Lorena

Acabei decidindo voltar pra casa mais cedo também. Sozinha. Dorothea ficaria no festival até o sol nascer, porque era a tradição. Diziam que ir embora antes de todas as cerimônias deixava os Espíritos ofendidos. Como se eles fossem os anfitriões..., pensei com um pouco só de ironia. Não é nem como se os Espíritos que eu conheço comparecessem de verdade.

Eu duvidava que fossem sequer ver uma menina meio triste indo embora.

Mesmo assim, não pude deixar de me lembrar de Byakko – me segurei para não segurar o amuleto só de pensar nele. Eu tinha olhado ele de cima a baixo hoje, enquanto conversávamos, e sabia que tinha algo o incomodando. Dava pra ver pela maneira como seus dedos estavam sempre tensos, curvados como garras. E então, quando Mab comentou com ele sobre terem que conversa com Tâmi, eu vi quando ele fechou as mãos em punho. Tinha até pensado em perguntar o que havia de errado, mas ele acabara de se desculpar e de dizer como, na verdade, ele queria estar comigo. Isso tinha me deixado feliz, e eu só... não queria estragar tudo por lhe perguntar algo que nem devia ter nada a ver comigo. Então, ao invés disso, decidi me concentrar apenas nele, tipo... Desde quando Byakko é mais alto que eu?, eu tinha pensado na hora. Não era uma diferença muito grande, só um dedo, mas estava lá. Eu tinha reparado enquanto encarava ele.

Tinha mais uma coisa estranha também... Toquei minha mão, a que Byakko tinha segurado, enquanto me desviava de um bando de crianças correndo na trilha, em direção à clareira. Parecia esquisito dizer isso, mas Byakko sempre tinha a pele fria. Não de um jeito ruim ou incômodo, mas talvez um pouco sem vida. Como se eu estivesse segurando alguma coisa, e não alguém. Mas hoje, quando ele tinha pegado minha mão pra me fazer soltar o amuleto, tinha sido diferente. Eu podia jurar que tinha sentido o calor dos seus dedos na minha pele. E aquilo tinha me dado um arrepio...

Sacudi minha cabeça, afastando essas ideias estranhas da cabeça quando vi a casa de Dorothea mais na frente. Senti alguma coisa roçar na minha perna e ouvi um miado baixo. Parei e me agachei pra coçar a orelha de Damon.

— O festival não tava bom pra você também, não?

O gato esfregou os bigodes na minha mão e me devolveu um olhar contente. Me levantei e continuei a andar, olhando pra ele.

— Vem. Deve ter sobrado alguma comida na cozinha. Eu te dou, se estiver com fome.

E ele me seguiu até em casa.

O lugar estava escuro, e eu estranhei, porque Dorothea sempre deixava uma lanterna acesa na mesa, para ninguém tropeçar e se machucar quando chegasse. A lamparina estava lá, mas apagada. Chequei o óleo. Não tinha acabado, então eu a acendi. Um vento bizarro soprou, apagando a chama. No escuro outra vez, percebi um fiapo de luz escapando através de uma fresta da porta do meu quarto, a primeira no corredor. Eu não tinha deixado nada aceso no meu quarto, mas talvez Dorothea tivesse deixado, já que a lamparina da cozinha estava apagada. Cheguei mais perto e, de repente, Damon ficou estranhamente agitado. O gato começou a miar alto, rosnar, trançar entre minhas pernas e até me arranhar.

— Ai! — Praguejei, pisando forte no chão pra afugentar Damon com o barulho. — O que tem de errado com você?!

Empurrei a porta, iluminando o corredor, e me deparei com alguém lá dentro. Uma mulher de aparência animalesca estava sentada na minha cama, segurando uma vela, sem fazer nem uma careta apesar da cera quente pingando nos seus dedos. Seus olhos eram amarelos e brilhantes, como os de uma cobra, com pupilas muito finas e uma pintura escura ao redor deles; algumas áreas de seu corpo eram cobertas por escamas negras como seu cabelo longo, e nesses pontos sua pele descamava, como se a estivesse trocando.

Parei na mesma hora, ainda segurando a porta entreaberta e encarando-a.

— Olá... — Ela me saudou com o que deveria ter sido um sorriso simpático, mas que só parecia assustador. Ainda mais naquele rosto com ossos tão saltados que, na luz fraca, mais parecia uma máscara

No mesmo instante, Damon saiu de trás de mim e chiou para a mulher, feroz, com o corpo todo eriçado. Ela se inclinou para encarar o gato, como se seu pescoço fosse um pouco flexível demais, e sibilou.

— Eu não tenho tempo para servos, Damon — ela estava falando com... meu gato? — Vá procurar quem realmente pode me deter e nos deixe conversar à sós.

