A Maldição da Coisa

Capítulo 5 - Tempestade


Já fazia uma semana que Ben e eu conversávamos diariamente na biblioteca. Percebi que, além de não ter amigos, a criança não recebia atenção suficiente de seus pais, que, segundo ele, estavam sempre muito ocupados com trabalho. Devido ao sentimento de solidão, Ben tornou-se muito tímido, desconfiado e independente. Me identificava muito com ele, apesar da diferença de dez anos entre nós.

Em um sábado que deveria ser tranquilo, às 10 a.m., Ben adentrou a biblioteca mais cedo que o costume. Estava ofegante, suas bochechas vermelhas e os olhos assustados. Logo imaginei que deveria ser algum dos meninos que zombavam dele que estaria o perseguindo. Assim que notou que eu o observava, Ben sorriu em disfarce e tentou se recompor. Claro que não ignorei a situação. Me aproximei e perguntei:

- Bom dia, Ben. O que faz aqui a essa hora? Veio correndo?

- Oi, Nancy. Eu... Perdi o sono de manhã. Decidi então vir... Pra cá. – Ele parecia pensar antes de completar as frases.

- Por que chegou tão ofegante? Alguém te incomodou no caminho?

Apesar de já ter recuperado o fôlego, o susto não abandonara os olhos do menino.

- Não. Quer dizer, eu acho que não. – Era clara a hesitação dele em me contar o que tinha acontecido. – Na verdade, aconteceu uma coisa muito esquisita lá em casa. Mas não tenho certeza se foi real.

- Você teve um pesadelo? – Ben não soube me responder. – Ei, você pode ser sincero comigo. Eu também tenho pesadelos. – Ele respirou fundo.

- Não sei se foi só isso. Olha, Nancy, eu não quero que você me ache louco.

- Mais do que eu já acho? – Ele me encarou com deboche. – Pirralho, você passa as tardes lendo livros de história e arquitetura e sua amiga mais próxima é uma fodida na vida aos vinte anos. Sério, não tem como piorar.

- Tá bom, senhora fodida na vida aos vinte anos. Eu falo. Mas prometa me levar a sério. – Concordei com a cabeça. – Bom, eu acordei cedo hoje porque realmente perdi o sono de manhã, mas levantei e comecei a trabalhar em uma maquete da cidade de Derry que estou fazendo desde que as férias começaram. Estou montando a parte da nascente do rio que passa por debaixo da ponte de Derry, sabe? E eu já estava terminando quando coisas estranhas começaram a acontecer. – Ben me olhou misterioso e percorreu os olhos pela biblioteca, como se procurasse algo. Inconscientemente, fiz o mesmo. Continuou:

- Naquele momento, um vento muito gelado entrou pela janela e derrubou o protótipo de ponte que eu estava montando para colocar na maquete depois de construir o rio. Peguei a ponte do chão e, quando fui fechar a janela... Estava caindo uma tempestade!

- Espera aí, Ben. Uma tempestade? Pirralho, olhe o sol que está fazendo! – Apontei para a janela.

- Você prometeu que não ia me achar louco. – Revirei os olhos. – Eu vi sim uma tempestade acontecendo do lado de fora da minha janela. E isso não foi o pior! – Sua voz havia aumentado de tom. – A ponte, que antes estava no meu quarto, agora estava sendo levada pela correnteza rumo a um bueiro! E, quando chegou em frente ao buraco na calçada, eu vi claramente uma mão saindo e a pegando. Uma mão com luva branca e o braço coberto com uma manga de bolinhas coloridas. – Confesso que estava me segurando para não rir da imaginação de Ben. Ele finalizou. – E então, quando eu olhei para a maquete, a ponte não estava ali onde havia deixado. Ela sumiu. Eu desci as escadas para fora e adivinha...

- Não estava chovendo! – Gritei em tom de adivinhação e recebi olhares de reprovação das poucas pessoas presentes ao meu redor.

- Isso mesmo! – Ben concordou. Estava um lindo dia como esse que estamos vendo. Eu fiquei tão assustado que saí correndo e só parei quando reparei que já estava aqui.

Ele suspirou e me encarou, esperando meu veredito final sobre a história. Eu o fitava com certo humor nos olhos, e até sentia vergonha de mim mesma por ter vontade de rir do conto “assustador” de meu amigo.

- Ben... Você teve um pesadelo. Claro que foi um sonho. Veja bem, está sol, sequer choveu por esses dias. E sobre a ponte, tenho certeza que está no meio da bagunça que deve estar seu quarto. – Sorri com simpatia.

A decepção tomou conta do rosto da criança a minha frente. Estava óbvio que ele queria que eu concordasse com a bizarrice climática e com o ser no bueiro, mas eu não podia dar respaldo para mais imaginações infantis. Ele assentiu em silêncio e percebi que gostaria de ficar sozinho com seus livros. Voltei ao trabalho.

***

Acabei saindo mais tarde que de costume. Sra. Anna teve um imprevisto familiar e tive de fechar a biblioteca, não sem antes arrumar absolutamente tudo em seu devido lugar. Estava exausta. Já me encontrava do lado de fora prestes a ir embora, só faltava achar a chave da porta da entrada principal na minha bolsa. Enquanto procurava, alguns pingos de água me assustaram. Olhei para cima e vi nuvens escuras e pesadas tomando conta do céu.

- O que é is... – Um trovão alto me interrompeu. Tratei logo de achar a chave e trancar a porta. Precisava chegar em casa antes do temporal.

Enquanto andava apressada, os pingos de chuva foram se tornando cada vez mais volumosos. O vento já se fazia presente, trazendo alguns grãos de terra aos meus olhos e me atrapalhando a visão. Estava perto de casa quando percebi uma correnteza se formando no meio-fio da calçada e reparei em algo flutuando rapidamente em direção a um bueiro que ficava a alguns metros atrás de mim. Quando o objeto passou ao meu lado, consegui reconhecer. Era uma ponte de papel. A ponte de Ben.

Me voltei rapidamente para trás para pegar o objeto bem a tempo de observar uma mão saindo de dentro do bueiro. Exatamente como Ben havia descrito naquela mesma manhã. Senti meu coração acelerar, o frio me tomar e o mesmo medo descomunal dos pesadelos crescer dentro mim. Reuni coragem e andei lentamente até o bueiro. Me abaixei cuidadosamente e olhei para o buraco profundo, escuro e vazio. Soltei o ar, pensando por um momento que havia sido somente minha imaginação traiçoeira se deixado levar pela história de meu amigo, mas então um som grave e malicioso saiu de dentro do bueiro a minha frente.

- Você vai flutuar também.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.