A Pergunta

Um passo pra frente, dois passos pra trás


“... Onde é que eu tô?”

Se pergunta o rapaz que andava pelas ruas de só Deus sabe onde, suas pernas já estavam doendo e suas costas pediam socorro de carregar tanto peso por tantas horas seguidas. O menino de bandana desbravava aqueles quarteirões de concreto como se fossem uma floresta selvagem, como de costume, ele estava perdido, mas preferia que estivesse perambulando por um matagal do que pela cidade, faróis e sinalizações o deixavam muito mais inquieto do que a natureza calma que o confortava com o som dos bichos.

Olhava de um lado para o outro, adentrando mais e mais no que parecia ser uma cidade grande. Mas torcia para que estivesse em Tóquio, que era o seu real destino. Especificamente à caminho da residência dos Uryuu.

— Deixa eu ver... - ele pensa em voz alta, enfiando a mão no bolso e retirando dali um papel dobrado. Um mapa, com anotações feitas pela garota que ansiava pelo seu encontro. Akari, delicada e atenciosa, criou o costume de personalizar mapas para o namorado, escrevendo mensagens e desenhos de porquinhos com canetas coloridas ao redor, detalhes que sempre arrancavam um sorriso do jovem rapaz - Não devo estar tão longe.

Contanto que encontrasse a casa de Akari até o dia de amanhã, que era o dia marcado para o seu encontro, seria lucro. Por isso ele se certificou de sair de casa com uma semana de antecedência, apesar de muito tonto, ele se conhecia como ninguém. Rodou metade do Japão até que chegasse minimamente perto do seu destino, e se tratando de Ryoga, aquilo era uma vitória.

O menino porco se aproximou de uma senhora sentada no ponto de ônibus que parecia muito simpática, e perguntou:

— Com licença, por acaso aqui é Tóquio?

A idosa se assusta, olhando para aquele rapaz todo sujo e suado da cabeça aos pés, e se solidariza.

— Sim, meu jovem. Aqui é Nerima – ela alega, arrancando um sorriso vitorioso e quase emocionado dele – Precisa de ajuda, querido?

— Ai, graças aos céus! - ele junta as duas mãos, pedindo para que as divindades o guiassem – E sabe como é que eu chego aqui? - ele mostra o mapa para a senhora, apontando para a casa circulada em canetinha cor-de-rosa com uns corações em volta.

— Claro! É só seguir reto naquela direção - ela aponta para a esquerda – Quando chegar perto de uma pizzaria, vire à direita e depois à direita de novo. Em vinte minutos você deve chegar.

— Muito obrigado, senhora!

— Imagina, querido! Aqui, tome – ela abre a bolsa e tira um pacote de biscoitos, estendendo para ele com muita ternura no olhar - Você parece estar com fome.

— Ah, imagina! E-Eu não posso aceitar...

— Por favor, aceite! - ela insiste – Um rapazinho como você precisa ficar forte.

Sem mais relutância ele aceita, pegando o pacote e colocando na mochila. Um ônibus chega e ela se levanta.

— Preciso ir, querido. Boa sorte!

— Deixa que eu te ajudo – ele segura a mão dela e a ajuda a subir as escadas do ônibus.

Acenam um para o outro e ela se vai junto com o veículo. Ryoga olha para o lado, olha para o outro, e uma interrogação é plantada na sua cabeça.

— Onde é que ela disse pra eu ir mesmo?... - coça a nuca, pensa mais um pouco, e se decide – Acho que é pra lá - ele obviamente segue na direção oposta que lhe foi instruída.

Abre o mapa que está em suas mãos mais uma vez e procura uma anotação em específica no canto da página que sempre lhe arrancava um sorriso sincero e um suspiro encantador.

“Querido Ryoga, para comemorar nosso primeiro ano de namoro, quero te encontrar no parque próximo domingo para um piquenique romântico! Me encontre na minha casa às 14h para irmos juntos. Fiz esse mapa para você não se perder. Mal posso esperar, meu porquinho! Um beijo da sua Akari

— Ai, Akari... - ele pensa alto, encantado por aquelas palavras doces escritas em letras cursivas, sentia vontade de abraçar aquele pedaço de papel como quem abraçasse a própria garota – Como você é perfeita...

Como estava escrito no papel, estava para completar um ano desde que a vida do menino se tornou mais doce. Apesar de sua inegável melancolia provocada por uma maré de azar que enfrentou nos últimos anos, ele finalmente encontrou um lugar de conforto, onde se sentia seguro e amado.

Akari, assim como o significado de seu próprio nome, era uma luz no fim do túnel para o menino porco. E era impressionante como ela conseguia fechar todos os buracos de seu coraçãozinho de vidro, acalentando e desejando-o, não apesar, mas sobretudo por sua maldição. Ryoga sempre foi carente e inseguro, mas isso se agravou no momento em que caiu na fonte amaldiçoada de Jussenkyo, que definiu os próximos anos de sua vida e o fez passar por uma série de humilhações no corpo de um pequeno porco preto. A obsessão da menina por porcos, que já simpatizava com o rapaz, fez ela se apaixonar perdidamente por ele.

Precisaram de alguns meses se conhecendo melhor para que engatassem de vez um namoro, e óbvio que ela foi quem tomou a maior parte das iniciativas, afinal Ryoga costumava assumir uma postura tímida demais, quase submisso. E depois dela lhe roubar seu primeiro beijo, ele a pediu em namoro segundos depois por impulso. Era um rapaz emocionado. Mas ela felizmente aceitou a pulos de alegria.

E agora, estavam completando um ano desde o acontecido que virou a vida do rapaz, outrora desafortunado, de cabeça para a baixo, ou melhor, para cima, quase lhe dando a sensação de que poderia experienciar os prazeres da vida como um garoto normal.

Era simplesmente perfeito. Ela era perfeita.

Tudo estava perfeito.

Ryoga vira mais um quarteirão e acaba caindo numa ruazinha mais urbanizada, caindo em si de que definitivamente tinha seguido as instruções errado mais uma vez, já que o bairro de Akari era bem menos pavimentado.

— Ai, porcaria! - ele amaldiçoa as circunstâncias, sem deixar de seguir em frente. Gruda os olhos no mapa mais uma vez e tenta se localizar, sem sucesso - Não deve ser tão longe...

— Hortênsias na promoção! Repetindo, hortênsias na promoção!

Uma voz cativa a sua atenção, fazendo-o perceber que estava ao lado de uma floricultura. Aquilo lhe faz ter uma ideia.

“Acho que a Akari ia gostar de receber flores amanhã!”, pondera, decidido a entrar na loja sem se ligar de que talvez as flores não resistam até o dia seguinte. Ou sabe-se lá quando ele chegaria ao seu destino.

Adentra a floricultura um pouco envergonhado ao perceber que atraiu os olhares das vendedoras. Começa a procurar de um lado para o outro algo que talvez fosse do agrado da namorada. Akari era bem feminina, então talvez rosas fossem o bastante.

Procurava um buquê de rosas quando um tom vibrante de amarelo fisga o seu olhar, e faz seus olhos brilharem. Era um buquê de girassol. Muito bem enfeitado com um laço azul e ornando com pequenas florezinhas do campo, mas sem tirar o destaque daquelas grandes flores amarelas. Ryoga para, ficando de frente para aquele buquê, lhe arrancando um suspiro melancólico e o distanciando da realidade.

— Olha P-chan, girassóis!

Akane se agacha para admirar as flores mais de perto, passou os dedos de uma mão nas pétalas, enquanto a outra segurava o pequeno porquinho de estimação. Ela tinha o costume de levar o bichinho para passear no centro, mas bem, era uma criaturinha muito pequena, e por muitas vezes acabava sendo chutado pelas pessoas na rua, então ela o carregava no colo como um bebê. E ele estaria mentindo se dissesse que não gostava de ser tratado com tanta delicadeza.

Delicadeza essa com a qual ele admirava o rosto da menina, e nossa, COMO ela era linda. Ainda que fosse um porquinho preto, quem olhasse conseguiria ver suas bochechinhas vermelhas. Akane estava encantada por aquelas flores enormes, seus olhos castanhos brilhavam e ela suspirava, provavelmente presa em fantasias.

— São lindos, né? É minha flor favorita – ela conversa com o porco como quem conversasse com uma pessoa, aquela criaturinha era o seu maior confidente, e secretamente seu maior admirador – Eu queria tanto que me dessem um buquê desses...

A forma doce como ela proferia aquelas palavras jogou o porquinho nas nuvens. Não conseguiu evitar de se imaginar como homem, entregando um buquê de girassóis para ela como ela sonhava, a fazendo feliz como ninguém nunca antes fez. Seria perfeito...

Mas ele era inseguro demais pra isso. Provavelmente não saberia o que dizer, começaria a gaguejar e sairia correndo. E ela com certeza iria preferir que Ranma lhe desse aquele buquê.

A menina recompõe a postura e segue seu caminho, erguendo o porco para olhá-lo naqueles olhinhos inocentes.

— Mas os homens são muito clichês, sempre dão rosas – comenta e depois ri consigo mesma, ajustando P-chan em seu colo e continuando o passeio.

“Akane...”

No momento em que o rapaz bateu o olho naquele buquê de girassol, foi arremessado para um lugar aconchegante em sua mente, que ele tentava trancar às sete chaves. Pôde imaginar Akane sorrindo no momento em que visse aquelas flores. Aquele sorriso dolorosamente encantador que o tirava do sério, acompanhado daquelas bochechas rosadas terrivelmente adoráveis, aqueles olhos castanhos marejados de emoção, e uma risada doce, hipnotizante.

“Droga...”

É... Talvez as coisas não estivessem tão perfeitas assim.

Mais uma vez o jovem porco estava diante do seu mais pavoroso conflito interno, sendo consumido por aqueles sentimentos que não iam embora de jeito nenhum, ainda que ele tentasse com todas as forças apagar aquela chama. Nem mesmo um afastamento que já fazia uns meses, coisa que seu péssimo senso de direção favorecia bastante, foi capaz de fazê-lo parar de pensar na menina. Ela estava presente em todos os lugares. No céu azul que lembrava a sua cor favorita, no cheiro das flores que lembravam a fragrância do seu perfume, até no quentinho da fogueira que lembrava o conforto do seu colo

Antes mesmo de selar um relacionamento com Akari, ele já estava muito bem decidido a esquecer Akane, pois a conhecendo como ninguém, já estava claro que seu coração pertencia à Ranma. Mas agora, mais do que nunca, ele precisava ser homem e honrar seu compromisso. Como ele poderia simplesmente nutrir aquela paixão avassaladora por Akane, tendo Akari ali com ele? Como?

Sentia-se um completo canalha. Um infiel. Um monstro.

“... Eu deveria morrer de uma vez...”

Todos aqueles sentimentos provocados por um simples buquê de flores lhe arrancaram lágrimas dramáticas que chamaram a atenção das atendentes.

— Está tudo bem, senhor? - pergunta uma delas, que se assusta ainda mais ao ver que o garoto estava soluçando de tanto chorar.

— Eu... - ele rapidamente enxuga suas lágrimas, embora elas ainda caíssem - Eu quero um buquê de rosas, por favor!

A atendente, sem entender muito bem, apenas sorriu desconfortável e foi buscar o que lhe foi pedido. Ryoga vai até o caixa, paga o buquê e o leva em seus braços, seguindo o seu caminho sem nenhum direcionamento.

Ele finalmente consegue parar de chorar, olha para aquelas rosas e tenta mentalizar o rosto de Akari. Respira fundo, e torce o nariz.

“Eu vou te fazer feliz, Akari”, toma aquilo como se fosse um mantra, olhando para o céu e pedindo por uma ajuda divina. “Independente de tudo... Eu vou me tornar o homem que você merece! Nem que eu morra!”.

E lá estava ele, dramático como sempre, tratando aquela batalha de sentimentos confusos como se fosse uma questão de vida ou morte. Se perde por entre aqueles quarteirões, tentando incansavelmente encontrar seu caminho.

Mas embora Ryoga fosse um garoto perdido por fora, era muito mais perdido por dentro.

—--

— Vem logo, Ranma! Deixa de ser bobo!

Akane chama pelo seu noivo, que se apoiava nas barras laterais para não desequilibrar. Na sua cabeça, xingava a si próprio de tudo quanto é nome por ter sugerido um encontro no clube de patinação mesmo sem saber patinar. Ele pensou que patins de rodinhas seriam mais fáceis de usar do que patins de gelo, por alguma razão.

— Já vai, caramba! - ele resmunga, tentando lentamente tiras as mãos da barra – Fala sério, como você consegue andar nessa- AH! - ele se desequilibra no momento em que solta o apoio e cai de bunda no chão, fazendo Akane, e as crianças ao redor, gargalharem de rir - Tá rindo do quê?!?

Akane se delicia ao vê-lo bufar de raiva, tão desengonçado quanto um garotinho, tentava se levantar mas não pegava equilíbrio por nada nesse mundo. E quanto mais vergonha ele sentia, mais ele caía, apelando pra xingamentos de baixo calão.

— Por que você não deixa de ser teimoso e segura na minha mão? - ela estende a mão, oferecendo ajuda a ele pela terceira vez. Mas ele era orgulhoso demais para aceitar.

— Eu já disse – ele começa, com a cara emburrada e ainda espatifado no chão - um cara como eu precisando da ajuda de uma menina pra andar de patins é muito mico!

— “Um cara como eu” - ela o imita, debochando com uma voz pomposa – O que seria um cara como você?

— Sexy e viril – afirma, muito confiante, embora meio brincalhão - Vou parecer um idiota sendo carregado assim.

