Lorena

Eu não tinha ideia de que horas eram quando me levantei e me arrastei até o meu quarto, só sabia que tinha passado muito tempo em silêncio, deitada no chão duro. Quando senti meus ombros latejarem e meu pescoço ficar dormente, percebi que era hora de sair dali. Empurrei a porta e entrei. Me sentei na cama e cruzei os braços ao redor das minhas pernas dobradas, mas, por algum motivo, eu não estava confortável assim. Eu achava difícil respirar e meus ombros estavam pesados, como se uma gaivota gorda tivesse pousado ali e cagado nas minhas costas. Ou seja, estava horrível, frustrada, triste e com um tantinho de raiva. Então, eu me desembolei e abaixei, esticando o braço por baixo da cama, até sentir meus dedos tocarem algo fofinho. Puxei Damien para fora e o encarei. Eu nem me lembrava da última vez que o tinha pegado, mas a poeira sobre ele e as teias de aranha entre suas orelhas pontudas me davam uma pista. Dei-lhe uma sacudida rápida e espanei com as mãos os pontos mais sujos, levantando uma pequena nuvem de poeira.

Abracei o gato de pelúcia com o corpo todo, me encolhendo, e apoiei meu queixo em sua cabeça. Apesar de tê-lo deixado de lado um tempo, Damien tinha estado comigo nos meus piores momentos. Ele era um dos poucos vestígios do meu passado, tinha estado comigo na morte dos meus pais, mesmo que eu não lembrasse o nome dele também, e agora, com Dorothea... Eu me lembrava de quando tinha acordado aqui, nesta casa, segurando a mão de Dorothea e com apenas um brinquedo sem nome no outro braço. Pelo menos até a senhora explicar que aquele era Damien, meu melhor amigo, e que ele ia cuidar de mim. Mesmo que eu não me lembrasse disso.

Desde então, ele era Damien. Desde sempre.

Tentei me aconchegar no bichinho de pelúcia, esfregando o rosto molhado nele. Mas, quando virei a cabeça, percebi dois pares de olhos metálicos me encarando.

Aff, é claro que eu tinha esquecido que tinha escondido Um e Dois no quarto... E agora os dois estavam ao lado da cabeceira da cama, calados, fingindo que não me viam. Bom saber que eles podiam ser discretos, quando queriam muito. Quando perceberam que eu os tinha visto, os dois pigarrearam.

— Ah... — Dois começou a dizer.

Bufei e sacudi a cabeça.

Eu não quero ouvir. Não quero ouvir nada.

Apertei os olhos.

— Nem pense em continuar.

— Claro, sem problemas.

A aldraba fechou a boca com um clique metálico.

Encarei os dois e depois revirei os olhos. Não ia adiantar eles só ficarem calados, tentando passar despercebidos. Não ia funcionar, não pra mim... Eu queria ficar sozinha.

Joguei Damien de lado na cama, peguei as duas aldrabas, uma em cada mão, e as coloquei no corredor, apoiadas na parede, só pra não rolarem por aí como moedas, ou ficarem encarando o teto. Os dois sempre reclamavam até meus ouvidos sangrarem quando isso acontecia. E eu não estava no humor pra isso...

— Ei... — Um me chamou, antes que eu fechasse a porta do quarto, e me encarou de volta. — Nós vamos ficar de olho em tudo, tá bom? Caso você precise dormir...

Por essa eu não esperava... Eu sabia que não ia adiantar de nada eles estarem de olho na casa. O que iam fazer? Tagarelar até o invasor se arrepender de ter entrado? Mas, por outro lado, os dois também sabiam que nada ia acontecer. A única pessoa de quem eu tinha precisado esconder os dois tinha sido Dorothea, e agora... Funguei. Seu olhar parecia sincero. E era melhor do que um “sinto muito”. Eu já tinha cansado de ouvir isso aos cinco anos de idade. Arregalei os olhos, encarando os irmãos por um longo minuto em silêncio. Definitivamente aquilo era a última coisa que eu esperava ouvir de suas bocas frouxas.

Então, só sacudi a cabeça, antes de fechar a porta e finalmente poder ficar sozinha outra vez.

