A campainha tocou no instante em que Korra podia jurar que ia perder a sanidade. Caminhando como podia (já que isso envolvia arrastar um menino de sete anos determinado em se agarrar a barra de sua calça branca), ela tentou manter o resto de compostura que possuía ao abrir a porta principal. O cansaço fez com que ela desconsiderasse a regra de segurança a respeito de verificar antes o olho mágico: naquele instante, se fosse um vizinho inconveniente, receberia uma encarada mortal e um "que é?" muito do mal humorado e se fosse um assassino com intenções horríveis, bom... Korra entenderia qualquer opção violenta como um belo tiro de misericórdia.

Mas não era nenhuma das alternativas.

Do outro lado do umbral de madeira talhada, uma Asami Sato que parecia serena como brisa de verão a encarou com olhos verdes sorridentes; aquela era a pose Sato de “eu venho em paz” o que fez o quase-suspiro de alívio ao ver a outra morrer no meio do caminho e Korra levantar a guarda instantaneamente:

— Você está vindo como amiga ou como síndica/proprietária do prédio?

— Os dois? - Asami fez uma breve careta culpada enquanto erguia o engradado de cerveja como uma bandeira branca.

— Quem reclamou dessa vez? - Korra inquiriu com o maxilar trincado, dando passagem para Sato entrar enquanto ignorava Meelo fingindo ser um dinossauro em convulsão ainda agarrado ao seu tornozelo.

Em tese, Asami deveria ser imparcial, mas ela gostava o suficiente de Korra para uma resposta honesta.

— A garota do 805 realmente tem um problema com você.

— Kuvira. - Korra murmurou, desfiando uma série de pensamentos pouco bondosos para a vizinha que queria regular a vida de todos os moradores do andar como uma pequena ditadora.

Asami encolheu os ombros, liberando-se da obrigação de uma resposta. Ao invés de dizer algo, ela se deu alguns segundos para absorver a cena: Korra vestia um quimono e carregava um bebê adormecido no sling enquanto Meelo, também de quimono, se debatia e guinchava no chão. Tentando prender o riso em respeito a Korra, Sato encarou o relógio de parede que indicava faltar um quarto para a meia noite.

— Como você está se saindo nessa batalha? - inquiriu, depositando as cervejas na geladeira sem muita cerimônia antes de retornar a sala e se aproximar da amiga.

— Três já foram abatidos. - Korra reportou, ignorando o pequeno arrepio que percorreu sua espinha quando Asami cruzou os braços em torno de sua cintura na intenção de desatar o nó que a ligava a Rohan, a fim de livra-la um pouco do peso do bebê. - Obrigada. - murmurou, sinceramente aliviada ao constatar, não pela primeira vez, que Asami era cem vezes mais hábil do que ela e que Rohan mal se mexeu ao passar do colo de uma para a outra.

— Posso colocá-lo no quarto?

— Por favor. - Korra manteve o tom baixo, embora Meelo continuasse gritando coisas esquisitas, pouco se importando se o irmão continuaria dormindo ou não. - Eu vou dar um jeito nesse aqui. - concluiu, pensando por um segundo em jogar a criança pela janela.

— Boa sorte. - Asami murmurou, dando-lhe as costas.

Korra assentiu, respirou fundo e lançou um olhar perigoso para o menininho que agora ria da sua cara.

— Ok. Agora você está encrencado.

A luta durou tempo suficiente para Asami ir e voltar do quarto e assistir a cinco dos sete turnos com um sorrisinho irônico de quem se mantinha a uma distância segura, recostada como estava no sofá confortável de Korra.

Por fim, Meelo se deu por vencido. O nocaute final veio de seu próprio corpo, cansado como estava. Ele simplesmente apagou de sono no tatame improvisado que na verdade era seu tapete infantil alfanumérico no meio da frase “morra, Korra, morra” e Asami sentiu um prazer pueril em notar que Korra, campeã de judô, arfava depois de uma batalha intensa contra a energia quase inesgotável do filho de Tenzin e Pema.

— Ele vai ficar aí mesmo, o pequeno arrombadinho. – Korra decidiu analisando o garoto que já ressonava alto enquanto babava, mas tirou a manta do sofá e colocou sobre ele. – Você sabe, quando Tenzin e Pema vieram com esse papo de retiro espiritual por um final de semana eu achei que era só uma conversa fiada para uma pequena viagem com fins sexuais, mas depois de passar um dia inteiro com as crianças, eu começo a pensar que talvez eles estejam mesmo meditando. – suspirou, massageando as próprias têmporas.