— Bom, tenho péssimas notícias: você tá parecendo um idiota – ela ri.

— Cala a boca! - ele faz um esforço para ficar de joelhos – Eu vou conseguir... É só fazer um jeitinho, e... AI!! - ele cai, dessa vez de cara, as crianças riem em coro – Eu vou matar essa pirralhada!

— Bom, já que te incomoda tanto isso de ser um machão sendo carregado – ela se agacha, se aproximando mais dele, que estava praticamente escorado na pista – Por que não vai até o banheiro e vira menina?

Ranma apoia os braços no chão e se espanta ao ver o quão indiferente Akane estava ao sugerir aquilo.

— Mas... - ele começa, sem saber muito bem como se expressar dali em diante – Mas é um encontro...

— E daí? - ela levanta uma sobrancelha, sem entender muito bem o ponto dele.

A verdade é que nem Ranma conseguia explicar direito o seu ponto, parecia mais uma questão irracional. Ele próprio havia pensado nessa possibilidade, mas sequer cogitou em pôr em prática. Estavam em um encontro, e dentro dele havia a inquietação de que talvez a parceira com quem estivesse iria gostar que ele mantesse a forma masculina, sobretudo em ocasiões como aquela.

Mas a forma como Akane propôs que ele virasse mulher no meio de um encontro, caso ele se sentisse mais confortável daquela forma, o fez sentir uma mistura de confusão e um inexplicável alívio.

— Você não liga mesmo? - pergunta, meio encolhido.

— Não, bobo – reafirma.

Akane estende as mãos para ele e dessa vez ele as segura, se levantando com cuidado, ainda que as pernas estivessem muito bambas. Eles patinam juntos até a entrada da pista, onde Ranma sai por um portãozinho e se senta, aliviado, num banquinho para retirar os patins.

— Vou ficar te esperando – ela diz, acenando para ele e voltando a rodopiar na pista. Ela era muito boa patinando, o que era surpreendente para alguém desajeitada como ela.

Com certa ansiedade, Ranma tira os patins dos pés e se delicia ao sentir terra firme novamente. Não queria deixar a noiva esperando por muito tempo, então pôs os sapatos e foi até o banheiro, se distraindo um pouco por toda aquela decoração de led.

O clube era um lugar bem agradável, esses espaços de patinação se tornaram uma febre nos últimos anos, sendo uma programação escancaradamente jovem. A pista parecia mais uma balada, com um globo de luz no teto, luzes pisca-pisca de led e um DJ tocando as músicas mais chicletes possíveis.

Ranma entra no banheiro e se surpreende por ele também ser pouco iluminado e decorado com leds, mas não se dá ao luxo de ficar admirando, pois sua acompanhante o aguardava. Pega um vaso que estava no chão, o enche com água da pia, e se dá um banho da cabeça aos pés, fazendo os outros que estavam no recinto se espantarem. E ficaram mais assustados ainda quando aquele rapaz viril se tornou uma linda moça com seios demarcados pela roupa ensopada. Ele também aproveita para se admirar um pouco no espelho, ajustando a franja úmida e fazendo carão, sentindo-se uma gracinha.

Sai do banheiro, volta para o mesmo banquinho onde colocavam os patins, e acabou se distraindo com a cena diante de seus olhos. Akane não era graciosa, mas na pista ela parecia uma princesa. Ela patinava com muita agilidade, até rebolando e se remexendo um pouco de acordo com a música. Vê-la confortável assim era muito raro, ela claramente estava se divertindo, sem se preocupar com nada. Aquilo estava chamando a atenção de muitos rapazes, dentro e fora da pista. E óbvio, Ranma nem percebeu que estava suspirando, encantado, apoiando as bochechas com as duas mãos.

Akane olha de relance para os bancos e avista Ranma, parado e hipnotizado como um bobo. Patina em sua direção, fazendo-o acordar do transe.

— Tá esperando o quê? Vem logo!

Ranma ajusta rapidamente os patins nos pés e se levanta com dificuldade. Akane, que estava na beira do portãozinho, estende as mãos para Ranma e ele as segura com firmeza, ficando de frente um para o outro. Akane o guiava, de costas, enquanto ele patinava para frente sem conseguir tirar os olhos dos próprios pés.

— Não fica com medo, eu não vou te deixar cair – ela diz, com ternura.

— E-Eu não tô com medo! - Ranma acaba gaguejando, ainda muito envergonhado por toda aquela situação. E fica ainda mais tímido quando olha pra Akane, que esbanjava um sorriso gentil e um olhar amoroso - É que... I-Isso é muito difícil...

— É só pegar o jeito – a forma como ela estava tratando Ranma com muita delicadeza, e certo carinho, o fez se derreter todo por dentro – Isso, não olha pra baixo, olha pra mim.

Aquilo o fez perceber que, de fato, sempre que ele olhava pra baixo com medo de cair, era aí que ele caía. E a chance de olhar para Akane fixamente, sem parecer estranho pois tinha um propósito, era muito tentadora.

Ele então agarrou a oportunidade e se permitiu não tirar os olhos dela, sem desviar o olhar com vergonha de parecer esquisito, deixando suas pernas seguirem o fluxo por conta própria enquanto ele admirava cada centímetro do rosto de Akane. Do cabelo negro, meio azulado, que dançava com a brisa, aos olhos castanhos semicerrados, às bochechas rosadas, até chegar no sorriso tímido. Ela não parava de sorrir, um tanto orgulhosa com o progresso dele, um tanto sem jeito ao vê-lo não desgrudar os olhos dela com certa ternura.

Ela também aproveitou a chance de admirar o rosto dele com a desculpa de que era uma simples ajuda para que ele se concentrasse melhor. Os olhos negros dele brilhavam, refletindo aquelas luzes de led que mudavam de cor de acordo com a batida da música, vez ou outra ele deixava escapar um sorrisinho envergonhado, expondo aquelas covinhas tão fofas que deveria ser um crime tê-las. A feição feminina de Ranma era mais delicada, assim como seus lábios, que pareciam mais rosados, e apesar de estar escuro, ela podia jurar que ele estava com as bochechas tão vermelhas quanto o seu cabelo.

Sem que percebessem, Ranma já estava patinando com muito mais equilíbrio, sem tremer as pernas nenhuma vez.

— Viu como você consegue?! - Akane o parabeniza, soltando uma mão precocemente.

— Ei, devolve aqui! - ele implora, já ameaçando se desequilibrar de novo caso não a segurasse com as duas mãos. Akane revira os olhos, rindo dele, e o segura mais uma vez.

— Uma hora você vai ter que patinar sozinho.

— É, mas por enquanto eu preciso de você.

Começa a tocar uma música um pouco mais lenta, um pouco mais romântica, favorecendo bastante aquele clima entre os dois. Aos olhos de todos na pista, eram só duas amigas patinando juntas, mas para eles, aquele parecia ser o mais perto que já chegaram de estreitar os laços.

Ranma, que antes apenas segurava as mãos de Akane com força, entrelaçou os dedos nos dela, sem que desviasse o olhar daqueles olhos castanhos, agora surpresos com a iniciativa do noivo. Ela não consegue conter um sorriso tímido, e começa a rir baixinho. Ele ri junto com ela, ambos completamente sem jeito e cientes do que estavam experienciando. Não conseguiam nem imaginar quanto tempo desejaram estar assim, de frente um para o outro, com as mãos entrelaçadas e perto o suficiente para sentirem que quebraram mais uma barreira.

Levavam seus corpos pra lá e pra cá no ritmo da música, como uma valsa, e a pista era o seu salão. As músicas foram trocando, as pessoas passando, e nada os tirava daquele transe, embriagados pela adrenalina que era estar agindo como um casal de verdade.

Quando as pernas de Akane começaram a doer, ela anuncia:

— Cansei...

— Eu também, tô morto.

— Vamos sair? - ele faz que sim com a cabeça e eles se retiram da pista, sentando lado a lado no banquinho onde tirariam seus patins.

De repente, uma figura desconhecida senta ao lado de Akane numa distância um pouco suspeita.

— E aí, tudo bem? - pergunta o rapaz, que parecia ter vinte e poucos anos, e se inclinava um pouco para falar com Akane. Ela obviamente já ficou desconfiada, e Ranma nem se fala, torcendo o nariz instantaneamente.

— Tudo... Quem é você? - Akane pergunta, meio seca.

— Meu nome é Touma – ele se apresenta, tinha uma voz muito confiante, e a forma como ele gesticulava quase tocando em Akane escancarava suas intenções - Olha, eu vi você patinando. Você patina muito bem.

— Obrigada... – ela estava visivelmente desconfortável.

— E não vou mentir, te achei muito linda – dispara, sem nenhuma vergonha. Ranma lança um olhar amedrontador e Akane junta as sobrancelhas na hora, arregalando os olhos quando ele se aproximou ainda mais - Não quer ir ali comer alguma coisa?

— Não, obrigada.

— Ah, vai! Eu pago – ele insiste, violando o espaço dela mais uma vez e colocando a mão em seu ombro.

— Ei, otário! - Ranma se intromete, levanta e afasta o homem, ficando entre ele e Akane - Não tá vendo que ela tá acompanhada?!

Tanto Akane quanto o rapaz arregalam os olhos. Akane de maneira positiva, achando até romântico da parte de Ranma que ele a defendesse, já o outro, fica espantado, afinal estava sendo intimidado por uma garota tampinha enquanto tentava azarar a suposta amiga dela.

— Calma gracinha, o meu amigo também gostou de você! - ele responde, descaradamente, apontando para um outro rapaz que os espiava de longe - Você pode vir também e aí nós quatro temos um encontro duplo, o que acha?

Ranma levanta uma sobrancelha e faz uma cara cínica, sem nem pensar muito, ele segura a mão de Akane de forma muito amorosa, exibindo como se fosse um troféu. Akane se surpreende mais uma vez, agora mais tímida, sentindo o coração palpitar.

— Eu já estou em um encontro, palhaço - Ranma esnoba o rapaz com um sorriso arrogante.

O homem fica um pouco confuso, olha para Ranma, olha para Akane, olha para as mãos dadas, e finalmente assimila.

— Ah... - ele deixa escapar, estupefato.

— Vamos, Akane! - Ranma a puxa, forçando-a a se levantar.

Akane apenas obedece e permanece calada, em choque.

—--

De noitinha, Ranma e Akane caminhavam lado a lado pelos quarteirões próximos à casa dela. Desde que saíram do clube, não trocaram uma única palavra. Ranma estava um tanto quanto envergonhado, sente que pode ter se excedido um pouco, e talvez tivesse a constrangido.

Quando finalmente tem coragem de olhá-la nos olhos, se surpreende em vê-la sorrindo para ele.

— O-O que foi?? - ele pergunta, assustado. De todas as reações, não esperava um sorriso, de certa forma, malicioso.

— Você ficou com ciúme, né? - dispara, convencida e meio brincalhona.

— Que ciúme o quê! - a voz dele desafina, quando estava na forma feminina, parecia até uma criança. Ele vira o rosto para que ela não visse que ele ficou vermelho – O cara tava te azarando sem a menor vergonha e era pra eu fazer o quê?! Ficar quieto?!

— Eu sei, bobinho – ela agora estava menos cínica e mais gentil – Obrigada por me defender.

— Hunf...

Akane adorava quando ela tomava as rédeas da situação, brincando com ele e fazendo-o se recolher de tanta vergonha, eram as vezes em que ela se sentia “no controle”. E era muito difícil deixá-lo assim, aceitando a derrota e permitindo que ela tomasse posse de suas emoções. No fim das contas, não era tão ruim, mas ele preferia quando ele a dominava.

Mas Akane ainda estava afrente, enxergando mais uma brecha sem que ele percebesse. Quando estavam no clube e Ranma tomou a mão dela para, de certa forma, demarcar território, ela se sentiu inspirada a segurar a mão dele que estava dando sopa.

Ranma não viu aquilo chegando, se arrepiou da cabeça aos pés e seu corpo ficou quente, ouvia seu coração num sonoro “tu-dum”, mas não teve coragem de tirar os olhos da frente. Akane alternava entre olhar para frente e olhar para ele, tentando fisgar alguma reação que não fosse a de completa vergonha.

Agora eles caminhavam, pela primeira vez, de mãos dadas lado a lado. Não tinha como ser mais perfeito.

— Quer fazer alguma coisa amanhã? - Akane pergunta, com medo de ser precipitada, sair dois dias seguidos podia ser muito avançado.

— Hum... - ele fica pensativo, demora um pouco pra responder porque, por dentro, estava muito eufórico e precisava conter sua emoção - Pode ser.

Akane abre um sorriso de ponta a ponta.

— Tem tempos que ganhei uns ingressos pro parque de diversões... A gente podia usar.

— Ah, legal! - ele fica bem animado – Tava doido pra ir na montanha-russa nova!

— Ai, eu morro de medo...

— Sem essa! Vou te arrastar pra ir comigo!

— Já me arrependi...

Eles riem, fechando mais um encontro com chave de ouro, voltando para casa de mãos dadas, com a vergonha se desfazendo, ficando cada vez mais à vontade com situações como aquela. Parecia até um sonho.

Mais alguns minutos rindo, planejando a visita ao parque, e já chegaram na porta do dojo Tendo. Akane olha para Ranma como quem vai se despedir, mas antes que pudesse falar alguma coisa, o portão se abre e eles soltam as mãos, num susto. Kasumi sai de lá de dentro com uma vassoura na mão e sorri ao ver os dois.

— Ranma, seja bem-vindo! - a mais velha o cumprimenta.