Dei três passos em direção à minha cama, até pisar em alguma coisa que machucou meu pé. Mas que me...! Abaixei a cabeça e encarei o amuleto de Byakko. Ele devia ter rolado para fora na hora em que eu puxei Damien de baixo da cama. Estiquei o braço e o peguei pelo fio que costumava ficar o tempo todo no meu pescoço. Virei o corpo e soltei meu peso sobre a cama. Puxei meu gato de pelúcia pelo rabo e o coloquei sentado na minha frente, apoiado nas minhas pernas. Encarei o brinquedo e o amuleto ainda pendurado nos meus dedos... Assim, lado a lado, os dois até que se pareciam.

Abaixei o braço, guardei Damien ao lado da cama e segurei o amuleto com as duas mãos. Quanto tempo já tinha se passado desde que Byakko tinha desaparecido com Dorothea? Eu não tinha ideia... Não sabia como essas coisas funcionavam, ou se demoravam, mas estava ficando preocupada. Quer dizer, ele ia voltar, né? Eu não me lembrava se ele tinha prometido...

Escondi o amuleto nas mãos e suspirei.

Ouvi três batidas na janela atrás de mim e virei a cabeça num movimento um pouco rápido demais, que fez meu pescoço dolorido reclamar. Byakko ainda estava com a mão levantada e os dedos dobrados tocando o batente de madeira. Ele estava em pé, do lado de fora, esperando eu dizer alguma coisa para entrar.

— Eu pensei que os símbolos te obrigavam a entrar pela porta da frente — comecei.

Ele ergueu o canto da boca, dando um meio sorriso que eu acho que nunca tinha o visto usar antes.

— Não, só me obriga a bater. Dorothea não estava pronta pra saber como eu entrava furtivamente pela janela do seu quarto desde que você me roubou. Então usei a porta.

Levantei uma sobrancelha, me lembrando da primeira vez que ele aparecera aqui, parecendo uma assombração.

— Furtivamente?

Ele pulou e se sentou na janela.

— Dorothea nunca te perdoaria por roubar dos Espíritos.

Tossi, meio confusa se ria ou retrucava, então dei-lhe uma travesseirada. Byakko riu e cobriu o rosto com o braço. Ouvi suas pernas baterem na parede do lado de fora quando ele se defendeu. Aparentemente, ele não cabia mais sentado de corpo todo na ombreira da janela, como antigamente. Não sem ter que encolher bastante as próprias pernas. É claro que Byakko tinha “se tornado” um adulto nesse meio tempo, igual a mim. Tinha sido assim, desde que nós nos conhecemos. Mas ele não tinha parado naquele um dedo mais alto que eu, de antes de ir embora. Não... Eu parara de crescer, e ele... A nossa diferença de altura, agora, devia ser de quase uma cabeça. Talvez mais, já que eu não estava em pé ao seu lado para comparar. Pelo menos sua túnica com capuz parecia, finalmente, servir-lhe direito. Ela estava desabotoada na frente, como uma capa com mangas largas, e ele usava roupas mais leves por baixo.

Encarei Byakko e ele ficou sério. Depois, abaixou o rosto.

— Outra vez eu aqui, desperdiçando seu tempo... — Ele voltou a me encarar, meio de canto de olho, com o rosto ainda baixo. — Afinal, você não tem uma eternidade para esperar.

Eu senti a última frase cair no meu estômago como uma pedra. Uma das últimas coisas que eu tinha dito a ele, antes de manda-lo sumir. Antes de ser uma idiota e de insinuar que ele não era meu amigo o bastante, por causa do que tinha feito. Ou, na verdade, deixado de fazer... Mas nem era isso que estava me incomodando, e sim o fato do que, nas últimas vinte e quatro horas, essa frase tinha se tornado dramaticamente verdadeira. Tudo porque eu precisava trazê-lo de volta...

É claro que Byakko não sabia disso. Eu não tinha contado nada sobre Isméria e nosso “acordo”, e nem pretendia fazer isso agora. Eu não me sentia forte o suficiente pra isso... Ele também não tinha dito aquilo com remorso nem raiva, e sim com um pouco de... aceitação, eu acho? Como se tivesse passado muito tempo repetindo aquelas palavras pra si mesmo e refletindo sobre o que significavam.

É claro que ele não sabia de mim e de Isméria. É claro... Repeti pra mim mesma, até acreditar. Eu não tinha dado nenhuma pista. A última coisa que queria era que ele descobrisse agora. O que ele faria, se soubesse? Talvez ele desaparecesse de novo, procurando o Espírito de sorriso cruel pelo mundo afora, para desfazer nosso acordo. Isso não podia acontecer. Byakko estava aqui para finalmente me contar a verdade, como tinha prometido para Dorothea.