Ela acenou sua mão e, com um miado agudo e estrangulado, Damon desapareceu.

Levei a mão à boca, como se pudesse segurar o guincho de susto que deixei escapar. Olhei para todos os lados, só para ter certeza de que Damon não tinha se escondido em algum lugar durante o milésimo de segundo que eu piscara. Mas não. Ele tinha mesmo desaparecido.

Encarei a mulher que sorria, fitando por alguns segundos o ponto vazio onde o gato estivera, e então levantou apenas o olhar pra mim, fechando a cara como se não pudesse ser flagrada se divertindo tanto. Depois, ela levantou o corpo e se endireitou. Eu ainda estava em choque quando ela me encarou.

— Pronto, agora não seremos interrompidas.... Por enquanto.

Finalmente engasguei. Ela tinha feito Damon desaparecer como os Espíritos faziam para ir de um lugar pro outro...

— O-o quê você fez?!

Seus olhos se estreitaram.

— Consegui para nós um pouco de privacidade. E mandei um recado...

Que?!

— Recado? Mas pra quem?

Ela levantou a vela que segurava, iluminando bem seu sorriso.

— Você logo vai saber. Mas enquanto isso... — a mulher passou os dedos finos da mão vazia pelo próprio queixo, movendo o rosto de um lado para o outro, como se quisesse ter certeza de que eu estava vendo ela bem. — Não está escuro demais? Você está me vendo direito?

Pisquei.

— S-sim — respondi, confusa.

Ela parou de se exibir e me encarou de volta.

— E você sabe quem eu sou?

Ela olhava pra mim como se já tivéssemos nos visto antes, por mais que a mulher na minha frente claramente fosse um Espírito, com sua aparência meio animalesca e sua capacidade de mandar Damon pra longe com um aceno. Eu não me lembrava dela, nem sabia seu nome. Se eu me lembrava bem, Byakko tinha sido o primeiro Espírito que eu conhecera. Mas esse era o problema... Eu não me lembrava.

— Não.... Me desculpe, mas eu perdi algumas das minhas memórias...

— Tssss — ela me interrompeu fazendo um ruído de divertimento que mais pareceu um sibilo. — Perdeu, é?

Dei um passo atrás, instintivamente, e a porta do quarto se fechou com um estrondo, sozinha. Olhei para a saída trancada e depois pro Espírito, vendo seu sorriso crescer de tamanho a cada instante. Foi quando finalmente percebi que ela, quem quer que fosse, não ia me deixar ir a lugar nenhum.

— O que você quer? — Perguntei.

— Ah, algo que anda me escapando há muito, muito tempo. Algo que me pertence, claro. Mas você é a pessoa certa para me ajudar.

Respirei e soltei o ar com força pela boca, olhando ao redor, procurando outra saída. Foi quando me lembrei do amuleto. Se você estiver em perigo, ou com medo, você deve segurá-lo assim, e chamar por mim. Chamar meu nome, Byakko tinha dito. Tentei levar a mão ao peito devagar, sem levantar suspeitas, mas alguma coisa me fez cambalear. De repente, os móveis, as portas, as janelas, a casa inteira começou a tremer. Pensei que a estrutura de madeira fosse cair em cima de nós, mas o Espírito na minha frente não parecia assustada. E não porque, se acontecesse, nada daquilo a machucaria. Não. Ela sorria, como se tudo fizesse parte do seu plano.

— Nenhuma... vida... lhe pertence...

A voz de Byakko ecoou pelo pequeno quarto, muito alta, mais grave, e furiosa. Mesmo assim, eu não o via em lugar nenhum. Era como se sua voz estivesse saindo das paredes, ou ecoando dentro do meu crânio, em todo lugar. A mesma voz nada infantil que ele usara quando me expulsou do tempo, anos atrás.

O ar se tornou rarefeito, sem cheiro, sem vida.

— Nem pode barganha-las, como você e meu irmão pensam! — A voz de Byakko continuou.

Uma mão leve pousou em meu ombro, me puxando pra dentro de um abraço sem calor.

— Querida, você não vai querer ver isso — Mab disse no meu ouvido, tentando me tirar dali.

Me virei para o Espírito dos Sonhos. Ela sorriu para mim de uma maneira tranquilizadora, mas depois virou seu olhar inquieto para o Espírito na minha cama, e me segurou com ainda mais força.

— Mab, o que está acontecendo? — Eu gritei, tentando ser ouvida no meio do barulho ensurdecedor das coisas sacolejando. — E Byakko?

Quando disse o nome dele, tudo ficou muito quieto. Mab se voltou para mim, me encarando com preocupação, e a mulher – Espírito, me corrigi –, mantinha o sorriso em seu rosto, como se algo naquilo tudo a deixasse muito, muito contente. Foi quando percebi que a porta, as janelas e os móveis não mais sacudiam, e o chão tinha parado de tremer.