— Oi, Kasumi – diz o garoto, agora garota.

— Não quer entrar? - pergunta Kasumi, educadamente.

— Ah não, já tô de saída...

— Como é, o Ranma tá aí?? - uma voz vinda de dentro ecoa, passos se aproximam e Nabiki põe sua cara cínica para fora do portão - Cadê meu dinheiro?

— Ah Nabiki, esquece isso! - suplica o mais novo, irritado, para a satisfação de Nabiki.

— Demore mais e os juros vão aumentar.

— Okay, eu vou embora! - Ranma anuncia, impaciente, vira as costas e acena para as irmãs - Tchau Kasumi! Até amanhã Akane!

— Até... - Akane acena, um pouco espantada com a forma abrupta com a qual ele se foi.

— Volte sempre, Ranma – Kasumi grita para ele, também acenando.

Ranma some por entre as ruas sem deixar rastros. Akane lança um olhar emburrado para Nabiki, que mostra a língua, e a caçula entra em casa, deixando as irmãs mais velhas a sós na entrada de casa.

— Você tortura demais o Ranma, Nabiki – a mais velha reprime a do meio, que dá de ombros.

— É um dos poucos prazeres que tenho na vida, me deixa.

Enquanto isso, Akane subia as escadas com pressa. Vira o corredor, entra no seu quarto e fecha a porta. Corre até sua cama e se joga nela, enfiando a cara no travesseiro, abafando ali um gritinho muito agudo enquanto ela girava no colchão.

A menina estava em êxtase, sentia vontade de pular, dançar e cantar de alegria. Acabara de ter um dos dias mais incríveis da vida, com muitas doses de emoção. Suas expectativas, antes baixíssimas, foram monstruosamente superadas. Lembrava-se da forma que se olharam, riram, patinaram juntos e sobretudo como voltaram pra casa de mãos dadas. Era coisa demais para quem há poucas semanas sequer sonharia com esses avanços.

E claro, tão importante quanto, o plano corria bem.

Ela nem conseguia acreditar no quão bem estava se dando com Ranma, estava surpresa consigo mesma por conseguir ultrapassar seus limites e quebrar aquelas barreiras de orgulho, mas estava mais surpresa ainda com ele. Não imaginava que Ranma pudesse ser tão... agradável. Fofo. Gentil. Carinhoso. Cuidadoso...

Akane abraça o travesseiro, fingindo estar abraçando o noivo, e afoga ali um sorriso de ponta a ponta, se entregando aos delírios que sempre se esforçou para esconder.

—--

Depois de uma caminhada para casa muito interrompida por espasmos de alegria, contando com várias saltitadas e dancinhas alegres enquanto ele cantava “can’t take my eyes off you”, que foi a música que tocou quando entrelaçou seus dedos nos dela na pista de parinação, com cara de quem estava transbordando de felicidade por ter tido o melhor encontro da vida, Ranma chega em casa e vai direto para a cozinha, coloca água na chaleira e espera ela ferver.

Rebolava cantando incansavelmente a mesma música, olhando para a chaleira que começa a entrar em ebulição. Seus pensamentos estavam muito dispersos, mas sua memória focava especialmente no momento em que Akane segurou sua mão quando voltavam pra casa. Pôde sentir o quentinho da mão dela, e até aproveitou para alisá-la um pouco com o polegar, sentindo o quão macia era, apesar de ser tanto usada em seus treinos.

Outra coisa também lhe arrancou muitos suspiros e um sorriso encantado: o quão confortável Akane parecia em ter um encontro com ele mesmo em sua forma feminina. Não era difícil imaginar que Ranma teria dilemas quanto a isso, mas ninguém era capaz de ter a dimensão do quanto. Akane não fazia ideia do quanto aquilo teve significado para ele.

— Você não liga mesmo?

— Não, bobo.

Lembra-se da forma como ela disse aquilo com um sorriso no rosto, e ficou vermelho. Mas sua atenção foi atraída pelo som da chaleira, que anunciava que a água estava quente o bastante. O garoto pega a chaleira e a leva até o quintal, ficando de cara para o jardim de sua mãe e uma linda vista da lua cheia.

Ranma despeja a água quente por cima da sua cabeça, seu corpo se alonga, seu cabelo fica negro, e o peito se retrai. Ele não tirava os olhos da lua, que levava os pensamentos dele única e exclusivamente para Akane, seu sorriso, seu cabelo, sua voz, e em especial, suas mãos, que ele teve o deleite de alcançar por muitas vezes no mesmo dia. E que dia.

— Bobona... - suspira, sorrindo feito bobo.

De repente, escuta um barulho vindo do chão, mais especificamente da grama do quintal. Levanta uma sobrancelha e se inclina para espiar, estava escuro, mas ele pôde perceber que a terra estava se partindo, e algo parecia estar fazendo força para alcançar a superfície. Será que era um rato? Ou pior, um gato??

Ranma fica na defensiva, sente o corpo tenso pela possibilidade de um felino maldito sair de baixo da terra e invadir sua casa. Não teve muito tempo para pensar, pois quase caiu no chão quando aquele pedaço de terra foi demolido por uma cabeça, seguida do torso de um homem sujo e afoito.

— Onde é que eu tô?!? - grita, desesperado. Ranma então reconhece a voz e se espanta.

— Ryoga?!?

O garoto de bandana se vira de costas e dá de cara com o rival, ambos ficam se encarando surpresos sem dizer nenhuma palavra por uns bons segundos. Quando enfim assimila, Ranma dá um sorriso muito alegre, quase eufórico.

— Quem é vivo sempre aparece, né não?!

— R-Ranma?!... - então, uma ficha cai na cabeça de Ryoga, e ele quase começa a chorar de emoção - Ai, que bom... Ainda estou em Tóquio...

— Ryoga, me diz - começa, meio sarcástico, mas ainda espantado – como DIABOS você foi parar embaixo da terra?!?

— E você acha que eu sei?!? - Ryoga responde, afobado, tentando se defender – Eu estava na cidade, daí caí num bueiro, andei pelo esgoto e quando vi, estava aqui!

— Urgh... - Ranma põe a língua pra fora, com nojo.

— Maldição... - ele fica de joelhos, desolado, quase chorando – Eu preciso chegar na casa da Akari até amanhã... Por que não consigo?...

— Da Akari, é? - Ranma sorri com os olhos semicerrados, fazendo uma cara maliciosa – Safadinho.

Ryoga fica vermelho na hora, lançando um olhar de reprovação para Ranma, que se divertia muito importunando o menino porco.

— Bom... Eu preciso ir – Ryoga anuncia, se recompondo – A casa dela não deve ser tão longe.

— Ei, não vá - Ranma se aproxima do mais alto, que fica surpreso ao ver o garoto de trança com um olhar pidão - Você acabou de chegar.

— Mas, mas... Mas eu... Eu parei aqui por acidente...

— E daí?

— E eu preciso encontrar a casa da Akari...

— Deixa disso, eu te levo – Ranma sorri amigavelmente para o dentuço, que agora estava mais uma vez quase chorando de emoção.

— Faria mesmo isso, Ranma?? - pergunta, segurando as duas mãos do menor.

— Claro, bobão - o de trança apoia o braço no ombro dele, tendo que se escorar um pouco pois os anos agraciaram Ryoga com mais alguns centímetros de altura antes dos dezoito – Mas agora já tá tarde, você dorme aqui e eu te levo amanhã.

Se antes Ryoga estava tentando segurar o choro, agora ele abriu a torneira e começou a esfregar os olhos com as mãos. Ele estava exausto, há mais de uma semana ele vagava pelo Japão, correndo, girando em círculos, dormindo em uma tenda num terreno baldio qualquer. E lá estava Ranma, lhe oferecendo o conforto de uma cama e estadia hospitaleira com um sorriso no rosto, parecia até um anjo caído do céu.

— Ranma... - ele choraminga, colocando as duas mãos sobre os ombros do outro – Eu nem sei como agradecer...

— Sem essa. Vem, entra! O jantar sai daqui a pouco – ele dá um tapinha das costas de Ryoga e os dois caminham para dentro da casa, Ranma tampa o nariz e faz uma cara brincalhona – Agora vá tomar banho, pelo amor de Deus! Você tá podre!

— Eu tô, é?? - Ryoga imediatamente leva o nariz até sua blusa e dá uma fungada, inalando uma mistura de suor, lama, terra molhada e uma pitada de cheiro de esgoto. Fica completamente envergonhado e até retrai a voz – Onde é que é o banheiro?...

— Ali, na terceira porta.

— Err... - Ryoga olha para o corredor que ele apontou, e depois olha para Ranma, quase implorando com os olhos – Eeerr...

— Caramba, precisa de ajuda até nisso?? - zomba, não muito espantado, acompanhando Ryoga até o banheiro – Quer que eu te dê banho também, P-chan?

— Cala a boca...

—--

De banho tomado e usando um pijama emprestado de Ranma, que agora também estava com suas roupas de dormir, o hóspede se reuniu com a família Saotome para jantar. Ryoga lambeu os beiços com a deliciosa tempura feita por Nodoka, que ficou encantada ao ver Ranma convidando um amigo para passar a noite, já que ele sempre foi tão reservado quanto a isso e não parecia ter muitos amigos. Nos tempos convivendo com o filho, percebeu que o linguajar de afetividade do menino era um tanto deturpado, sempre provocando e perturbando as pessoas quando queria demonstrar carinho, provavelmente a razão dele ter problemas para manter amizades.

E lá estava ele, fazendo exatamente isso, cutucando o convidado com os hashis, zombando dele sempre que encontrava uma brecha e o importunando sem nenhum propósito. Mas Ryoga mantinha-se firme e forte, ora se alterando, ora o respondendo à altura. Tinham uma dinâmica engraçada, mas visivelmente se davam bem.

Terminando de comer, ficaram um pouco na sala, conversando enquanto fingiam não assistir à novela que Nodoka estava vendo, até que subiram as escadas e foram para o quarto de Ranma.

Quando Ranma voltou a morar com sua mãe, seu quarto não tinha quase nenhuma personalidade, afinal ele passou dos cinco aos dezesseis anos vivendo como um eremita com seu pai, e só agora sabia o que era ter um espaço pessoal. Aos poucos, aquele quarto que antes era só uma cama e uma cômoda avulsa, logo ficou mais e mais parecendo o quarto de um jovem adolescente, com alguns pôsteres remetendo a filmes de artes marciais, algumas revistas, bonecos e halteres no canto do quarto.

Ranma tira um futon debaixo de sua cama e posiciona bem ao seu lado, forra um edredom para Ryoga e lhe dá um travesseiro acompanhado de um cobertor. O maior se aconchega no futon, Ranma apaga a luz e se deita, colocando as mãos por de baixo da cabeça. Ambos ficam olhando para o teto escuro, o pouco que ouviam era o zumbido do lado de fora.

— Tô chateado com você - comenta o dono do quarto.

— Quê?

— É - Ranma fica de lado na cama, apoiando o queixo na mão enquanto a outra coçava a bunda, olhava para baixo procurando Ryoga, mas sua vista ainda estava se adaptando com o escuro - Você começou a namorar e sumiu.

Ryoga arregala os olhos e fica sem jeito. Afastar-se de Ranma foi uma consequência muito dolorosa acarretada pelo plano de tentar esquecer Akane, mesmo que Ryoga não quisesse admitir, o menino de trança era uma companhia que fazia muita falta, ainda que acabassem brigando no fim de tudo. Vez ou outra esbarrava nele, mas isso foi ficando menos e menos frequente desde que começou a namorar.

Ele inclusive recentemente pegou-se pensando muito em Ranma, graças a um sonho estranho que teve algumas semanas atrás, onde ele, na forma de porco, abraçava Ranma, na forma de garota, no meio da chuva, e aquilo o fez ficar tentando decifrar o significado por horas e horas, sem sucesso. Independente, sempre que pensava em Ranma, ficava melancólico.

Já Ranma, há anos já estava habituado com as sumidas do garoto perdido, mas dessa vez tinha ficado fora por tempo demais. No fundo, a sensação que ficava era de que Ryoga estava tão mais interessado na namorada que esqueceu do amigo, e aquilo secretamente o fazia se sentir trocado.

— Ah, Ranma... Você me conhece – ele tenta contornar a situação - Eu nunca tenho hora certa pra voltar... Porque eu nunca sei onde eu tô.

— Sei – o menor resmunga, ainda um pouco emburrado e fazendo beicinho – Pra falar a verdade, eu ainda não superei que você desencalhou antes de mim.

Ranma sorri com ironia, se deliciando por agora conseguir ver o rosto de Ryoga melhor, que se contorcia de vergonha.

— Ah, para com isso... - resmunga o dentuço, todo sem jeito.

— Não fica com vergonha, P-chan – brinca, sabendo que Ryoga detestava quando ele o chamava assim, o deixando mais vermelho ainda - Vocês tão juntos há quanto tempo?

— Amanhã faz um ano.

— É sério?? Uau! - Ranma se choca, arregalando os olhos – Faz tanto tempo assim?? Parece que foi ontem!

— Pois é...

— Humm... - Ranma apoia as mãos no colchão e aproxima o torso de Ryoga, fazendo questão de que ele visse a sua carinha maliciosa e suas sobrancelhas mexendo pra cima e pra baixo – E amanhã vocês vão “comemorar”, né?

— Você só pensa besteira! - alega o maior, vermelho.

— Eu não disse nada, mas já que você assume...

— Eu não tô... Argh! Não vou discutir com você.

— Tomara que os porcos não sejam como os coelhos.

— Ranma!

— Hi hi hi.