E eu não queria perde-lo outra vez...

Como se soubesse o que se passava na minha cabeça, Byakko me estendeu a mão e sorriu pra mim.

— Vem, vamos arrumar um lugar pra conversar.

Apertei o amuleto numa mão, deixei que escorregasse para o meu bolso, e entreguei a outra para Byakko. Ele pulou da janela para o lado de fora e me puxou.

— Para onde nós vamos? — Perguntei, passando as pernas pelo peitoril da janela.

Ele coçou o nariz.

— Para onde tudo começou.

Ah, maravilha, o Byakko das respostas vagas voltou, Bufei.

Escorreguei para o chão e ajeitei minhas roupas.

— Você comeu, não comeu? — Byakko estava me encarando.

Eah...

Escondi as mãos atrás do corpo.

— Claro!

Eu tinha dado toda a comida para Dorothea, mas ele também não precisava saber disso. De qualquer forma, eu não estava com fome.

Byakko me puxou pela mão.

— Então vem.

***

A última coisa que eu imaginava era que Byakko me levasse até seu velho templo. O lugar tinha sido completamente destruído desde a invasão de Lemuel e os outros, e nunca mais fora o mesmo. Muito menos depois que o Espírito partira... Desde então, o mar não parecia mais se importar em invadi-lo, diferente de quando Byakko vivia lá. Eu sabia. Tinha voltado, depois de tudo, mesmo que não tenha tido coragem de entrar, e tivesse apenas olhado tudo do lado de fora, através das portas arrancadas esfregando os braços desconfortavelmente. Tudo estava encharcado e cheio de areia, agora que a maré tinha abaixado; os espelhos d’água na entrada tinham se enchido de água salgada e de vida marinha; cracas tinham começado a se multiplicar pelas paredes em dois anos. O lugar não estava só abandonado: tinha se transformado em ruínas tão rápido como um corpo em decomposição. Como se tivesse perdido sua alma...

Mas Byakko tinha pedido para ver o que aconteceu com seus próprios olhos. Eu imaginava que fosse porque Dorothea tinha falado àquela hora, do que tinha acontecido.... Ele não pareceu surpreso por não ver o anel de pedras secas ao redor do prédio, mas sua boca se tornou uma linha fina quando ele tocou as portas tombadas para dentro, chamuscadas e arrancadas de suas dobradiças.

Subi a escada atrás dele, segurando no corrimão para não escorregar no chão molhado. Atravessei o umbral sem portas também e levantei a mão para pegar um dos archotes na entrada. Estava escuro lá dentro, apesar de parte do telhado ter rachado e caído, e eu queria acender uma chama para me guiar. Infelizmente, a madeira estava tão encharcada quanto o lugar todo, e o óleo tinha sido completamente levado. Pelo visto, o mar continuava subindo tão alto quanto o teto do templo, chegando a quase cobrir a abóbada completamente. Suspirei. Byakko continuou avançando sem olhar para trás, sem conseguir tirar os olhos dos arredores – das paredes marcadas, o chão sujo, a madeira queimada – e eu o segui, apesar da escuridão.

Ele caminhou pelo meio do salão, tocando as pilastras sujas de fuligem, e depois os sulcos de garras que ele mesmo tinha feito, alinhando as pontas dos dedos com cada marca paralela, como se as medisse. Deixou sua mão escorregar pelo mármore e virou o rosto, evitando as lembranças que as marcas deviam despertar. Ele caminhou, empurrando para fora do caminho as pedras que tinham ruído do teto, e continuou em frente. Deu três passos, se abaixou e pegou algo com um brilho metálico – o sino de prata da entrada, vi melhor quando ele o levantou e encarou – e o apertou nas mãos, com os ombros retos, tensos. Depois, seguiu até o altar e colocou o amuleto lá em cima. Apesar de ser feito de rocha maciça, nem mesmo o altar passara ileso: um de seus lados tinha sido esmigalhado, como se várias pessoas o tivessem golpeado ao mesmo tempo, até rachar e soltar pedaços. Mesmo assim, Byakko colocou o sino lá em cima, como colocava as papoulas os outros objetos que tinham desaparecido – se levados pelo mar ou pelas pessoas eu não sabia – e segurou o altar pelas laterais, com as duas mãos, se apoiando nele até seus dedos ficarem brancos de tanta força com que o apertava.