Em meio ao silêncio, o rangido da porta se abrindo lentamente me fez dar um pulo, mesmo com Mab me segurando firmemente.

Byakko entrou, de cabeça baixa e encapuzado, e se colocou entre mim e a mulher. Apesar de parecer magrelo e não muito forte, com seu físico de adolescente, o ar ao seu redor ondulava e estalava, como o ar quente que sobe de uma fogueira, e uma neblina branca girava em volta dos seus tornozelos.

— Byakko...? — Chamei.

Ele se virou para mim, e sob a penumbra de seu capuz eu vi seu olho esquerdo brilhar como uma lanterna, e sua pupila fina e feroz como um corte de lâmina. Arfei. Nunca tinha visto os olhos dele daquele jeito. Quando o encarei, nem parecia que era Byakko na minha frente. Eu pisquei, e sua imagem pareceu oscilar por um segundo, mudar, mas foi tão rápido que eu nem consegui pensar no que tinha acabado de ver. No que ele era...

Ele piscou, e sua pupila se dilatou um pouco, olhando pra mim. Mesmo assim, ainda pareciam os olhos de um animal furioso...

— Por favor, Lóris, vá com Mab. Eu não quero que você se machuque.

Mab me puxou pelo braço, mas eu não me movi. Não conseguia fazer outra coisa além de encarar Byakko de volta.

O Espírito na minha cama gargalhou.

— Ah, dessa vez eu não vim brigar com você, Byakko. Todos sabemos que você não vai acabar comigo nem eu com voc~e: eu não consigo tirar você do meu caminho, e você continua com sua velha política de não ferir os mortais, então seria apenas destruição desnecessária, mesmo que divertida. Não, não.... — Ela enxugou o canto do olho, como se tivesse chorado de tanto rir, e continuou: — Eu vim apenas falar com a garota. Algo do interesse dela, é claro.

Falar comigo...?

Byakko cerrou os punhos e rosnou como um animal. Mesmo de costas para mim e vestindo a capa e o capuz largos, eu podia perceber a tensão em seus músculos, como se estivessem prontos pra atacar. Qualquer que fosse o assunto, ele não estava nada afim de deixar ela falar. E, considerando toda a sensação de perigo que ela me passava – além da tentativa clara de me manter presa e ao seu alcance – eu não sabia se queria ouvir.

— Isméria...

Ah, então esse é o nome dela.

— O quê? — Ela se virou de Byakko para mim.

Isméria não pareceu nada assustada com a ameaça velada de Byakko, e dramatizou, deixando a voz mais fina e afetada, como se imitasse alguém:

— Até parece que você não quer que a pobrezinha tenha suas memórias de volta...

Minhas memórias...?

— O que você disse? — Dei um passo cambaleante para frente e mais dois em seguida, até não estar mais protegida pelo corpo de Byakko, mas ao seu lado. Quando involuntariamente segurei em seu braço, buscando um apoio, ele pareceu petrificado.

Ela estreitou os olhos pra mim, me avaliando.

— Eu quis dizer que sei como você pode ter suas memórias de volta...

Apertei o braço de Byakko ainda mais forte.

— Sabe? Mas como?

Isméria fez um carão frio e impaciente.

— Isso importa?

— Lorena... — Mab me chamou, voltando a me segurar pelo ombro. Mas eu não tinha ouvidos para nada além do que aquele Espírito tinha começado a dizer.

— Mas... O que eu devo fazer? Eu faço qualquer coisa pra ter minhas memórias de volta. Qualquer coisa!

Eu ouvi os dentes de Byakko rangerem do meu lado.

— Ela está mentindo, Lóris... — ele apertou meu pulso com o mesmo desespero que vi em seus olhos. O que quer que tivesse acontecido, eles pareciam normais agora, com pupilas arredondadas, e tinham... medo, eu acho. era a primeira vez que o via ter medo...

— Ela não pode te ajudar... — ele continuou, diante do meu silêncio.

Sacudi a cabeça.

— Como você sabe...? — Perguntei. — Por que ela viria até aqui para mentir para mim?

Ele desviou o olhar, escondendo-se debaixo do capuz como se fosse uma concha. Seu aperto machucava meu pulso, parecia que tinha garras arranhando minha pele, mas eu nem sentia nada. Eu só conseguia olhar pra ele e pra sua careta de...

— Como você sabe?! — Repeti.

— Conte para ela, Byakko... — Isméria o provocou.

Ele emitiu um grunhido acuado.

— Porque fui eu... — confessou, enfim, com um sussurro débil. — Fui eu quem lhe tirou as memórias...

— V-você...? — Foi tudo o que consegui gaguejar. Precisava ter certeza de que tinha ouvido direito...