Encher o saco de Ryoga era maravilhoso, diferente de Akane, era tão fácil manipular as emoções dele, deixá-lo com vergonha. Mesmo que tentasse com todas as forças, o menino porco nunca conseguia esconder aquele gaguejo e as bochechonas vermelhas. Ryoga podia ser forte e grandalhão, mas era, essencialmente, um coração-mole.

Ranma se ajusta na cama e volta a olhar pro teto, quando ele não está vendo, Ryoga se permite sorrir. Sempre evitava pensar na saudade que sentia do rival de infância, embora o afastamento fosse por um bem maior. Mas agora que estava ali com ele, conseguia ter a dimensão do quanto aquele chato insuportável fazia falta.

Ryoga fica olhando para aquela trancinha que saltava pela beirada da cama, e diz:

— E não diga isso de eu desencalhar antes de você. Você tá noivo há muito mais tempo.

Ranma ouve um “tu-dum” vindo do seu peito ao ouvir aquilo. Um simples comentário mencionando seu noivado o fez revisitar as memórias do último encontro, e o jogou nas nuvens mais uma vez, ficando até um pouco vermelho e mais sorridente.

— Mas não é como se eu e a Akane... Bem...

Quando Ranma fala o nome Akane, Ryoga sente um aperto no peito, morde o lábio e se remói por dentro. Tentava reprimir com todas as forças o ciúme que sentia quando Ranma falava dela, tendo ele consciência de que Ranma seria a pessoa que “provocou” toda essa situação à efeito dominó. Tentou, tentou, e tentou, inutilmente, não pensar em Akane naquele momento, atraindo junto todas as suas questões e conflitos internos que ela provocava dentro dele, um rapaz comprometido.

— Mas como é que estão você e a Akari? - Ranma desvia o assunto - Tá tudo certo entre vocês?

— Err... Sim, estamos bem – alega, meio tímido - A Akari é ótima.

— Ela ainda é obcecada por porcos?

— Sim...

— Vish...

— Mas tá tudo bem – diz o maior, se autoconsolando – Pelo menos ela gosta de mim como eu sou. Nenhuma outra garota ia querer uma aberração como eu.

— Ah, para com isso – Ranma se ajusta da mesma forma que antes para olhar para ele, de cima da cama - Você fala como se virar um porquinho fofo fosse a pior coisa do mundo.

— Pra você é fácil falar, você vira uma go-.. Garota! - Ryoga quase comete um deslize bem embaraçoso, então tenta contornar o assunto - Você não é pisoteado na rua, carregado pra lá e pra cá como bem entendem, e muito menos tem a chance de virar uma janta!

— Hunf... - trazendo esse assunto à tona, Ranma acaba tendo seu calo pisado, revisitando as mesmas inseguranças de sempre - Não é como se fosse fácil, também...

— Qualquer coisa é melhor do que ser um porco.

— Ah, olhe pelo lado bom - começa, com uma postura positiva – por você ser um porco, a Akari se apaixonou ainda mais por você. Não é ótimo?

— Humm... Eu... acho que sim? - pondera, tendo a realização, mais uma vez, de que a sua namorada de fato o amava e desejava ainda que ele fosse amaldiçoado. O jovem começa a rir feito bobo, sentindo-se protagonista de um lindo romance como sempre sonhou – A Akari é perfeita pra mim... Eu não poderia estar com mais ninguém.

— Caramba, você gosta mesmo dessa garota, né? - Ranma levanta as sobrancelhas e dá um sorriso genuíno.

— Eu adoro ela – responde, sorrindo.

— Que legal, amigo - o menor o parabeniza, demonstrando seu apoio sincero.

Ficaram um tempinho em silêncio, sem muito para dizer, mas também não precisava. Quando não estavam se estapeando, e isso era raro, eles conseguiam desfrutar de momentos agradáveis como aquele, dando o apoio que o outro precisa. Ranma sente um estalo em sua mente, como uma lâmpada acendendo, e quebra o silêncio:

— Mas sabe, Ryoga... - começa, fazendo uma pausa.

— O quê?

— Não adianta mentir pra mim – Ranma faz uma voz séria, Ryoga levanta uma sobrancelha - Você fala que gosta da Akari... Mas eu sei a verdade.

Ryoga fica instantaneamente aflito, Ranma o olha bem no fundo dos olhos e diz, seco:

— Eu sei que você gosta de outra...

Ryoga arregala os olhos e sente o coração pular, uma gota de suor escorre em seu rosto e sua respiração fica pesada. Sentia como se acabasse de ser arremessado contra a parede, e metaforicamente, ele estava contra a parede. Apesar desse tempo todo sem ter contato com Akane, e mesmo namorando Akari... Será que ainda assim o Ranma percebeu alguma coisa? Se sim, como? E sendo noivo dela, será que ele iria voar no seu pescoço para esganá-lo?

— E-Eu... Do que você...? - Ryoga gagueja, e perde totalmente a coragem de continuar quando Ranma se senta na cama.

De repente, Ranma pega um copo d’água que estava na cabeceira da cama, joga sobre si mesmo, e transforma-se em mulher. Ryoga se assusta, agora muito confuso, de todas as possibilidades, não imaginava essa. O que ele estava fazendo, afinal?

Ranma lhe lança um olhar muito sapeca e pretencioso, que fez Ryoga sentir um arrepio na espinha e ficar vermelho.

— Q-QUÊ?!? - Ryoga grita no momento em que Ranma se atira em seu colo, sentando por cima de sua barriga e fazendo uma cara cínica, muito perversa.

— Eu sei que no fundo você gosta mesmo é do meu lado garota, P-chan – Ranma força uma voz sexy muito caricata, agarra os braços dele que tentaram empurrá-lo e os pressiona contra o futon, rebolando na barriga dele.

— P-PARA COM ISSO, RANMA! DE NOVO NÃO!! - suplica o maior, dando a exata reação de desespero que Ranma queria, lhe arrancando uma boa risada maléfica.

O garoto de trança tinha poucas certezas na vida, mas uma delas era que essa maldição lhe concebeu um corpo feminino muitíssimo atraente, e ele percebia o olhar dos homens sobre ele. Ryoga, ainda que nunca admitisse, não passava batido. E foram tantas as vezes que se aproveitou desse “ponto fraco” de Ryoga, cominado com sua timidez e a forma como ele entrava em desespero quando Ranma ficava pelado na forma feminina, ou quando descobria que uma garota que o seduziu para conseguir alguma coisa, e com sucesso, era na verdade Ranma disfarçado.

Tendo consciência disso, Ranma criou um novo passatempo: imobilizar Ryoga estando na forma feminina, para que possa torturá-lo o deixando tão envergonhado a ponto de surtar. Uma brincadeira saudável e MUITO esquisita para quem visse de fora.

— EU ODEIO QUANDO VOCÊ FAZ ISSO!!

— Ah, você ama que eu sei! - Ranma faz um biquinho sarcástico, ainda forçando aquela voz sensual e nem um pouco característica sua. Troca suas mãos pelos pés, que agora imobilizavam os braços do menino porco tentando se debater. Alternava entre rir e forçar alguns gemidos caricatos para envergonhar Ryoga ainda mais – Acha que eu não vejo você olhando pros meus peitos, seu porco safado?

— S-SAI DE CIMA DE MIM!! - implora, completamente imobilizado.

— Vai Ryoga, admite que me acha gostosa! - leva suas mãos aos seios, molhados e transparentes na blusa branca, e começa a fazer movimentos circulares, Ryoga espreme os olhos tentando não ver, mais vermelho que o cabelo de Ranma – Admite! Admite! Admite!

— ME SOLTA SEU DOENTE!!

— Admiteeee!!!

BLAM!

Ryoga olha para cima e Ranma para frente, estupefatos, dando de cara com um panda que rosnava na porta e balançava uma placa que dizia “Silêncio! Estamos tentando dormir!”. Genma, sem nem se dar conta da cena muito suspeita que presenciou, vendo seu filho na forma de garota sentado na barriga do amigo com as mãos nos seios, bate a porta mais uma vez e vai embora, deixando um clima de ameaça no ar. Ryoga volta a olhar para Ranma e percebe que ele ainda está distraído olhando para a porta, aproveita a brecha e lhe dá um chute que o atira no teto.

— Cretino! Eu tenho namorada! - resmunga, bufando enquanto Ranma se ajustava de volta ao chão, alisando a cabeça que bateu na parede.

— Ah, qual é! Eu tava brincando! – o garoto de trança, agora ruiva, mostra a língua para ele em deboche – Como se eu fosse mesmo fazer alguma coisa, né idiota?!

— Hunf! - Ryoga se recolhe todo no futon, virando de lado e ficando de costas para ele, emburrado – Eu vou dormir! Boa noite!

— Hunf... Estressadinho – Ranma resmunga e volta a se acomodar na cama, virando-se também na posição oposta a ele.

Ryoga estava exausto e não demorou muito pra dormir, já Ranma passou um tempinho rolando na cama, em êxtase, lembrando de seu encontro com Akane e ansioso para o que viria no dia seguinte.

—--

— Pronto porquinho, tá entregue – Ranma dá dois tapinhas nas costas de Ryoga quando ficaram de frente para o portão da residência dos Uryuu.

Tinham partido da casa de Ranma depois do almoço, Nodoka fez questão de lavar a roupa de Ryoga, toda suja de terra e suor, e agora estava muito mais apropriado para o seu encontro. Ranma também estava estranhamente arrumado, usava uma blusa verde acompanhada de uma boina da mesma cor, e muito cheiroso.

Andaram por vinte minutos e chegaram ao destino do rapaz que já estava nessa busca há mais de uma semana. Uma lágrima de emoção escorreu pela bochecha, e ele olha para o menor com muita gratidão.

— Eu nunca vou me esquecer disso, Ranma... - diz, dramaticamente, como se aquilo fosse lá grande coisa. Para ele, era.

— Deixa de drama, Ryoga - Ranma toca na campainha por ele, fazendo Ryoga se arrepiar – Bom, eu tenho um compromisso. Tchau, Ryoga! – ele se vira de costas e acena para ele enquanto parte - Vê se aparece, hein!

Ryoga acena de volta e nem tem tempo de dizer nada, pois ouve passos se aproximando do portão, e pega sua mochila depressa, tirando dali as rosas que comprou (mortas) junto com os biscoitos que recebeu da velhinha bondosa (mofados).

Akari abre o portão e sorri de maneira encantadora, Ryoga suspira ao olhá-la da cabeça aos pés. Ela estava linda. Usava uma blusa branca muito delicada e uma saia amarela que cobria até metade da perna, parecia uma princesa do campo, toda arrumada e cheirosa para o seu encontro especial.

— Quem bom! Conseguiu chegar a tempo! - ela junta as duas mãos, estava genuinamente surpresa com a pontualidade de Ryoga.

— F-Feliz um ano, Akari! - ele ergue os dois presentes timidamente sem se dar conta que estavam estragados - São pra você!

Mas ela nem dá importância aos detalhes, coloca aqueles dois presentes no chão e se atira de encontro ao abraço dele, sendo agarrada de volta. Com meses de prática, Ryoga aprendeu a controlar suas emoções e não agarrar sua parceira com tanta força a ponto de sufocá-la, embora esses fossem seus instintos. Agora conseguia abraçar sua namorada com a firmeza necessária, mas também com delicadeza, tratando-a como um bem muito precioso. Poderia passar o resto de seus dias com Akari em seus braços, envolvendo aquele corpinho tão pequeno com todo o carinho que tinha pra dar.

Akari se afasta um pouco, lhe dá um beijo na bochecha, e sorri mais ainda quando vê que ele estava vermelho, totalmente entregue.

— Vamos, meu porquinho lindo? - ela fez uma voz mais afinada, coisa de namorados.

— V-Vamos!

—--

Depois de uma hora revirando o guarda-roupa, Akane finalmente escolhe a roupa perfeita para o seu terceiro encontro: um vestido verde muito delicado, acompanhado de um casaquinho laranja e um laço amarelo na gola, ela decorou seu cabelo com alguns lacinhos também amarelos, fazendo-a parecer uma princesa. Podia estar um pouco produzida demais, mas quanto mais estreitava os laços com o noivo, mais confiante ela se sentia para ser ela mesma. Ela sempre quis fazer isso, se esforçar ao máximo para ficar bonita para um encontro, e chegou a hora de se permitir.

“Será que ele vai gostar?”, se pergunta enquanto faz pose para o espelho, “Será que vai me achar bonita? Ou será que...?”.

— Akaneee! O Ranma tá aqui! - ouve a voz de Kasumi vinda do corredor, e quase dá um pulo.

Pega a sua bolsa, coloca os ingressos junto com sua carteira dentro, e vai até a porta.

— Ai, não! Esqueci de passar perfume! - dá meia volta, colocando um pouco da doce colônia nos braços e no pescoço. Dá uma última olhada no espelho, ajustando o cabelo, e olha para o rosto mais de perto – Talvez um batonzinho...

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Ela volta a sentar na penteadeira para fazer uma maquiagem leve, se certificando de que ficaria perfeita para o encontro, sem se dar conta de que estava fazendo o convidado esperar.

Enquanto isso, lá embaixo, Ranma estava na entrada da casa dos Tendo, escorado na parede enquanto balançava as pernas, ansioso para ver Akane descendo aquelas escadas, o coração estava a mil e a respiração acelerada. Sem que ele percebesse, Nabiki chega por trás como uma gatuna travessa e faz cara de desconfiança, admirando o rapaz todo arrumadinho da cabeça aos pés.

— Vem cá, vocês estão namorando?