Por fim, as pessoas não tinham só destruído o lugar, como tinham saqueado tudo o que havia de valioso: principalmente o rubi e a safira do painel decorado logo diante de nós, atrás do altar. Byakko encarou as bocas vazias dos dois felinos esculpidos em alto-relevo, se demorando um pouco mais no escuro, à direita. Ele franziu as sobrancelhas, calado.

— Ainda bem que você levou aquele rubi enorme que ficava no quarto dos fundos — comentei. — Acho que as pessoas teriam matado umas às outras para pôr as mãos nele.

Byakko pôs a própria mão sobre o peito, com o olhar meio distante. Quase não dava pra saber se ele tinha me escutado ou não...

Byakko soltou o altar e, como que pra provar que prestava atenção, foi na direção do quarto atrás do painel esculpido.

Dei dois passos pra frente e alcancei o altar. Levantei a mão, peguei o sininho de prata e o levantei na altura do rosto. O metal estava escurecido e precisava de uma limpeza. De um jeito ou de outro, não havia motivo pra ele continuar aqui, jogado de lado... Deixei-o cair no meu bolso e sorri. A sensação de juntar tesouros da Praia Velha continuava a mesma: a de juntar pedaços de um quebra-cabeça, uma história perdida. Passei a mão pelo altar de pedra, contornando suas laterais com os dedos. O lugar onde Byakko tinha segurado continuava morno. Pus minha mão lá, na mesma posição. E senti, abaixo do tampo mais largo do altar, onde a ponta dos meus dedos se apoiavam, mais quatro sulcos no formato de garras.

Levantei a cabeça e procurei Byakko. Ele já tinha desaparecido de vista, então o segui até o quarto. Quando cheguei, ele estava torcendo o nariz para a cama encharcada. Ele me ouviu me aproximar e levantou a cabeça.

— Não tem lugar pra você sentar e conversarmos... — Ele apontou a cama e depois as cadeiras, todas em pedaços no chão.

A mesa também tinha sido partida no meio, e estava caída no chão. Pulei os pedaços de madeira que vi no chão e me abaixei na frente do tigre de pedra que emergia da parede. Sua boca vazia estava limpa, já que o mar tinha lavado tudo, inclusive o sangue seco. Virei a cabeça. O espelho continuava em seu lugar, ali ao lado, e me perguntei porque ninguém o tinha levado. Depois, olhei ao redor. Eu nunca tinha pensado nisso, mas...

— Por que tem um quarto dentro de um templo se os Espíritos nunca dormem? — Perguntei.

Byakko, caminhando em círculos pelo cômodo, com a mão no queixo, respondeu:

— O quarto não era meu.

A luz que entrava pela janela aberta era fraca. Talvez não fosse o suficiente para ele perceber minha cara de “ah, jura?”, porque ele se virou e saiu do quarto sem explicar direito. Ele olhou para os lados, como se procurasse alguma coisa.

Suspirei e o segui. Não dei três passos, ainda com a cara meio fechada, e chutei algo caído no chão. Tropecei num pedaço das cadeiras destruídas, escorreguei no chão molhado e caí de costas, sentada.

Ai...

Quando vi, Byakko estava na minha frente, como se tivesse percorrido a distância de alguns passos num piscar de olhos. Ele estendeu a mão pra mim.

— Se machucou?

Sacudi a cabeça, negando. Segurei sua mão e ele me puxou. Seus olhos prateados brilhando como espelhos.

— Me desculpe, eu devia ter imaginado que estava escuro pra você caminhar por aqui.

Ele encarou a saída, um retângulo desenhado pela luz fraca da lua, e depois se virou pra mim:

— Eu sei onde podemos conversar.

E me levou até a saída, segurando minha mão e desviando cuidadosamente de todas as pedras caídas no caminho.

— Aonde nós vamos? — Perguntei, descendo as escadas atrás dele.

— Para onde eu costumava ficar para ver o céu. Lá em cima — apontou a abóbada.

Olhei em volta, procurando uma maneira de subir. As paredes eram polidas e, molhadas, pareciam escorregadias. Não havia nenhuma irregularidade, as janelas eram pequenas e o pé direito duplo deixava o teto muito, muito alto para se alcançar. Não, não dava mesmo pra subir.

— Eu não sei se consigo chegar até lá...

Byakko me encarou.

— Eu levo você — ele disse.

— Mas como?

Ele estendeu os braços para mim.

— Do mesmo jeito que subimos o penhasco.

Corei.

— Isso é mesmo necessário?

Byakko abaixou as mãos e coçou a nuca.

