A Promessa

Tic Tac Tic Tac.


Um sorriso macabro estampava o rosto do irmão, a roupa dessa vez, social e eu não conseguia imaginar qual seria a ocasião. Será o baile? Estávamos desacordados por quantos dias? Três? Dois?

A dor de cabeça se intensificou voltando a lembrar do que ele dissera.

Mamãe.

Mas que diabos, é claro que eu tinha saudades da mamãe. Ele não?

Lembrar que Daniel poderia ser um assassino em série, sem escrúpulos ainda era uma novidade e eu não conseguia imaginá-lo sem remorso por não sentir falta de nossa mãe. Abri a boca para falar, mas minhas mãos foram rápidas para me lembrar do que seguravam. Baixei os olhos e não fui capaz de conter o grito. Não fui capaz de me equilibrar nos joelhos e cai para trás, me afastando o quanto poderia do corpo duro e imóvel no chão. O corpo que eu estava segurando, que eu achava que era Maxon mesmo com minha mente enviando sinais de alerta ao meu corpo. As lágrimas desceram com facilidade, o soluço fugiu de minha garganta e eu achei que fosse explodir de dor, de angústia, de desespero.

Era o corpo da minha mãe ali.

Era exatamente ela.

Seu rosto fino, seu nariz empinado, seu queixo delicado e rugas nos cantos dos olhos. Os restos de cabelos derramados no chão. A roupa – que eu me lembrava bem – quando ela havia saído para a última sessão de quimioterapia, estava desgastada. Meu pai havia dito que ela estava em um lugar melhor, um lugar tranquilo e eu não tinha tanta certeza se ele havia me contado a verdade. Porque aqui? Porque deixá-la aqui? Olhei para Daniel e o vi se divertir com aquela cena, me deixando mais desesperada.

Maxon, do outro lado do quarto, sentou e me encarou com seus olhos angustiados. Da mesma forma que me olhara quando me viu chorando pela primeira vez, quando me ouviu falar de minha mãe e da imagem de ver meu corpo ao lado dela. Será aquilo um sonho? Um terrível pesadelo que eu não iria acordar nunca mais? Será que era o inferno e que eu já poderia está morta?

Por favor, alguém me mate outra vez.

— Sei que não avisei por isso. Mas... – Daniel disse e parou pensativo. – Eu deveria ter falado? Não. Assim acabaria com a graça do jogo.

— Por que? – perguntei entre as lágrimas, encarando o corpo em minha frente. – Porque você está fazendo isso, Daniel?

— Karlla! Você precisa me agradecer! Depois de tudo o que aconteceu, você ficará famosa também. Imagine. – ele disse olhando para frente erguendo as mãos como que imaginando algo. – O final perfeito para o casal.

— Do que você está falando? – gritei.

— Confesso que antes, eu queria trazer o jogo a realidade. Mas agora, percebi que as pessoas gostam mesmo desses reality. Então, como fui muito esperto consegui gravar boa parte de tudo o que aconteceu. – Daniel sorriu e encarou Maxon por um instante. Maxon não tirava seus olhos de mim. – O mocinho que muda completamente por uma garota, que aos olhos de qualquer um, não valia nada. – enjoou tomou conta do meu corpo, meu estomago rolava e rolava a ponto de trazer de volta tudo o que eu havia comido – ou não comido. Daniel continuou sem se importar com suas palavras. – O relacionamento dos dois, o primeiro beijo no teatro. Até que aquilo foi bem romântico. – disse para Maxon. – Mas o que realmente nos deixou animado foi a primeira vez que a mocinha se viu em um jogo. – Daniel imitou a voz de narradores de filme e voltou a olhar para mim. – A mocinha correndo para suas amigas, a mocinha chorando nos braços de seu amado e principalmente, a mocinha deixando-o duro no banheiro do bar. – Daniel balançou a cabeça negativamente estalando a língua. – Papai não ficará orgulhoso disso Karlla. Mas com certeza, muitas pessoas irão achar excitante.

— Você estava me espionando? – gritei incrédula, ainda sem acreditar, sem aceitar que tudo isso poderia está acontecendo. Não comigo.

— Ora, você sempre soube que gostei de filmes caseiros. E espionar suas amigas. – Daniel respondeu com um sorriso que me deixou tonta, engoli sentindo a bile vir até a garganta.

— Seu infeliz. – Maxon exclamou virando-se para Daniel, se erguendo apoiando na parede mostrando suas roupas ainda sujas de sangue e foi ali que percebi o corpo que havia ao lado de Maxon.

O corpo de uma mulher que eu havia visto uma vez, mas não lembrava aonde ou quando.

— Você não percebe o que está fazendo com ela? – ele gritou apontando para mim. – O que você quer? Machucá-la? Sim, você está conseguindo muito bem. E no final? O que sobrará? Karlla sempre esteve ao seu lado, sempre te amou.

— Eu nunca pedi que ela me amasse. – Daniel gritou de volta, devolvendo com o olhar o mesmo ódio que encontrava nos olhos castanhos de Maxon. – Se ela não tivesse nascido minha vida seria melhor.

Oh. Meu. Deus.

— Como você pode ser tão desumano? – Maxon perguntou indignado, fazendo Daniel rir e nenhum dos dois desviavam seus olhares.

— Desumano? Pergunte a ela o que é ser desumano. Pergunte o que ela fez para nossa mãe quando nasceu. – Daniel disse, me deixando cada vez mais angustiada.

As palmas das minhas mãos voaram até meus ouvidos impedido que aquelas palavras entrassem em mim.

— Ela fragilizou nossa mãe. Ela a fez se cansar para cuidar de um bebê!

— Você está com ciúmes! – Maxon disse. – Você nunca aceitou ser trocado por um bebê delicado, que precisava de mais cuidados. Você sempre teve inveja dela e pode acreditar, eu reconheço muito bem quando vejo seu rosto. – Daniel riu, passou a mão no rosto e se virou para mim.

— Não sei porque estou discutindo com ele. – deu de ombros e revirou os olhos. – Hoje, todo esse sofrimento terá fim irmãzinha. Não precisa se angustiar.

Daniel se virou e fechou a porta ao passar, mas esqueceu a luz ligada e eu não tinha tanta fé que era para nosso benefício. Meu corpo estava rígido, completamente sem força para sair do lugar. Meus olhos só viam uma única coisa que era o corpo da minha mãe e minha cabeça... Ah, minha cabeça parecia explodir a qualquer momento.

Era apenas o tic-tac tic-tac tic-tac.

Eu não poderia acreditar que Daniel havia nos espionado durante todo esse tempo. Me sentia – além de traída – uma idiota que fazia exatamente o que ele queria que fizéssemos. Quem garante que não foi Daniel ou algum comparsa que indicou o Hunter’s Moon? Quem garante que não foi ele que matou Tay, Lethicia e Dylan? Quem me garante que isso teria fim? Será que, quando Daniel finalmente me visse morta, iria parar com essa loucura? Será que ele iria se contentar?

Eu precisava sair dali com Maxon, mas não tinha tanta esperança. Precisava contar aos outros e principalmente a polícia o que estava acontecendo, mas não tinha certeza se ajudaria. Minha cota de fé havia acabado no momento em que toquei no corpo de minha mãe. Minha cota de coragem havia evaporado junto com minha força de vontade e pela primeira vez na vida, me vi desistindo.

Não tinha mais jeito.

Não tinha saída.