Ranma sente um arrepio na espinha e quase salta, espantado com a figura que brotou bem perto dele sem nenhum aviso.

— Que é que você quer, Nabiki?!

— Nada – ela cruza os braços e o fita nos olhos, provocando arrepios no cunhado - Só que de repente vocês parecem mais... grudados.

— Nada a ver! - mente, envergonhado – Isso é coisa da sua cabeça!

— Sei... - ironiza, toda desconfiada – E vocês vão sair?

— Sim...

— Só os dois?

— ... Não é da sua conta – resmunga.

— Humm...

— Que foi??

— Nada, nada – ela dá dois tapinhas no ombro dele, rindo enquanto ele ficava vermelho, uma mistura de raiva com vergonha, odiava quando Nabiki tirava sarro dele, enquanto ela, vivia por isso – Olha só pra você, todo bonito pra sair com a minha irmã.

— Hunf! - bufa, mas depois faz uma cara cínica, encontrando uma brecha para devolver na mesma moeda – Acha que eu tô bonito, é?

Nabiki é pega de surpresa, mas longe de se deixar vulnerável. Fica alguns segundos em silêncio, o olhando da cabeça aos pés e pensando na melhor resposta. Ela dá de ombros e finge desinteresse:

— Dá pro gasto.

— Ora, sua...

— Ah, olha a Akane ali! - Nabiki aponta para as escadas e Ranma vira o rosto na velocidade da luz, era a brecha que ela precisava para fugir daquele confronto.

O coração do rapaz dispara quando Akane se aproxima, parecia descer cada degrau em câmera lenta, como uma cena de filme americano. Era raro ver ela assim, toda produzida e visivelmente se esforçando para parecer bonita, mas ainda que isso acontecesse pouco, agora tinha um gostinho muito mais especial, pois ela estava assim para ele, para um momento deles.

A menina não consegue evitar de ficar vermelha quando o vê sem suas roupas casuais, também sentindo ali um certo esforço para agradá-la. Ficam de frente um para o outro tentando disfarçar a timidez.

— Desculpa a demora – ela pede.

— Demorou não... Pegou os ingressos?

— Uhum! Vamos? - ela se direciona para a porta, e ele a segue.

— Vamo.

— Juízo, hein – a irmã do meio brinca com eles, arrancando olhares emburrados em resposta.

Eles passam pelo portão e somem, lado a lado. Nesse momento, Nabiki se escora na parede e seu sorriso se desmancha, aos suspiros, divagando para longe dali, ficando presa por alguns minutos digerindo o que estava óbvio.

—--

— Aqui tá bom! - Akari pede, no momento em que encontram um cantinho na grama bem embaixo de uma árvore, onde poderiam ficar na sombra.

Ela retira uma toalha da cesta e eles a estendem no gramado, sentando por cima. A menina tira os lanches da cesta, armando um belo banquete para um piquenique romântico no parque. Ryoga pega um sanduíche, e quando está prestes a abocanhar, lembra-se de perguntar algo muito importante:

— Isso aqui não é presunto não, né? - averigua, muito sério, afinal seria incapaz de comer um dos seus.

— Claro que não, bobinho – ela ri, sendo ela também uma pessoa que nunca comeria carne de porco - É peito de peru.

— Ah, bom – abocanha o sanduíche, lambendo os beiços - Ai, que delícia!

— Tá bom mesmo? Fui eu quem fiz!

— Muito! Tudo o que você faz é bom – elogia, a deixando tímida. Akari era uma ótima cozinheira, e sempre fazia questão de mimar Ryoga com todo tipo de receita preparada com suas próprias mãos. Talvez por isso ele até ganhou um pouquinho de peso desde que começaram o namoro. Ryoga agora pega um pedaço de bolo de chocolate e dá uma mordida – Ai, sério, você vai me deixar ainda mais gordo desse jeito!

— Ah, para! - ela entrelaça os dedos nas mechas cor-de-rosa que tinha no cabelo, envergonhada - Você não é gordo! É fortão! - ela passa as mãos nos braços fortes do namorado, alisando os músculos parrudos que ele tinha, o deixando com vergonha – Muito forte, por sinal! E um grande lutador! E másculo! E viril! E lindo!

— Ai Akari, não é pra tanto... - ele revira o olhar, todo sem jeito.

— Sem contar que é um fofo – ela dá um beijinho na sua bochecha quente, tomando o olhar dele de volta para si – Carinhoso... Atencioso... Perfeito...

— Ei, ei...

— E o melhor namorado do mundo!!

— Ah!! - ela se atira no pescoço do rapaz, o jogando para o chão, ficando deitada por cima dele.

Ryoga não tem muito tempo para pensar, nem de ter um ataque de timidez, pois quando abriu os olhos, seus lábios foram roubados pelos de Akari, cerrando os olhos mais uma vez. Um beijo doce, delicado, porém muito carinhoso, trazendo memórias do mesmo beijo que deram há exatamente um ano atrás, que o impulsionou a pedi-la em namoro logo em seguida.

Quando voltaram a se olhar, estavam ambos corados e com a respiração ofegante, sorrindo feito bobos um para o outro. Akari ainda lhe dá um beijinho de esquimó, roçando seu nariz no dele, que era avantajado e gordinho como o de um porco, e se deitou ao lado dele, ambos rindo de mãos dadas, olhando para os galhos da árvore, que dançavam com o vento, trazendo uma sensação de paz e calmaria muito incomum na vida de Ryoga.

“Como ela pode ser tão perfeita?”.

— Por onde você andou nesses últimos dias? - ela pergunta, puxando assunto, sem soltar a mão dele.

— Humm... Deixa eu ver... - ele tenta refrescar a memória, afinal passou por tantos lugares que era difícil lembrar de todos – Dei uma passada em Hokkaido, depois Fukushima, Kyoto, Gunma... E ontem cheguei em Tóquio.

— Deve ser divertido passear pelo país o tempo todo.

— Tá maluca?? - ele se altera, olhando para ela assustado – Minha vida é um inferno por causa disso!

— Ah, mas tem seu lado bom, vai – ela procura consolá-lo – Eu estou sempre presa em casa, e agora que estou no último ano da escola, não posso fazer quase nada... - comenta, melancólica - Daria tudo pra viajar de vez em quando...

— Vai por mim, é bem melhor ficar em casa estudando do que ser um zé ninguém como eu que vive perdido.

— Hum... Falando nisso... - ela se ajusta, ficando de lado, eles se olham nos olhos – Ryoga... Você não pretende completar a escola?

Aquilo o pegou de surpresa, definitivamente não era algo que ele pensava muito, na verdade, não pensava nunca. Desde o fundamental, seu único propósito em vida tornou-se derrotar Ranma, e como não consegue se concentrar em duas coisas ao mesmo tempo, largou a escola. Derrotar o rival era muito mais importante.

E quando caiu na fonte de Jussenkyo em consequência dessa perseguição, esqueceu-se completamente que tinha uma vida além daquela. Até que chegamos no agora, onde ele se acomodou tanto com a suposta vingança, quanto com sua maldição, apenas vivendo uma vida de eremita sem muito propósito.

— Hum... - ele coça a bochecha com o dedo, olhando para cima – Eu acho que tá meio tarde pra isso... Nem lembro onde foi que eu parei.

— Acho que seria importante pra você - ela o estimula – Digo, o que você quer fazer da vida no futuro?

Ele é pego de surpresa mais uma vez, como se tivesse sido jogado para um labirinto mental, e tratando-se dele, ficou completamente perdido e sem encontrar uma resposta. Para Ryoga, assim como tudo em sua vida, o futuro era uma incógnita, e evitava pensar nisso ao máximo para não enlouquecer.

— Eu... Eu não sei... - confessa, um pouco envergonhado – Tudo o que eu sei fazer é lutar, e... Lutar?

— Hum... Bom, independente disso, seria bom você ter o ensino médio completo – Akari tinha um sorriso no rosto e um olhar reconfortante, tentando dar um norte para aquele garoto perdido, se esforçando para ser uma boa namorada que levanta o seu parceiro para cima – Por que não faz um supletivo?

— Um o quê? - ele levanta a sobrancelha.

— É uma prova pra quem largou a escola. Você faz ela e aí te dão um certificado de conclusão do ensino médio.

— Uma prova só? - ele se espanta quando ela faz que sim com a cabeça - Interessante... Mas deve ser bem difícil... E eu sou bem burro.

— Não diga isso! - ela leva os dedos até o cabelo dele, e alisa carinhosamente – Eu posso te ajudar a estudar.

Ryoga olha para ela, emocionado, com os olhos brilhando.

— Faria mesmo isso, Akari?

— Claro, meu porquinho – ela deita a cabeça no peito dele, que impulsivamente a abraça em resposta – Eu sou sua namorada, pode contar comigo pra tudo.

O menino porco sente um choro de emoção chegando, mas segura, aproveitando aquela paz que reinava no ambiente. Abraçava aquela menina, que lhe estendia a mão, como o bem mais precioso da Terra. A forma como ela se dispunha a ajudá-lo daquela forma deixava claro que ela enxergava um futuro com ele, e como poderia recusar a chance de uma vida plena e feliz com uma garota como ela?

— Você é mesmo perfeita...

—--

— Eu não acredito que eu tô fazendo isso... - Akane quase treme de medo olhando para o topo daquela montanha-russa, estavam há vinte minutos na fila e prestes a serem chamados, o brinquedo devia ter a altura de um prédio de trinta andares e uma velocidade monstruosa, que provocou sérias crises de arrepios na menina que foi arrastada para a fila à pedido do noivo, muito entusiasmado para entrar – Fala sério, quem vai numa coisa dessas?!? Isso é suicídio!

— Deixa de drama, Akane! - zomba dela, balançando as pernas de tanta ansiedade, ficando ainda mais eufórico quando ouviu os gritos de mais uma descida do brinquedo – Caraca, que maneiro!

— Eu juro, se a gente morrer nisso aí...

— Vai fazer o quê? Vai tar morta.

— Idiota... - ela franze o cenho e ele mostra a língua.

Um minuto depois, foram chamados para entrar no brinquedo. Ranma foi correndo justamente para os assentos da frente, causando um desespero ainda maior na noiva.

— Ai, não! Eu não quero ir na frente! - suplica, quase implorando.

— Deixa de ser chata! É muito melhor na frente! - brinca, sorrindo de ponta a ponta – E balança muito menos, você vai gostar!

Ela pensa em relutar, mas se dá por vencida por aquelas covinhas encantadoras no rosto dele, sentando-se ao seu lado com o coração a mil de tanto medo. O instrutor do brinquedo ajusta as barras de segurança, e após alguns minutos de tensão, o carrinho começa a andar nos trilhos. Ranma sorri, ansioso, e Akane quase chora.

O noivo então percebe que talvez seja uma boa hora para cavalheirismo, e a conforta:

— Não fica com medo, vai ser incrível! - diz, muito animado – Qualquer coisa pode segurar no meu braço.

Não deu nem tempo dele piscar e ela já agarrou o braço dele com uma mão, mais forte do que qualquer outra garota seguraria, o apertando.

— Vai com calma aí... - ele pede, sentindo o braço dormente.

— Calma?!? Eu tô quase infartando!! - ela foi ficando mais e mais nervosa a medida em que o carrinho subia, beeeem lentamente, aumentando mais e mais o suspense - Pra quê você foi inventar de vir nesse brinquedo?? Olha o tamanho disso!!

— Caaaalma, garota – ele mantinha o tom de voz abaixo do dela, mas nada a acalmava, afinal estavam quase no topo – Um pouco de adrenalina não faz mal a ninguém.

— Disse o cara que tava todo irritadinho ontem por não saber andar de patins!

— Ei, eu sou homem, é muito diferente! - se defende, mas sem perder a paciência - Até que você tá fofa, se esperneando desse jeito.

Akane arregala os olhos e, por um momento, esquece que agora estavam no topo do brinquedo, que congelou para aumentar a tensão mais ainda. Olha para ele com os olhos brilhando, e pergunta:

— É sério?

— Não. Tá ridícula - brinca, e na situação em que estavam, ela quase revidou agressivamente. Mas nem teve tempo para reagir, pois o brinquedo voltou a andar, e estavam prestes a cair – Vai Akane, levanta as mãÃÃOOSS!!

— YAAHHHHH!!!

Desceram aquela ladeira imensa em menos de dois segundos, Ranma às gargalhadas, e Akane aos prantos. Ela chorava, se debatia e quase arrancava o braço do noivo pra fora, de tão forte que o segurava. As reações exacerbadas de Akane estavam sendo um espetáculo à parte, a cada subida e descida que aquele brinquedo dava, mais fino ela gritava, como uma menininha do jardim da infância, era divertido demais.

Quando o carrinho enfim freou de volta à entrada do brinquedo, eles ficam alguns bons segundos estupefatos com os cabelos rebeldes e os olhos vidrados, ele gargalhando, e ela em estado de choque, ambos ofegantes. Quando volta a si, a menina não consegue reprimir seus velhos impulsos e dá um cascudo na cabeça dele.

— Idiota! Nunca mais faça isso comigo!! - grita, sem se ligar que estava indo contra o plano inicial de ser mais conivente aos caprichos dele.

— Ah Akane, deixa de ser chata! - ele alisa a própria cabeça no lugar onde ela acertou, ainda rindo – Vai me dizer que não gostou nem um pouquinho?

— Não!! Odiei!!

— Tá bom, vamos pro carrossel de bebê então - resmunga, irônico. O instrutor do parque retira as barras de segurança e os noivos se levantam, saindo do carrinho com as pernas bambas. Ela quase desequilibra, e precisa se apoiar no braço dele para andar sem cair – Você é mole, hein!