— Bom, nós podemos voltar também, pra sua casa. Eu só queria ver o que tinha acontecido aqui, e já terminei...

Voltar para casa significaria voltar a pensar em Dorothea. Tradicionalmente, eu só poderia arranjar seu velório amanhã, quando amanhecesse, e a última coisa que eu queria era ficar antecipando isso. Pensando nisso...

— Não, tudo bem... A gente pode subir.

Byakko sorriu e se aproximou de mim, até eu estar cercada pelo seu corpo. Pegou minha mão e a passou por cima próprio ombro.

— Você vai ter que se segurar.

Corei, me lembrando da última vez que tinha feito isso, subindo o penhasco nas costas de Byakko. Só que, dessa vez, eu ia estar bem-debaixo-do-rosto-dele. Mas, antes que eu pudesse desistir da ideia, ele passou um braço pela minha cintura e o outro por baixo dos meus joelhos, e me levantou. Prendi o fôlego, tentando não pensar demais em... Tudo aquilo. Certo, talvez eu devesse tentar fechar os olhos e parar de... Agora, eu era capaz de sentir seu hálito soprando meus cabelos. Alguma vez eu já tinha reparado no ritmo da respiração dele antes? Porque eu não me lembrava. Eu tinha quase certeza de que, antes dele partir, ele não respirava... Nem suas mãos eram tão quentes, nem seu toque era assim. Mas o cheiro... Seu cheiro não tinha mudado nada. Como o de seu jardim de papoulas selvagens, pedras e maresia.

Tá certo, deixar de olhar não estava ajudando.

Quando abri os olhos, Byakko estava me encarando. Maravilha...

— Você pode continuar de olhos fechados, se quiser — Ele disse no meu ouvido.

Com certeza não tinha sido de propósito, mas aquilo me causou um arrepio.

— Por que eu faria isso?

Ele abaixou a cabeça e me encarou de volta, com as sobrancelhas levantadas.

— Não sei. Você estava de olhos fechados enquanto caía do penhasco. E fechou os olhos quando te peguei no colo pra subirmos. Você não tem... Medo de altura, tem?

Meu constrangimento dançou em minha garganta e me fez engasgar. Não, eu não tinha medo de altura. Pessoas com medo de altura não encontram Espíritos malignos no alto de penhascos e nem pulam de lá. Não, pera, eu não pulei de lá, eu... Argh... Por que minha cabeça estava uma bagunça?!

Bati no ombro dele com a mão fechada:

— Anda logo!

Ele riu, como se não tivesse sentido nada, abaixou-se para pegar impulso e pulou. Por um segundo, parecia que eu estava voando. A brisa do mar me acertou forte no rosto, e eu vi o mar se afastar. Por fim, começamos a descer, e ele pousou suavemente na abóbada de pedra, como se ele — e principalmente eu — não pesasse nada.

Como um gato.

Byakko

Eu não esperava que tudo fosse estar tão diferente.

Um pouco bagunçado, como tinham dito... Não dava pra negar. Eu tinha tirado o rubi do seu lugar sem nem pensar em como a magia do templo desapareceria com isso e, no fim, o lugar tinha deixado de ser sagrado. Tinha deixado de ser um templo pra se tornar uma construção qualquer. Tínhamos perdido nossa ligação, e agora o rubi palpitava – cheio de magia – dentro do meu peito. Por causa disso, o mar invadira tudo, arrastando lixo e sujeira, como se finalmente estivesse tomando posse do lugar, depois de eu tê-lo mantido afastado por séculos. Eu quase conseguia ouvir as ondas ciciando à alguns passos, contentes, e depois se calando quando eu as encarava. Sim, elas ainda se lembravam... E não iam me provocar por qualquer coisa.

Pior: sem sua magia, o lugar tinha deixado de inspirar pudor e respeito. Ou talvez nem fosse esse o motivo... O que eu sabia era que até as pessoas da ilha tinham vindo e vandalizado tudo, agredindo o lugar com as próprias mãos, roubando o pouco que eu tinha guardado do passado. Eu tinha feito tanto para deixar o lugar como um lembrete daquela noite, da destruição, do que eu tinha perdido... E até isso tinha sido tirado de mim. Mesmo que fosse um lugar cheio de memórias dolorosas, o templo tinha sido meu lar por muito, muito tempo. E agora, como eu temia, eu me sentia como se não tivesse para onde voltar.

