A Maldição da Coisa

Capítulo 3 - Biblioteca


A boate já estava bem cheia quando cheguei. Alguns rostos levemente conhecidos me olharam em surpresa enquanto eu passava entre os corpos até chegar ao bar. Pedi uma cerveja e a lembrança de meu pai foi automática. Nunca tive o costume de beber, mesmo após sua morte, mas hoje eu desejava não me lembrar nem de meu nome. Fiquei um bom tempo perto do bar, apenas bebendo e observando as pessoas. Não era boa em socializar, meu círculo extremamente limitado de amigos provava isso. Quando comecei a me sentir um pouco mais leve pelo álcool, caminhei até a pista de dança, na qual diversas pessoas se divertiam. Comecei a tentar copiar alguns passos do pessoal a minha volta – tentativa totalmente falha – e, com isso, consegui adentrar alguns grupos e dançar com desconhecidos. Infelizmente não passou disso. Apesar de reparar em diversos rostos bonitos, percebi que nenhum deles correspondeu meus olhares. É, ou devia estar com uma aparência totalmente acabada ou minha reputação na cidade era péssima. Na verdade, creio que as duas opções estavam corretas.

Saí da boate quando o cansaço se apresentou forte e a minha frustração já estava superando os efeitos do álcool. Senti o ar frio da madrugada me recobrindo e fechei a jaqueta de couro preta a minha volta. Naquele momento, em frente à boate, apesar das muitas pessoas que ali dividiam a rua comigo, me senti sozinha. Vulnerável. Uma sensação de tristeza muito forte me invadiu e eu me vi lutando contra as lágrimas. Antes que alguém percebesse – ou se importasse -, segui o caminho até minha casa. Apesar de ser madrugada, Derry não era uma cidade conhecida por seus crimes. As taxas de assaltos, estupros e assassinatos eram mais baixas que as de outras cidades. Além, eu conhecia muito bem os locais que eu frequentava e sabia que era relativamente seguro uma mulher voltar a sua casa sozinha durante a noite por ali. Mas aquele dia, tudo parecia diferente, em especial quando cheguei à velha ponte de Derry.

***

E então, minha coragem de me jogar da ponte naquele exato momento foi embora por completo quando vi o balão vermelho subir em minha direção. Quando ele estava prestes a encostar em meu rosto, empurrei meu corpo com força para trás e senti meus pés tocarem o chão novamente. O balão seguiu flutuando acima da ponte e pude ler, apesar da dificuldade causada pela bebida, a frase “Eu amo Derry”.

Um medo inexplicável tomou conta de mim. Inconscientemente eu me abaixei, as costas coladas no concreto áspero. Sentia-me imóvel, como se alguma coisa fosse aparecer na ponte a qualquer momento e eu já soubesse que não teria chance de fugir. Permaneci assim por incontáveis minutos, até que vi os faróis de um carro se aproximando. Meu coração batia forte, a respiração falhava e a luz que antes piscava acima de mim se apagou por completo. Então o carro se aproximou e passou reto, continuando seu caminho. Enquanto tentava recuperar meus sentidos, meu cérebro já começava a me dizer o quão idiota e irracional eu estava sendo. Devido à adrenalina, o nível de álcool do meu sangue deve ter caído drasticamente, pois eu finalmente consegui me levantar e controlar minhas ações. Respirei fundo e estava prestes a cruzar o final da ponte quando ouvi passos. Antes que eu pudesse pensar, me vi correndo rumo a minha casa.

***

Tive uma noite conturbada. Diversos pesadelos com meus pais inundaram meu sono. Curiosamente, todos eles eram ambientados em um circo. Em um dos sonhos, o que eu me lembro melhor, meus pais tentavam me levar para um espetáculo. Tentavam, pois eu chorava e esperneava para não entrar naquela grande tenda branca e vermelha. Acordei justamente no momento em que eles conseguiam me sentar na arquibancada e eu vi algo que me deixou tão assustada a ponto de me despertar no mundo real. Sentei na cama me sentindo cansada, com uma leve dor de cabeça. Enquanto fazia o café, o medo causado pelos pesadelos dava lugar a uma grande preocupação. Relembrava as datas da fatura do cartão de crédito, do quarto na pensão, do mercado... Como eu pagaria isso?

Durante o desjejum, pensava em quais locais eu poderia trabalhar na cidade sem que minha sanidade mental fosse para o buraco – de novo. A farmácia da rua Saint, a lanchonete do Sr. Pablo, a padaria da rua 04 de junho... e a biblioteca municipal de Derry. Ah, a biblioteca! Meu sonho de emprego dentre todas as rasas opções que tinha. Já havia tentado emprego lá há um ano, mas não precisavam de mais ninguém no quadro de funcionários. E agora, considerando minha reputação cada vez mais impopular, receberia um não novamente.