— Fica quieto!!

Apesar da troca de insultos, o clima permanecia agradável, talvez essa fosse a dinâmica deles, afinal. E a forma como ela não soltou o braço dele, ainda que já conseguisse andar pelo parque de diversões sem desequilibrar, deu um toque meio romântico para a situação.

Ranma percebeu e ficou tímido, nem pensava em reclamar, ela podia segurar o braço dele o dia todo que ele não se importaria. Akane fica um pouco insegura de sua performance ao, depois de se acalmar, perceber que pode ter se excedido um pouco no brinquedo, levada pelas emoções. Então tenta conduzir a situação para que não fique muito esquisito.

— O que você quer fazer agora? - ela pergunta, sorrindo e segurando o braço dele com carinho.

— Eu... Tô com fome – confessa.

— Ah, eu também - ela fica aliviada por ele dizer aquilo, estava com vergonha de parecer gulosa ao sugerir que fossem comer sendo que não chegaram no parque tinha nem uma hora – Quer lanchar?

— Quero.

— Então vamos.

Os noivos adentram a praça de alimentação, composta por várias mesinhas cobertas por sombrinhas, e várias opções de lanchonetes. Era um clima bem amistoso... Mas por entre as plantas artificiais, dois olhos gatunos espiam o casal como se fossem duas presas, prontos para serem caçados.

— Aiya... - Shampoo lambe os beiços, dando um sorriso maléfico.

Ela se aproxima deles, sem ser percebida, como sempre. Os espiona pousando por entre as mesas, Akane olha para um lado, para o outro, e finalmente encontra uma mesa vazia, mas muito longe das lanchonetes.

— Caramba, tá muito cheio aqui – ele comenta, meio desapontado.

— Quer que eu vá comprar os lanches e você fica aqui?

— Pode ser.

— O que você quer?

— Pode ser hambúrguer com batata... Será que tem extra cheddar?

— Posso ver – ele entrega uma nota de dinheiro pra ela, e ela se vai - Já volto!

Observa Akane se afastar, sem acreditar no quão linda e arrumada ela estava, ainda que descabelada por conta da ida à montanha-russa. Fica tão hipnotizado pela menina a alguns metros de distância que nem percebeu quando outra garota se sentou bem à sua frente.

— Akane estar muito boazinha, né Ranma?

Ranma sente o corpo inteiro se arrepiar e quase pula, num susto.

— Shampoo?!? - arregala os olhos para ela, espantado - Tá fazendo o quê aqui??

— Ora, Shampoo querer brincar no parque também - mente, muito cínica e fazendo uma cara de deboche. O garoto levanta uma sobrancelha, muito desconfiado.

— Hum... Me engana que eu gosto – ele apoia os braços na mesa, armando uma postura meio intimidadora, mas aquilo não fez nem cócegas na amazona muito mal intencionada – Que é? Tá me seguindo?

— Sim – ela confessa, sem pudor algum – Ranma ser noivo de Shampoo, e ela querer garantir que Ranma não ser infiel.

— Ai Shampoo, pelo amor de Deus... - o garoto resmunga, apoiando a testa em sua mão, muito impaciente.

— Mas sabe... - começa, fazendo uma cara muito sugestiva enquanto olha para Akane – Shampoo estar muito mais intrigada com nova Akane.

— Nova... Akane? - ele levanta uma sobrancelha, confuso.

— Sim, nova Akane – Shampoo apoia as bochechas uma em cada mão, se escorando para mais perto do rapaz – Desde quando Akane ser tão boazinha, hein?

— Do que está falando?

— Ah Ranma, não ser bobo – ela faz uma cara visivelmente decepcionada, sabia que Ranma era esperto o bastante para ver as coisas como ela – Akane sempre ser bruta, violenta e nada feminina... Mas agora, da noite pro dia, ela virar uma florzinha. Por que será?

Ranma semicerra os olhos e junta as sobrancelhas, deixando a amazona muito satisfeita ao perceber que plantou uma sementinha na cabeça do rapaz.

— E tá insinuando o quê? - ele dispara, seco.

— Shampoo não insinuar nada – responde, ainda muito cínica - Ser uma pergunta genuína... Afinal, Ranma ser noivo de Shampoo, e ela muito preocupada com ele.

— Pff! - ele revira os olhos e cruza os braços - Tá bom...

De longe, a amazona avista Akane se aproximando meio distraída com duas bandejas de comida, e percebe que precisa ser ligeira.

— Vamos ver até onde Akane aguentar esse teatro – Shampoo lança um olhar que fez Ranma se arrepiar por inteiro, ela se levanta e engatinha até ele na mesa como uma gata pronta para dar o bote.

— E-Ei o que você...?

— Aiya, Ranma!

Shampoo se atira nos braços de Ranma, quase o fazendo se desequilibrar e cair para trás. Circula os dois braços no pescoço dele, e as pernas no tronco, o envolvendo numa cena que chamou a atenção de todos ao redor, o deixando todo vermelho e muito desesperado para afastá-la, sem sucesso algum.

— Wo ai niii! - ela o bajulava em sua língua nativa enquanto o enchia de beijos nas bochechas, se esforçando para alcançar a boca, mas ele sempre desviava.

— Me larga, Shampoo!! Para com isso!! Eu tô falando sério!! - ele tentava empurrá-la de todas as formas, mas ela estava decidida a não soltá-lo, aumentando ainda mais o pânico do garoto – Sai, sai sai!!

Akane para de frente para a mesa e entra em estado de choque, quase derrubando as bandejas no chão, suas mãos ficam frias e seus pensamentos desconexos. Shampoo olha de relance para a menina, e fica satisfeita com a reação dela, lhe lançando um olhar cínico e maldoso. Já Ranma, trava uma troca de olhares com a noiva, tentando escancarar em seu desespero que não queria nada daquilo, mas nunca na história aquilo havia funcionado.

Se Shampoo tinha qualquer certeza sobre Akane é que ela era ciumenta, não tinha como ela manter a compostura e seguir com aquele personagem doce e amoroso vendo Ranma ali, com Shampoo em seus braços o enchendo de beijos na frente de todo mundo. Diante daquilo, não tinha “bem maior” nenhum que segurasse seus instintos violentos.

Akane segura as bandejas com tanta força que as amassam, ainda que fossem feitas de um plástico resistente. Junta as sobrancelhas, torce o nariz e arregala os olhos, mostrando uma faceta que Ranma já não via tinha algumas semanas, provocando calafrios.

— Eu posso saber o que-?!

— Ranma Saotome, prepare-se pra morrer!!

Uma quarta voz interrompe Akane, instintivamente fazendo tanto Ranma quanto Shampoo saltarem para trás, pressentindo que um corpo estava para ser arremessado no meio deles. Uma figura máscula de cabelos compridos aterrissa o chão com força, quebrando a cadeira onde antes Ranma estava sentado.

Leva alguns segundos para ele se recompor, ajustando seus óculos e jogando uma mecha de cabelo para trás. Ranma, apesar de surpreso, não perde a compostura.

— E aí, Mousse! - acena amigavelmente para o mais alto – Quando foi que você voltou da China?

— Silêncio, cretino! - Mousse aponta o dedo para o menor de maneira ameaçadora - Como ousa agarrar a minha Shampoo desse jeito?!

— Aiiii Mousse, por que sempre estragar tudo?!? - Shampoo resmunga, muito enfurecida - Você seguir Shampoo até aqui??

— Ei, pro seu governo, eu não tava agarrando ninguém! - Ranma se defende, na esperança de que pelo menos Akane acreditasse nele – Essa maluca que se jogou em cima de-

— Seu insolente! - uma garra afiada sai de dentro da manga de Mousse e quase atinge o garoto de trança, mas ele desvia, saltando pelas mesas da praça enquanto as pessoas ao redor se afastam com medo – Essa é a última vez que você insulta a Shampoo desse jeito!

— Quer ela pra você?!? Pode levar!! - Ranma desvia de mais uma arma que era arremessada por de dentro da manga do amazona, dessa vez uma lança.

Mousse entra em modo atacante, lançando várias armas ocultas que saiam de suas roupas, os artistas marciais lentamente vão se afastando da praça de alimentação, tornando a pracinha do parque a sua arena.

O amazona tenta acertar Ranma com tudo o que tinha: espadas, flechas, foices, garras, panelas e até um penico. Mas nada acertava aquele maldito garoto de trança, que desviava de todos os golpes de Mousse com muita facilidade e uma tranquilidade no olhar. Ao longe, Shampoo e Akane se aproximam dos dois para ver a luta, ambas muito decepcionadas. Shampoo por ter tido seu momento de glória interrompido, e Akane pela junção dos fatores, muito confusa com tudo o que estava acontecendo, atrapalhando o seu encontro.

Sem que percebessem, acabaram se aproximando do toboágua, e percebendo isso, Ranma tem uma ideia.

— Pra quem ficou treinando na China, você não evoluiu em nada – Ranma o provoca, saltando por cima das grades que separavam a entrada do brinquedo e a fila, que logo se dispersou ao ver os dois lutadores se aproximando.

— Eu vou calar essa sua boca, Ranma! - Mousse tenta acertá-lo mais uma vez, inutilmente – Eu estou muito afrente de você agora! Pode apostar!!

Ranma fica um pouco desconfiado. Ainda que Mousse não o acertasse uma única vez, ele não tirava um sorriso confiante do rosto. Mas tudo bem, pois agora eles estavam praticamente dentro do toboágua, e logo Mousse não seria mais um problema.

O menor atrai o amazona até o carrinho do brinquedo, vai até o comando e aperta o botão de largada, indo de encontro ao seu oponente, ambos em cima do carrinho, agora em movimento.

Ranma e Mousse trocam socos e chutes, sem se desequilibrarem. Mousse felizmente ainda não parecia ter se dado conta da emboscada que Ranma armou para ele, era só uma questão de tempo até que chegassem no topo, e aí, fossem arremessados para baixo, se molhando com água fria e decretando a vitória de Ranma.

— Que treinamento mais fajuto foi esse que você fez, hein! - Ranma o provoca mais uma vez, mostrando a língua e desviando de um chute na cara – Vai, me acerta!

— Fique quieto!

O carrinho chega no topo, congela, e Mousse ainda não percebeu o perigo que corria. Ele também para um pouco com as tentativas de acertar Ranma, respirando ofegante.

— Foi bom pra você? - pergunta o menor, sarcástico.

— Tsc! Eu estou apenas começando! - Mousse o responde, apesar de exausto, muito confiante.

— Eu não diria isso se fosse você.

O carrinho dá a largada e eles são levados juntos para a queda, muito ágeis, não se desequilibraram.

— Foi bom te ver, patinho – Ranma sorri para ele, já imaginando o estrondo de água que estava por vir.

— Há! Seu tolo...

— Hein?

Ranma nem tem tempo de ficar confuso com a tranquilidade do oponente, ainda que estivesse claro qual era o seu destino, pois o carrinho atinge a piscina e ambos tomam um banho de água fria. Ranma espreme os olhos ao receber toda aquela água em sua cara, sente suas roupas ficarem pegajosas, seu seio aumenta e o corpo diminui.

Abre os olhos lentamente e dá de cara com uma vista bizarra.

— O QUÊ?!?

O grito de Ranma, agora feminino, ecoa por quase todo o parque. Mas já era de se esperar, vendo Mousse ali, todo molhado, mas ainda humano.

— Eu te disse, Ranma Saotome – o amazona faz uma pose muito soberba, jogando o seu cabelo todo ensopado para trás e enxugando seus óculos molhados – Eu estou muito afrente de você agora!!

— Mas...! Mas...! Mas...! - balbucia Ranma, agora mais baixo ainda, totalmente perplexo – Mas como?!? Você foi até Jussenkyo?? - o garoto de trança, apesar de muito confuso, ainda conseguia ter certo discernimento. Se Mousse ficou três meses na China foi muito, e é logicamente impossível ir e voltar para Jussenkyo em tão pouco tempo, sendo aquele o lugar mais afastado do país - Não, não é possível!! Não teria como... Mas... Mas então como?!? Quando?!?

— Está surpreso, Ranma? - Mousse se delicia com o desespero e uma pitada de inveja de Ranma, que tagarelava sozinho coisas desconexas – Digamos que eu tenha meus segredos.

Ele diz aquilo com um olhar muito suspeito e sugestivo, o que atiçou ainda mais a curiosidade do menor.

— Não me diga que... Você encontrou uma cura??

Os olhos de Ranma brilham, quase saltando de tanta surpresa. A forma como Mousse sorria, todo convencido e arrogante, escancarava a sua resposta, mas obviamente ele não abriria o jogo nem tão fácil. Ranma junta as duas mãos, aproveitando do lindo rostinho adorável que tinha na forma de garota, e se aproxima do mais alto com um olhar pidão, quase sedutor.

— Ai, Moussezinho... – ele alisa o braço de Mousse, que agora estava mais convencido ainda, tendo Ranma na palma de sua mão - Nós somos amigos, não somos? Amigos compartilham tudo um com o outro...

— Há! Tá achando que eu sou o quê, Ranma Saotome?! - ele faz o garoto, que praticamente se esfregava nele como uma garotinha, se recompor em um segundo.

Deu uma cotovelada em Ranma, que estava com a guarda baixa, o atirando na piscina. Fica de frente para ele, de pé, enquanto o menor estava de joelhos, estabelecendo uma clara dominância sobre ele.