Não podia simplesmente me sentar do lado de dentro agora, segurando a respiração e esperando a maré baixar.

Eu também não imaginava em quantas pessoas marcadas tinham ficado para trás, nesse meio tempo em que vinha tentando ensinar os Thanats a me ajudar com meu trabalho, e que estivera com Foh. Mas também tinha sido descuido meu... Damon poderia ter impedido tudo isso de acontecer, mas as ordens que eu lhe dera o tinham limitado sem que eu tivesse percebido... Minha culpa por ser superprotetor de novo. Mas isso também não importava mais. Eu já estava aqui, e tinha cuidado de tudo. Depois conversaria com todos para que nada do tipo se repetisse. Só me perguntava como os ilhéus reagiriam à tantas pessoas que não acordariam quando amanhecesse, depois de dois anos sem a Morte botar os pés na ilha. Que tipo de histórias inventariam? O que Lorena ia pensar quando descobrisse...?

Lorena...

Ela pigarreou. Eu tinha pulado, carregando-a para cima do telhado, e esquecido de soltá-la. Ela empurrou meus braços devagar e se desvencilhou de mim. Botou uma mecha de cabelo atrás da orelha e deu alguns passos adiante, onde o telhado era plano – só um pouco inclinado, para a água não empoçar no topo – até chegar à abóbada que tinha encarado de longe por anos. Estendeu a mão e tocou os arabescos metálicos que decoravam a pedra polida, em silêncio.

Eu não sabia se era Lorena quem tinha mudado, ou se era eu que agora conseguia perceber muito mais dela do que antes. Ser um Espírito no Mundo Físico era como interagir com tudo de dentro de uma bolha: com os sentidos limitados. Era ser uma simples imitação, agora eu tinha certeza. Mas estar aqui, com um corpo mortal, era outra coisa... Eu conseguia sentir o cheiro salgado da maresia, o toque fresco do vento na minha pele, e o gosto amargo do nervosismo na minha boca. Tudo porque eu não sabia se ela tinha mudado mesmo – e tinha medo – ou se era eu quem estava “vendo” demais, prestando atenção nas coisas que antes não conseguia perceber.

Estar perto dela, de volta, era a coisa mais fascinante que eu já sentira. Foh me alertara que um corpo mortal tinha anseios que eu nunca tinha sentido antes – como a fome e a sede –, e que, de repente, poderiam me controlar ou enlouquecer. Estar com Lorena parecia despertar um comichão sob a minha pele, um calor em meu ventre, e, ao mesmo tempo, acalmava o monstro dentro de mim.

Sempre que eu a tinha nos braços, sentia seu cheiro e ouvia sua voz tão perto do meu rosto, eu não queria que o momento passasse... Fora a única coisa em que conseguira pensar quando a resgatara e subíramos o penhasco, enquanto ela se segurava em minhas costas com força. Sim, eu me sentira aliviado por ela estar viva, por estar bem, mas de repente a sensação de seu corpo contra o meu tinha sido a única coisa na minha cabeça, e isso me assustava um pouco. Ou me assustou quando eu voltei a ter consciência dos próprios pensamentos. Lorena me indagara, quando chegáramos ao topo, sobre o porquê da minha respiração acelerada, e eu dissera que estava nervoso, exaltado. Talvez devesse ter respondido que era medo, medo de perde-la, mas nem eu conseguia acreditar nessa mentira. Era muito mais do que isso, era algo em meu corpo, algo que eu ainda não entendia.

Como algo que eu queria, mas não sabia como conseguir.

A mesma sensação me dominara novamente, agora a pouco, com ela nos braços. Meu coração tão novo martelava em meu peito, fogo corria por minhas veias. E, agora que ela tinha se afastado, tudo parecia um pouco frio e minha garganta sentia algo como sede. Cada toque dela na minha pele sacudia meu corpo com pequenos calafrios, e curava minha alma; cada toque consegui me desconstruir inteiro, e me tornar alguém diferente, alguém que experimentara mais do que um dia imaginara. Alguém melhor.

E, mesmo assim, aqui estávamos, enquanto eu não podia mais evitar lhe contar toda a verdade. Tudo o que eu temia que fosse afastá-la de mim, de vez...

Mas eu tinha prometido pra mim mesmo – e tinha prometido pra ela, em meus pensamentos. A verdade era dela também, para ouvir de uma vez por todas.