Ler sempre foi um refúgio para mim. Tive uma grande dificuldade para aprender, provavelmente devido à perda de minha mãe, que era quem lia para mim. Mas, assim que aprendi, aos 9 anos, nunca mais parei. Passava tardes inteiras na biblioteca, comprava livros no sebo do bairro sempre que podia e vivia com um livro na mochila. Mesmo quando eu me sentia sozinha, desamparada e sem ver uma solução à frente, a leitura me fazia companhia e conseguia me tirar do meio das preocupações. Trabalhar na biblioteca após mais uma perda seria uma grande salvação. Tentaria mesmo tendo certeza da recusa de emprego.

***

Já era mais de 1 p.m. quando cheguei à biblioteca. Tentei me arrumar o máximo que consegui para parecer perfeita para o cargo: meia-calça, sobretudo, saia na altura do joelho e cabelo preso em um coque. O próprio estereótipo de bibliotecária. Adentrei o grande salão que parecia bem menor por dentro devido à imensidão de estantes lotadas de livros empoeirados. As mesas estavam cheias de livros esperando para serem guardados. Um homem velho limpava o chão com vagareza, parecendo poder dormir em cima do cabo do esfregão a qualquer momento. Não havia muitas pessoas por ali: uma adolescente batia na lateral de um computador, provavelmente tentando fazê-lo – em vão – funcionar mais rápido. Um homem lia o jornal do dia com uma expressão nada feliz. Um menino dormia em cima de um enorme livro, enquanto outro estava sentado ao chão parecendo se divertir muito lendo quadrinhos. Respirei fundo e procurei mais atentamente a Sra. Anna, a bibliotecária.

A encontrei abaixada na recepção do local. Estava juntando do chão os clips que havia derrubado. Levou um susto quando a chamei, espalhando ainda mais os pequenos objetos.

- Desculpa! – exclamei baixinho enquanto fazia a volta na recepção para ajuda-la.

- Imagina, menina, eu que sou desastrada. – Ela me olhou com atenção. A percebi reparar em minhas roupas e um sorriso discreto surgiu em seu rosto. – Você é a Nancy, estou certa? Faz muito tempo que não a vejo por aqui.

- Sim, sou eu. Eu nunca frequentei a biblioteca por falta de tempo, mas você deve se lembrar que vim aqui há um ano... – Suspirei envergonhada. – Procurando emprego.

Sra. Anna levantou-se, limpando a poeira das calças jeans rasgadas. Aparentemente a imagem que eu tinha de uma bibliotecária estava totalmente ultrapassada. Me esticou a mão para que eu pudesse me apoiar e levantar também.

- Eu lembro. Infelizmente não temos vagas para novos funcionários. – Fitou meus olhos de forma séria e continuou. – Sabe, Nancy... Eu andei ouvindo sobre sua demissão do mercado...

Meu mundo desabou. Não bastava receber um não, eu ainda tinha que ouvir o claro motivo para isso. Droga, se até a Sra. Anna, que nunca se metia em fofocas, já estava comentando sobre isso, quem dirá o resto da cidade. Eu nunca conseguiria emprego e estaria fadada a morar na rua pedindo esmola.

- Soube que você enfrentou o Greg. – Ela continuava séria. – Eu nunca gostei daquele moleque! – Um sorriso começara a se formar em seus lábios brilhantes de gloss. – Já tive que expulsá-lo dos arredores da biblioteca diversas vezes, seja por intimidar algumas crianças que aqui estavam, seja por se drogar na escadaria da entrada. Ouvi que você o deixou machucado. Admirável. – Ela riu discretamente.

Eu estava totalmente sem reação. Não sei se sorria junto dela ou se estava com uma expressão de completa surpresa, mas fato é que uma pontada de esperança começava a surgir em mim. Se eu não conseguisse o emprego, pelo menos tinha recebido meu primeiro elogio desde que me mudei para Derry.

- Olha, não temos vagas no momento, mas, como você pode ver, - ela olhou ao redor de forma cansada – não estamos dando conta dessa bagunça. Então, eu acho que consigo criar um novo cargo para você. - Pensou por um momento. - O de assistente de bibliotecária! – Ela sorriu de forma convidativa. – O que acha?

- Sra. Anna, isso é incrível! – Percebi que havia falado alto demais e abaixei o tom. – Isso é incrível! Eu aceito!

- Certo, mas vamos com calma que eu ainda tenho muito a fazer sobre esse novo cargo. Então, venha aqui semana que vem, na segunda-feira, e oficializamos tudo, certo? – Concordei sorridente com a cabeça. – E, antes que me esqueça: não precisa vir vestida como se tivesse 50 anos, Nancy. – Ela riu e senti minhas bochechas esquentarem, mas não deixei de rir também. Aquele seria um bom lugar para se trabalhar.