sabe que, quando deu por si, estava rindo juntamente com os dois contagiada pelo arroubo de alegria que inundou o 221B naquela terça feira ensolarada em plena quarentena.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.