Ele só foi capaz de assentir.

Byakko ainda encarava algum ponto entre os seus pés. A névoa ao redor dele se contorcia como um animal assustado, e toda aquela energia que tinha emanado dele mais cedo tinha desaparecido. Ele tinha se apagado, como se só quisesse sair dali. Sua mão em minha pele parecia tão agradável quanto um pedaço de brasa; meu instinto gritava para que puxasse meu braço de volta. Não o queria ele me tocando, queria correr. Mas só consegui chorar.

Byakko engasgou quando viu as lágrimas escorrendo dos meus olhos.

— Por que você fez isso? — Perguntei.

Ele fechou os olhos.

— Porque nenhuma criança deveria ver seus pais morrerem na sua frente... E porque você pediu para que a dor parasse...

O que ele disse fez meu sangue ferver. Eu nunca pediria por aquilo. Nunca!

— Eu tinha cinco anos... Cinco! Eu não acredito... E por que você nunca me contou? Você teve quatro anos para me contar a verdade!

A cada grito que eu dava, Byakko se encolhia.

— Eu não sabia como lhe dizer...

Tentei respirar fundo.

— É, mas diferente de você, eu não tenho uma eternidade para esperar... — Puxei meu braço da mão dele, afastando-me o máximo que podia no quarto pequeno. — Por favor, vá embora...

— Mas, Lóris...

— Não me chame assim! — Gritei, fazendo ele praticamente sumir debaixo do capuz. — Só os meus amigos podem me chamar assim...

Foi então que ele voltou a abrir os olhos, e me devolveu um olhar torturado. Eu pisquei, e então vi o corpo de Byakko regredir vários anos. De repente, ele parecia um garoto de treze anos outra vez, como no dia em que me salvara de me afogar no mar. Depois, voltou a ter doze, como quando nos conhecemos e ele me disse ser a própria Morte, como se isso fosse mais importante que seu nome. E, finalmente, ele tinha algo em torno de cinco anos, um corpo pequenininho e frágil, provavelmente a aparência que tinha quando me tirara as memórias...

Aos meus pés, sua imagem começou a tremular e minguar, como se fosse feita de fumaça e espelhos. A névoa aos seus pés o cobriu completamente e, quando ela se dissipou, ele tinha ido embora, em silêncio.

Em algum momento durante a briga, Isméria, o Espírito com sorriso de serpente, tinha desaparecido. Quando percebi isso, algo gritou dentro de mim dizendo que ela, com certeza, tinha conseguido o que queria. Desabei aos pés da minha cama, chorando ainda mais intensamente.

— Lorena...

Mab se aproximou. Agarrei a barra de sua roupa e pedi, com a voz fraquejando:

— Por favor, Mab, eu sei o que você vai tentar fazer.... Vai tentar me consolar da maneira que puder, mas eu não quero.... Não quero sonhar hoje. Se eu conseguir dormir, quero dormir como se estivesse morta...

Ela concordou com um aceno e finalmente me deixou sozinha.

Byakko

Ah, eu estava novamente no escuro.... Perdido. Jogado no chão daquele salão enorme e vazio, uma alegoria mordaz de como eu me sentia por dentro. Um coração cercado por uma angústia sombria.

Um coração? Ninguém me dissera que seria assim. Não devia ser sempre quente e agradável? Como..., como estar com ela. Como era estar com ela...

Não conseguia entender como os Mortais podiam passar por isto. O que faziam com essa dor dentro deles? Havia algum remédio ou magia, como os que usavam para curar seus cortes no corpo? Ela nunca me perdoaria... E quanto mais eu ecoava essas palavras, mais meu peito doía.

Abri os olhos e vi, através das janelas da abóbada, a lua minguando– um sorriso escarnecedor como o de Isméria, mas costurado na escuridão da noite. Meus olhos ardiam, eu latejava por dentro e, ainda assim, meu peito parecia frio e cheio de um nada tão angustiante e pesado que era quase difícil me levantar e me mover.

De pé, eu cambaleei até o fundo do templo, e entrei no cômodo com a cama que não passava de uma representação qualquer da ligação que eu tinha com aquelas paredes, mas que nunca fora realmente minha. A magia de verdade estava na estátua na parede e no enorme rubi entre suas presas. Era aquele o conjunto que tornavam, a mim e ao templo, um só Corpo e Espírito.

Soltei o rubi da boca de pedra e me sentei no chão, de repente sem forças. Um líquido denso e vermelho manchava minhas mãos onde eu tocava a gema e, dentro dela, algo pulsava num ritmo acelerado e constante. Uma gota límpida caiu em meus dedos, tentando lavar o sangue.

Mas Espíritos não sangravam.

E Espíritos não choravam...