— Eu esperei muito tempo por isso, Ranma... - Mousse estala os dedos das mãos, fazendo um sonoro “creck”. Ranma sente um arrepio na espinha, se vendo muito indefeso. Estava tão interessado na suposta cura de Mousse que nem conseguia mais se concentrar na luta, se debruçando naquela piscina rasa com um rosto atônito. Mousse se arma todo contra ele, preparado para atacar – Finalmente... Vou te derrotar como um homem!!

— Mousse!!

A voz de Shampoo vinda do lado de fora do brinquedo faz Mousse frear em questão de segundos, olhando para ela de imediato. Ela estava de braços cruzados e visivelmente zangada, o que o fez sentir calafrios.

— Mousse, nós ir pra casa agora! - ela ordena, muito firme.

— Mas... Mas Shampoo...! - ele implora, indo de uma postura dominante à uma muito submissa num piscar de olhos, nem parecia o mesmo homem que estava prestes a descer o sarrafo em Ranma. Agora parecia muito mais interessado em agradar a sua amada.

— Sem “mas”! Mousse vir aqui agora! - ela aponta para ele e depois aponta para o chão, como quem estivesse adestrando um cachorro.

O amazona trava uma batalha interna, de um lado, tinha Ranma, seu rival, na palma de sua mão e nunca antes tão vulnerável perante ele, de outro, Shampoo, sua amada, lhe dando ordens de forma ameaçadora, e ele nunca ousou desobedecê-la nessas circunstâncias. Mousse suspira, decepcionado, e muito obediente vai até Shampoo. Ele ao menos esperava ser recompensado por adiar o sonho de lutar contra Ranma estando em vantagem, mas recebeu um cascudo que o fez desfalecer no chão.

— Pato estúpido! - ela o pega pela gola da camisa, o arrastando no chão e o levando consigo - Nós ter longa conversa em casa!

Akane, que estava um pouco atrás, se mantinha como uma expectadora muito curiosa daquele show de horrores, mas quando viu Ranma todo molhado, atravessando a grade para fora do brinquedo, se aproxima dele com uma cara preocupada.

— Você tá bem? - ela pergunta.

— Eu pareço bem? - ele dispara, meio ríspido. Vira de costas para ela e começa a caminhar na mesma direção de Shampoo e Mousse – Eu vou até ele!

— Pera, o quê?! - Akane junta as sobrancelhas, um tanto surpresa, um tanto indignada.

— É, qual o problema? - Ranma olha para ela com indiferença, parecendo estar com a mente muito distante dali.

— Qual é o problema?!? - ela se altera um pouco, esperando que ele já soubesse a resposta, mas obviamente não era o caso.

— Ei, pra que isso?? - ele estava visivelmente desconexo da realidade, sem entender a reação dela - Você não viu? O Mousse não virou pato! Ele encontrou uma cura! - Ranma range os dentes, com fogo nos olhos – E ele vai me dizer qual é! Ah, se vai!

— Mas... Mas e eu?!?

— O que tem você?

— Ranma!! - ela aumenta o tom de voz, incrédula.

— Qual foi, Akane?! Por que você tá tão surtada?? - estava tão focado na cura de Mousse que nem percebeu que estava começando a ser grosseiro. Tudo aquilo combinado estava tornando o personagem recomposto de Akane quase insustentável.

— Eu... - começa, mordendo os lábios tentando não dar um grito de raiva – Eu pensei que estivéssemos em um encontro agora!

Ranma levanta uma sobrancelha, sem acreditar que ela estava se alterando por uma coisa dessas. E sem pensar muito bem nas consequências, dispara:

— Ah Akane, dá um tempo! Isso aqui é muito mais importante que um encontro!!

...

Silêncio.

Depois de alguns segundos, Akane arregala os olhos e se dá conta do que estava acontecendo. A forma como Ranma estava tratando aquilo como prioridade máxima, sem se importar como ela se sentia em terem seu encontro arruinado pelos amazonas, a jogou para um lugar muito familiar em sua mente. Um lugar onde ela se lembrou que um dos maiores defeitos do noivo era o egoísmo. Aquilo lhe dá uma ânsia de choro, que segura bravamente.

Ela cerra o punho, torce o nariz, respira fundo, e diz:

— Então tá Ranma, boa sorte! - responde, sem conseguir esconder sua raiva. Vira de costas e segue seu caminho – Eu vou pra casa!

— Ei, espera aí! - ele vai até ela e a segura pelo braço, incrédulo - Eu não acredito que você ficou com raiva por causa disso!

— Vá até o Mousse, Ranma! - ela puxa seu braço de volta com força, segue em frente e o deixa sem olhar para trás - Vá resolver o seu problema muito mais importante!

Dali em diante, ela não consegue mais segurar o choro, mas não deixou que ele visse. Ranma fica atônito, parado como uma estátua, ainda todo ensopado. Junta as sobrancelhas quando cai a ficha e segue na direção oposta a ela, batendo perna.

— Pois eu vou mesmo!

—--

De tardinha, Ryoga deixa sua garota no portão da casa dela. Estavam tendo aquele clássico momento de despedida entre namorados, onde já haviam passado vários e vários minutos enrolando, sem quererem se separar.

— Quando é que eu te vejo de novo, meu porquinho? - ela pergunta, com uma voz muito doce.

— Quando você quiser! - afirma, tão doce quanto ela.

— Hum... Então semana que vem? - os olhos dela brilham, fazendo um rostinho muito adorável.

— Combinado!

Após mais enrolação e algumas carícias, os namorados enfim se despedem e Akari fecha o portão. Em êxtase, o menino porco sai saltitando pelas ruas, sem nenhum rumo. Era assim que ela o deixava toda vez que se despediam, cantarolando e dançando, completamente distraído. Passaram horas muito agradáveis no parque, desfrutando de um belo piquenique feito por ela, conversaram todo tipo de coisa, riram à toa, e o melhor, se encheram de beijos e abraços inocentes que aqueciam o coraçãozinho do pobre rapaz.

Ryoga dançava pelos quarteirões sem se importar pra onde iria parar. Mas não é como se aquilo fizesse diferença para alguém como ele, que independente de quaisquer circunstâncias, iria acabar perdido.

No meio de sua performance distraída, acaba esbarrando em algo ao dobrar a rua, segurando a mão dela, percebendo que se tratava de uma pessoa, bem mais baixa que ele por sinal.

— Ah, me desculpe! - ele pede, imediatamente, antes mesmo de se recompor.

A pessoa, ainda não identificada, ajusta a postura e o olha dos pés à cabeça, arregalando os olhos ao reconhecê-lo.

— Ryoga??

“... Essa não.”.

Ele pensou, no momento em que reconheceu a voz. Demorou alguns segundos para ele ter coragem de olhá-la nos olhos, e quando o fez, seu corpo entrou em estado de ebulição, suas pernas começaram a tremer, suas mãos a suar, seu rosto ficou mais vermelho que um tomate, e ela pôde jurar que ele começou a soltar fumaça pelas orelhas.

E tudo ficava ainda pior, considerando que ele ainda estava segurando a mão dela.

A-A-A-A-Ak-A-A-Aka-Ak-Akaa-A-A-Ak-Aka-Ak-A-Akane?!?!?!

— Nossa, é você mesmo! - ela agora envolve a mão dele com suas duas mãos, sorrindo gentilmente, fazendo-o entrar à beira de um colapso nervoso – Há quanto tempo! Por onde andou?

— E-E-Eu?!? - qualquer esforço para conter os gaguejos era inútil, ele solta sua mão na tentativa de se recompor, mas ainda está nervoso demais para dizer qualquer coisa que faça o mínimo de sentido – A-Ah v-você sabe! Há há há! Eu vivo perdido por aí, passeando pelo país e tal! Recentemente estive em Hokkaido, depois Hiroshima! Há há há! É uma aventura sem fim! - sem ter domínio da própria língua, ele começa a tagarelar – Vez ou outra eu acabo parando aqui, e cá estou eu! Há há! Não pense que eu me afastei porque eu quis! Eu NUNCA faria uma coisa dessas! Há há há!

— Ah há há... Claro! Há há...

Os dois começam a rir, muito desconfortáveis e totalmente sem jeito. Ryoga estava a um passo de sair correndo e esfregar a cara no asfalto, de todas as coisas que ele podia dizer, seu cérebro escolheu aleatoriamente as mais estúpidas possíveis. Por que diabos ele falou do afastamento?? Agora ela com certeza estaria pensando que ele se afastou sim de propósito, e não seria nenhum equívoco. Para a sorte dele, não era o caso.

Mas antes que ele pudesse falar qualquer outra besteira na tentativa de deixar tudo aquilo menos esquisito, olha de relance para o rosto dela, e algo o preocupa o suficiente para voltar a falar como uma pessoa normal.

— A-Akane!

— Sim?

— Você... Você tá chorando?

Akane toca as próprias bochechas, e fica envergonhada ao descobrir que as lágrimas ainda caíam pelo seu rosto. Do momento em que saiu do parque, perdendo Ranma de vista e estando certa de que o encontro foi um fiasco, ela abriu a torneira e começou a chorar ininterruptamente. E era impossível de controlar, todas as dúvidas e inseguranças que diziam respeito a Ranma, seu futuro, e o de sua família, caíram em sua cabeça com o peso de um elefante. Se antes as coisas estavam indo até que bem, agora sente que precisaria recomeçar tudo do zero, e isso era desesperador.

O que garantia que tudo ficaria bem agora? Como ela iria manter a compostura depois dele ter sido tão egoísta? Além disso, o que ele estava fazendo com Shampoo naquela hora? E como conversar com ele sobre isso sem estragar tudo, sendo que sua vontade agora era de acabar com a raça dele? E se desse tudo errado, o que seria do plano? E de sua família?

Era muita coisa de uma vez só, e só lhe restava chorar. Felizmente foi flagrada por alguém como Ryoga, que ela tinha certeza que era de confiança.

— Ah há há... Desculpa – ela pede, envergonhada enquanto enxuga as bochechas - Não foi nada... Ai, que droga. Tô parecendo uma boba, né? Há há...

Ela ria timidamente enquanto tentava fechar aquela torneira. Ryoga não sabia os seus motivos, mas pouco importava. Ele a fita com ternura, tanta que a faz sentir um quentinho no coração.

— Não tá não... - a conforta, sua voz era calma e tenra, trazendo a menina pra um lugar que passava muita segurança. Ele tira um lenço do bolso, que felizmente foi lavado junto com sua roupa, e oferece a ela – Toma.

Era um gesto simples, mas de uma delicadeza sem tamanho. A sensibilidade de Ryoga sempre foi algo que a impressionou, e era em momentos como esse que ela se convencia de que ele era um rapaz admirável.

Akane segura o lenço com as duas mãos e enxuga seu rosto, sentindo-se revigorada com o cheiro daquele tecido recém lavado. Sorri para Ryoga, lhe arrancando um suspiro involuntário, e entrega o lenço de volta. Olha para ele nos olhos, pensa muito bem antes de falar qualquer coisa, e inspirada pelo conforto que ele lhe passava, ela cria coragem e diz:

— Ryoga...

— S-Sim?

— Por um acaso você... - ela fica cabisbaixa, um pouco envergonhada, buscando as melhores palavras - Você... já se sentiu em dúvida sobre o que sente por alguém? - ele arregala os olhos, espantado por justamente ela ser a pessoa a lhe perguntar uma coisa dessas – Digo... Já se perguntou... se estava fazendo a coisa certa?... Insistindo em algo que não faz muito sentido?... Digo...

Ela para de falar, sem saber como ser mais clara. E nem precisava, pois Ryoga conseguiu ler no rosto dela tudo o que ela quis dizer. Mas ele conseguia pensar única e exclusivamente na vontade que estava sentindo de abraçá-la.

Era uma grande ironia Akane lhe perguntar aquelas coisas, sendo ela a protagonista de todos os conflitos internos que Ryoga vem travando dentro de si nos últimos tempos, especialmente nesse um ano que esteve comprometido. E era muito, MUITO mais difícil mentir para si mesmo com Akane bem diante de seus olhos. Mas apesar dela fazer seu coração palpitar, sua respiração ficar pesada, suas pernas tremerem, sua pupila dilatar e seu rosto ficar quente, ele precisava respirar fundo e dançar conforme a música. E assim o fez.

— Sim... - responde, sem mentir.

Akane olha para ele de novo, dessa vez meio surpresa, pois não esperava uma resposta dessa. Não sabia da vida íntima de Ryoga, apenas que ele costumava ser um rapaz solitário, e agora tinha uma namorada. Mas seus laços nunca se estreitaram a ponto dela saber seus segredos, coisa que talvez ele contasse para Ranma. Ainda que ele passasse uma sensação de conforto e confiança enorme, Ryoga ainda era alguém misterioso aos olhos dela.

E por isso, ela começou a pensar que talvez tivesse se precipitado um pouco ao falar com ele. Afinal, ela não sairia contando seus dilemas mais profundos que vem lhe tirando o sono para a primeira pessoa que lhe deu abertura.

— Desculpa Ryoga, eu... - ela dá um sorriso fingido, sem saber muito bem como encerrar o que começou meio que sem querer – Eu não queria incomodar... Eu vou pra casa, tá?

Ele junta as sobrancelhas, fazendo uma cara visivelmente preocupada.

— Akane, você... - antes que pudesse continuar, morde o lábio e se contém. Ele estava prestes a estender a mão para ela mais uma vez, mas pensa que talvez seja uma má ideia, considerando que ele ainda estava tentando se afastar, por mais doloroso que fosse vê-la assim. Respira fundo e mentaliza o rosto de Akari, deixando a razão falar mais alto que a emoção pela primeira vez na vida - Você... Se cuida, tá?