Lorena se sentou, apoiando as costas na abóbada, e eu caminhei até ela para me sentar ao seu lado. Eu estava aqui, para fazer o que tinha me convencido de fazer desde que partira, e ainda assim não sabia por onde começar. Encarei o horizonte, a praia, e suspirei.

— Dava para ver a cidade inteira daqui... — eu disse, apontando a mão pra um ponto no meio do caminho, entre onde as ondas arrebentavam e o céu começava. — Muito tempo atrás, o mar ficava muito mais abaixo. Havia pessoas, casas de pedra e praias de areia branca. Havia tanta vida...

Abaixei o braço e o apoiei no chão ao meu lado. Senti algo espetar minha mão e me virei para olhar: uma concha, que a maré alta devia ter trazido mais cedo. Peguei ela e a girei nos meus dedos, evitando o olhar focado de Lorena. Depois, atirei a concha longe, de volta às ondas.

Ainda sem encará-la, continuei:

— Mas tudo se foi por causa do meu irmão e sua estúpida aposta...

Lorena cruzou os braços.

— Você nunca falou sobre ele antes...

Finalmente me virei pra ela.

— Você não parece surpresa com o fato de que eu tenho um irmão.

— Bem... —Ela esfregou os braços, como se tivesse sido flagrada fazendo algo errado. Ou sabendo de algo errado.

Ri só uma vez, baixinho.

— Eu devia ter imaginado que Um e Dois não segurariam suas línguas muito tempo sem mim por perto — dei meu melhor palpite e ela confirmou com um aceno. Eles nunca tinham sido bons com segredos. Nem mesmo antes...

Pigarreei.

— Não é como você imagina, não é como sangue... Espíritos não tem pai nem mãe. Não nascem de outros Espíritos. Nós só... existimos. Yasuko e eu... surgimos praticamente ao mesmo tempo. Algo como irmãos gêmeos.

— Não parece tão difícil de entender — ela comentou.

— Não... eu acho que não — Coloquei a mão na nuca. — O que importa é que meu irmão sempre foi alguém... presunçoso. Então, quando Isméria lhe propôs uma aposta, ele não pensou por um segundo em recusar, mesmo considerando o que estava em jogo... A Serpente acreditava que meu irmão seria capaz de se apaixonar por uma humana, mesmo que Yasuko tivesse passado a eternidade menosprezando os humanos. Então ele, que sempre enxergou sentimentos como uma fraqueza mortal e se imaginou estar acima de tal falha “moral”, aceitou a aposta... — Abaixei a cabeça, encarando o chão. — E perdeu.

— E o que Yasuko tinha apostado? — Lorena perguntou, segurando minha mão.

Abri a boca. Não... Fechei os olhos e esfreguei a mão nas pálpebras. Eu precisava explicar a história antes, ou ela não entenderia a aposta. Eu conseguia ouvir meu próprio pulso nos meus ouvidos, uma batida alta e acelerada. Não ia me acostumar com isso nunca... Esse aperto no peito. Mas ela precisava saber.

Respirei fundo e apertei sua mão de volta, encarando-a.

— Talvez pareça que eu estou mudando de assunto, mas tem algo mais que você precisa entender. A história de dois Espíritos que se tornaram mortais... por amor.

Lorena

Então, Byakko me contou a história de dois Espíritos chamados Feng e Huang. E como, depois deles, por benção ou maldição do Universo, Espíritos que se apaixonam tornam-se mortais. Feng e Huang foram apenas os primeiros, ele disse, e houveram outros que não se tornaram mortais pelo mesmo motivo, nem da mesma maneira. Mas, em todos os casos, as pessoas eram o motivo central da “queda”, como ele chamava. Eles caíam porque se fascinavam por nós. Porque éramos todos mais parecidos do que os Espíritos estavam dispostos a admitir. E, para os que compreendiam isso, os limites entre mortalidade e imortalidade mudavam, para sempre.

Toquei Byakko no ombro e o senti se encolher um pouco, quase como se estivesse distraído.

— Mas... O que isso tem a ver com o resto? — Perguntei.

— Isméria queria o lugar de meu irmão: seu poder, seu trono, tudo... Então tentou torna-lo mortal, como fez com Feng e Huang. Se Yasuko se tornasse mortal, alguém precisaria ocupar seu posto. Era o que a Serpente planejava... Mas meu irmão nunca se transformou, apesar de tudo. Ele jamais admitiria as semelhanças, os sentimentos... Então, Isméria ganhou a aposta, mas não conseguiu o que queria. E ela não é do tipo que gosta de perder...