Akane sorri para ele, aquecendo aquele coração mole. Qualquer coisa que ela fizesse dava esse efeito nele.

— Você também, Ryoga... Obrigada – ela passa por ele, e antes de partir, lhe dá uma última olhada muito carinhosa – E por favor, apareça mais!

Akane segue seu caminho sem olhar para trás, ele a observa ir embora até sumir pelo quarteirão, como se o hipnotizasse, quando finalmente sai do seu campo de vista, ele volta a si e retorna a caminhar sem rumo pelas ruas. O menino porco trava mais uma batalha interna, de um lado, ele queria correr até ela, oferecer todo o conforto e acalentá-la até que se sentisse melhor, e de outro, queria apenas seguir em frente e tentar ao máximo não pensar mais nela, mentalizando única e exclusivamente em Akari, que era sua namorada.

Mas por dentro, independente do que fizesse, não suportava a ideia de ver Akane daquela forma, visivelmente desamparada e sofrendo, sem fazer absolutamente nada para ajudá-la. Ele precisava ser mais forte do que esses instintos, do que essa paixão arrebatadora que já durava anos, a ponto de nem fazer mais sentido.

Apesar de um afastamento forçado na tentativa de esquecê-la, pensava nela quase todos os dias. Ele lutava bravamente para encontrar algum defeito nela, que o fizesse esquecer esse amor e focar única e exclusivamente no que estava bem diante de seus olhos... Akari.

E Akari... Nossa, o que dizer de Akari? Ela parece ter sido feita pra ele. Meiga, gentil, amorosa, e acima de tudo, apaixonada por ele independente de sua maldição. Especialmente por sua maldição, na verdade. Ela era perfeita, definitivamente, e ele reforçava isso com frequência.

Ele tinha que esquecer Akane. Ele PRECISAVA esquecer Akane...

Mas parecia impossível.

Desde o primeiro momento em que viu aquela menina, seu mundo ganhou cores indescritíveis. E ficou mais claro ainda de que era amor quando ela o tomou nos braços. Seu abraço era inigualável, e o fazia se sentir mais vivo do que nunca. E ela era tão forte. Obstinada. Destemida. Carinhosa. Esperta. Linda...

Ryoga começa a chorar quando se pega pensando nela mais uma vez, abarrotado pelo peso da culpa ao não conseguir esquecer um amor, enquanto vivia outro. E dramático como era, começou a correr pelos quarteirões em direção ao pôr-do-sol, reproduzindo uma cena digna de filme.

— Eu sou um canalha!! - grita para si mesmo, ecoando pelas ruas – Um canalha! Um canalha! Um ca-!

De repente, um jato d'água lhe atinge, culpa de uma senhora que estava passando a mangueira nas plantas. Seu corpo se encolhe o suficiente para caber na palma da mão de alguém, sacode as orelhinhas ensopadas e começa a andar de quatro, ainda meio atordoado.

O porco dá mais uma volta no quarteirão, sem rumo algum, quando uma voz lhe chama e ele sente seu pequeno corpinho se arrepiar por completo.

— P-chan?!?

“Não... De novo não...”.

O porquinho olha lentamente para trás e encontra a última coisa que queria ver: uma Akane, ainda chorosa e agora muito emocionada ao encontrar seu porquinho depois de tantos meses sem vê-lo. Na sua estupidez, acabou indo parar justamente no portão da casa dos Tendo.

Akane entra numa mistura de euforia e melancolia ao ver seu bichinho, que reapareceu justo no momento em que ela mais precisava. Ele sempre foi seu maior confidente, melhor ouvinte, e mais fiel amigo. Nos últimos tempos, quando sua vida virou de cabeça para baixo, foi quando mais sentiu falta dele.

Mas ele, por sua vez, começa a correr na direção oposta, como se estivesse fugindo dela, a deixando desesperada.

— Não P-chan, por favor! Não vá! - ela implora, correndo atrás do porquinho aos prantos – Eu preciso de você! Por favor!

O porco segue correndo sem olhar para trás, decidido a não cair na tentação de ficar perto dela mais uma vez.

“Me perdoe, Akane...”, pensa consigo mesmo enquanto lágrimas rolavam no seu rostinho, “Mas eu não posso mais ficar perto de você... Não posso!!”.

— Ai!!

Ela tropeça e acaba caindo de joelhos, tornando impossível que ele não olhasse para trás. E quando a vê ali, de joelhos no chão, tão triste e vulnerável, seu coração se derrete. Com as mãos raladas, ela tenta enxugar seu rosto, totalmente desamparada.

— P-chan... - chora, aos soluços.

Era preciso ter um coração de pedra para não se comover com o estado da menina, implorando pela atenção da única coisa que podia consolá-la naquele momento, que era o seu bichinho. Sem que pensasse direito, a criaturinha se aproxima lentamente com o rabinho entre as pernas. E quando ela finalmente percebe, o bichinho estava bem ao seu lado, acariciando o seu joelho ralado com a cabeça.

Akane sorri, emocionada, e agarra o bichinho, ambos choram abraçados, ficando presos ali por alguns bons minutos.

— P-chan!!

—--

— Ai meu bebê, por onde você andou? - Akane atravessa a porta de seu quarto com o porco em seu colo, deita-se na cama com ele e o ergue para cima, como uma criança que brinca de aviãozinho - Eu cheguei a pensar que nunca mais fosse te ver... Não me assusta assim nunca mais, ouviu?

O pobre homem no corpo de um porquinho encarna o personagem para agradar a menina, quando estavam sozinhos no quarto dela, ele não era mais Ryoga. Era P-chan.

Do tempo que passou fora sem dar notícias, se pegou sentindo pena dela várias vezes, imaginando que Akane sentia falta do seu bichinho de estimação. Mas evitava pensar nisso ao máximo, já que os sentimentos impróprios que tinha por ela eram um problema muito maior do que se preocupar em manter aquela vida dupla.

Era diferente com Akari, com quem podia ser ele mesmo independente da forma que estivesse, e o tratamento seria o mesmo. Já Akane, lhe mostrava duas facetas. Uma para Ryoga, com quem cultivava uma amizade sincera, porém com limites, e outra para P-chan, a quem contava suas dores e sentimentos mais profundos como uma espécie de diário vivo. Devido a isso, ele a conhecia como a palma de sua mão. Embora suas intenções não fossem ruins, sabia que era injusto, e por muitas vezes pensou em acabar de vez com aquela farsa, mas não tinha coragem.

Este era mais um ponto positivo do afastamento forçado, gradativamente tirando P-chan da vida dela, até que ele não existisse mais. Mas bem, lá estava ele, deitado ao lado dela mais uma vez enquanto recebia o melhor dos chamegos, em especial um cafuné que o deixava no céu. Ainda que Akane fosse muito bruta, seu carinho era muito delicado. Inigualável.

— Que bom que você apareceu... - ela suspira e sente um choro chegando, seus olhos se enchem de lágrimas e o porco fica inquieto – Tem acontecido tanta coisa... Tá tão difícil...

Depois de semanas carregando todo aquele peso sozinha, sem ter com quem conversar, ela finalmente poderia abrir o berreiro e colocar tudo para fora. E o melhor, sabia que aquela criaturinha não iria julgá-la. P-chan não tira os olhos dela por um segundo, tentando confortá-la alisando suas bochechas com o focinho.

Akane abraça o porco, ajustando a cabecinha dele em seu pescoço, respira fundo, e começa:

— Existe um... Conselho das Artes Marciais...

—--

O porco, agora homem, estava no telhado da casa dos Tendo olhando para a lua, reflexivo e distante. Esperou ela dormir, exausta de tanto chorar, e saiu do quarto dela, indo direto para o banheiro, depois acabou parando em cima da casa. Estava muito difícil de digerir tudo o que havia escutado, e muito menos de segurar suas lágrimas emotivas, provocadas pela pena que sentia de Akane. Agora ele era a única pessoa além dela a saber o seu segredo, e talvez aquele fosse um fardo muito pesado a se carregar.

Ela lhe contou tudo, cada detalhe, da chegada da carta do Conselho, às coisas que escutou o pai dizer, à decisão que tomou, até suas tentativas de encontro com Ranma, e tudo o que deu errado em seguida. Agora entendia porque aquela menina parecia tão desamparada, e ela tinha todos os motivos do mundo para tal. Não era justo alguém tão boa e gentil como Akane passar por aquilo. Queria ajudá-la. Queria poder fazer qualquer coisa.

Ryoga rebobina todos os anos que conviveu com Akane como se fosse um filme, e todos os momentos em que presenciou os pais Tendo e Saotome insistindo no noivado ganharam um novo significado. O noivado em si, principalmente, agora estava enxergando com outros olhos. A união que ele por anos invejou, tinha um propósito muito complexo por trás, e tinha o poder de definir o destino da menina para sempre.

Akane, orgulhosa e obstinada, estava tentando levar aquilo com naturalidade, sem se abrir diretamente com Ranma para, de certa forma, dividir a responsabilidade com ele. Ela era o tipo de pessoa que queria tomar as dores de todo mundo, e só de imaginar ela carregando todo aquele peso sozinha, apenas se abrindo com um porquinho de estimação, era de dar dó. Mas ela lidava com tudo aquilo com tanta resiliência, tanta determinação, tanta força... Akane era, sem dúvida, admirável. Não era difícil entender porque Ryoga era completamente apaixonado por ela.

Se ao menos Ranma não fosse tão patife e egoísta, ele conseguiria ler os sinais de Akane e colaborar. Mas da forma como ela chorava desesperadamente, tava na cara que as coisas não estavam saindo muito como planejado. E ao imaginar o rival tendo um típico surto de ego, com Akane bem ali, sofrendo, quando precisa da colaboração dele, deu nos nervos do menino porco.

Ele conseguia ver com clareza toda a dor que ela estava sentindo, todo o desespero e a exaustão de carregar o peso daquelas responsabilidades sozinha, e isso ativava nele um senso de proteção muito aguçado. Ryoga era alguém que moveria mares e terras para proteger quem ama, e ainda que seus sentimentos por Akane fossem uma inconveniência, eram grandes demais para serem ignorados num momento como aquele. Diante do sofrimento dela, os conflitos dele se tornaram pequenos.

Ele se viu incapaz de seguir com o plano de se afastar. Se viu incapaz de deixá-la agora. Akane precisava de ajuda. E dadas as circunstâncias, só parecia ter uma solução.

— É isso...!

Um estalo percorre a mente do rapaz, fazendo-o se levantar num pulo, olhando para os céus com cara de quem acabou de clarear a mente.

— Não tem outro jeito... É o que precisa ser feito...!

Ryoga franze o cenho e cerra seus punhos, sem tirar os olhos da lua, como quem conversasse com ela e pedisse orientação. Mas ele tinha sangue nos olhos, parecia mais decidido do que nunca.

— Ranma Saotome... - ele morde o lábio com tanta força que chega a machucar, uma lágrima solitária escorre em seu rosto, selando um pacto que Ryoga fazia para si mesmo - ...Você vai se casar com Akane Tendo!!

Nunca, nem ele e nem ninguém, imaginavam ver o dia em que ele proferiria palavras como aquelas, sendo ele alguém que nunca mediu esforços para se demonstrar contra aquela união. Mas só uma coisa importava agora.

Fazer Akane feliz.

Ele seria capaz de tudo para vê-la feliz.

— Nem que eu precise te arrastar até a igreja... Você vai casar com ela!!

Se o casamento com Ranma era a solução dos problemas da menina, ele faria o que fosse preciso para que isso acontecesse, ainda que fosse contra tudo o que ele sentiu por tanto tempo. E ainda sentia. Mas seus sentimentos por Akane eram justamente a peça chave que fazia aquela engrenagem girar.

— E também... - seu olhar fica distante e melancólico - Eu finalmente... Vou conseguir te esquecer, Akane...

...

Okay, isso não fazia o menor sentido.

Na cabeça do rapaz, a partir do momento em que Ranma e Akane se tornassem marido e mulher, não haveria mais a mínima chance do seu coração cultivar esperanças de um futuro com menina. A linha de raciocínio era um tanto equivocada. Nada garantiria que seus sentimentos por Akane morreriam no momento em que ela casasse com Ranma de vez, mas na cabeça confusa de Ryoga, aquilo fazia total sentido. Não era o objetivo principal, mas era um bônus muito interessante.

Parecia um plano estúpido. E era. Bancar o cupido para a mulher que ama se casar com seu rival, com quem por anos brigou, principalmente por causa dela. Era a receita pro desastre. Mas Ryoga era tonto demais para enxergar as coisas com clareza. E bem, se aquele era o desejo de Akane, pouco importava os detalhes.

Ela casa com o Ranma. A academia estará a salvo. A Akane fica feliz.

E de quebra, seu coração para de criar esperanças de um dia ficar com ela. E viverá feliz para sempre com Akari.

Pronto. Plano perfeito. Tudo resolvido.

(Só que não.)

Ryoga faz uma pose confiante, mas ainda chorosa. Aponta o dedo para a lua, imaginando o rosto de Ranma, e dá um grito que ecoa por todo o quarteirão.

— Me aguarde, Ranma Saotome!! Esse casamento vai acontecer!! Nem que eu morra!!!

Ainda que qualquer um da família Tendo pudesse ouvi-lo berrar de cima do telhado, ele pouco se importava, esperneando suas promessas como se fossem um mantra, digno de um espetáculo. Estaria disposto a ajudar Akane, como um fiel escudeiro, ou um anjo da guarda, nem que sua vida dependesse disso.

Mais uma peripécia do garoto perdido.