Byakko cruzou os braços, escondendo as próprias mãos de mim. Mas ele não conseguia esconder seus olhos, por mais que não me encarasse: suas pupilas se afunilando à cada instante, até se tornarem cortes escuros e quase desaparecerem. Entredentes, ele continuou:

— Então, furiosa, a Serpente foi atrás de sua parte na aposta: a vida de todos na cidade que eu e Yasuko deveríamos proteger...

E então eu entendi o rancor de Byakko...

— Ela fez com que o mar subisse e matasse todos. Todos cujas almas “lhe pertenciam”, pela força de sua aposta com meu irmão. Então, uma onda gigantesca veio e destruiu tudo... Ou, quase tudo... Porque Espíritos não podem invadir nem atacar os templos uns dos outros... Então, quando a onda chegou aqui, ela passou ao redor, e não entrou... Deixando viva a única pessoa que estava abrigada aqui: uma garota. Minty...

Byakko cobriu os olhos com os punhos fechados.

— Eu não estava lá. Estava atrás de Yasuko, tentando impedir que ele fizesse mais alguma bobagem. Mas eu senti... Senti quando aconteceu. Quando todos morreram... E, quando voltei correndo...

Byakko pareceu engasgar. Seus dedos brancos e suas pupilas cada vez mais parecidas com cicatrizes finas. Tentei me aproximar mais dele, até nos tocarmos, e passei o braço pelo braço dele, devagar. Não sabia como ele reagiria, porque imagens horríveis pareciam se passar no fundo de seus olhos. Mas, diante do meu toque, seus músculos pareceram relaxar um pouco, e tomei coragem para abraça-lo de verdade dessa vez.

Ele respirava muito rápido, e suspirou antes de continuar:

— Eu nunca entreguei as almas à Isméria... Cinco mil almas, e ela não teve nenhuma delas naquela noite. Por vingança, como eu não lhe dera o que queria, ela jurou perseguir a garota que sobrevivera... por toda a eternidade, se fosse preciso. Mas ela teria a vida dela, e a de seus filhos, ou de seus netos, em suas mãos — ele me encarou, com as sobrancelhas franzidas. — Então ela tentou matar você, e seus pais, e seus avós, e os avós deles, durante anos e anos e anos... Porque eu não lhe dei o que era dela... Eu havia jurado para Minty que protegeria ela e toda sua família da ira de Isméria e, no entanto, em algum momento, eu sempre falhava... Eu falhei em proteger a cidade que tinha me acolhido, falhei em proteger a linhagem sobrevivente, e falhei com você...

O corpo de Byakko sacudiu sob os meus braços e eu vi algo que nunca imaginara: eu o vi chorar. Por algum motivo, ele tentou virar o rosto, como se estivesse procurando algo no horizonte, do outro lado. Mas eu segurei seu rosto e o puxei pra mim, devagar, até que ele me encarasse. Suas pupilas redondas e escuras, seus olhos marejados, e o rosto úmido. Levantei a mão para tirar o cabelo grudado na lateral do seu rosto e ele a segurou, entrelaçando nossos dedos.

— Quando cheguei e encontrei sua casa em chamas, eu me desesperei... Eu tinha certeza de que tinha falhado de novo, era capaz de sentir que seus pais estavam mortos. Mas, quando entrei, eu ouvi você chamando. E tirei você de lá. Você não conseguia entender quando eu dizia que seus pais nunca voltariam, e era culpa minha, só minha... — Ele engoliu em seco. — Então, quando você pediu pra fazer a dor passar... eu fiz você esquecer.

Ele deu de ombros, um pouco trêmulo.

— Eu achava que isso te pouparia do sofrimento por alguns anos, até estar preparada para entender, pra viver o luto. Mas, quando chegou a hora de lhe devolver as memórias, eu senti medo... Eu tinha me aproximado tanto de você, que temi que a verdade fosse te fazer me odiar tanto quanto eu me odeio... E, ironicamente, foi ter escondido a verdade de você que nos afastou naquela noite. Eu sinto muito, Lóris... Me desculpa...

Sacudi a cabeça, sentindo meus olhos arderem, e segurei o rosto de Byakko com as duas mãos. Apoiei a testa na dele e apertei os olhos. Se ele me visse chorando agora, como estava, quão pior ia se sentir? Não, eu não podia...

— Tudo bem — eu sussurrei. — Vai ficar tudo bem...

E o deixei apoiar a cabeça no meu ombro.