- Sempre dá para fazer as duas coisas. – Asami soltou um riso curto, seguindo a dona do apartamento até a bancada da cozinha americana.

— Ah, é? – Korra arqueou uma sobrancelha, sinceramente curiosa, o que fez Asami limpar a garganta, desconcertada.

— Era para ser uma piada.

— Você é péssima nisso, Sato. – Korra avisou, mas riu, antes de pegar as bebidas que Asami havia guardado anteriormente. – A propósito, obrigada por ter vindo. – ela disse, brindando com a latinha.

— Por nada. Eu tinha mesmo que te notificar sobre o barulho. Além do mais... É sempre um prazer te ver sofrer.

— Eu gostava mais quando você era toda educada e polida comigo, sabe? Intimidade é mesmo uma desgraça. - Korra anunciou, suspirando teatralmente. – E eu nunca vou me recuperar dessa visão. – ela apontou para a amiga, numa falsa decepção. – Na minha mente você ainda é uma pessoa que só toma vinho caro. – provocou, apenas pelo prazer de ver Asami estreitar os olhos e entornar a latinha de cerveja de uma vez, amassando-a em seguida.

— Você é mesmo uma criatura implicante, Korra, mas eu não vou entrar nesse jogo a essa hora da noite.

— Ah sim, isso é você não entrando nesse jogo? – Korra riu, pegando a latinha semi amassada e depositando-a no lixo antes de se sentar ao lado dela. – Tá tudo bem, Asami, eu já parei. Tô cansada demais até mesmo para implicar com você.

E como sempre acontecia quando Korra deixava transparecer mais do que o seu senso de humor duvidoso (e que Sato secretamente apreciava mais do que estava disposta a admitir), Asami sentiu aquele rompante de vontade de apenas abraçá-la. Acontecia com mais frequência do que ela gostaria e, ainda assim, ela ainda não tinha descoberto um jeito de impedir a si mesma.

— Você sabe, nós podemos deixar as cervejas para outro dia. – Sato murmurou, sentindo-se inconveniente.

— Não, não. – Korra meneou a cabeça como se a ideia fosse absurda. – Tenho certeza que nós não vamos morrer se mantivermos uma conversa sem provocações mútuas por um dia. – garantiu, bebendo um longo gole de cerveja.

O silêncio que se seguiu foi constrangedor. Asami se levantou para pegar outra bebida. Algo lhe dizia que precisaria de mais uma, embora sua tolerância para o álcool fosse patética de tão baixa.

— Me lembre de nunca mais ser legal com Tenzin, sim? – Korra pediu, tentando dissipar o ar esquisito.

— Eu poderia, mas acho que não vai ser necessário. Em dois meses você vai estar tão longe daqui quanto possível, não é? – sorriu, sem humor.

— Não sei se isso seria empecilho suficiente. – Korra argumentou, pensando no pesadelo que seria cuidar dos quatro filhos de Tenzin novamente. A verdade é que havia poucas coisas que ela não faria pelo padrinho, mas essa era a última vez que ela se permitia ser protagonista de uma tarefa tão ingrata.

Em defesa de Tenzin, ele havia sugerido que ela ficasse com as crianças em sua casa onde tinham espaço verde para correr e gastar energia, mas Korra tinha insistido em seu próprio apartamento porque a simples ideia de ter uma casa com mais de dois cômodos onde ela podia simplesmente perder uma das crianças não estava em seus planos.

Só a perspectiva a fazia suar. Asami riu do desespero dela, o que dissipou um pouco o peso de ter trazido o elefante da sala para o meio da conversa.

— Eu acho que três horas de avião dificultam bastante, vai. – tentou consolar.

— É, pode ser. – Korra encolheu os ombros e elas beberam de novo em silêncio. O plano de Korra de se aposentar mais cedo do que o esperado como desportista e abrir uma academia de judô em sua cidade natal parecia mais perto do que nunca de se tornar realidade.

E Asami sabia disso porque ela era, afinal, a responsável pelo projeto arquitetônico do local. Do mesmo modo que havia idealizado cada parte do conglomerado de prédios ao qual pertencia àquele em que ambas moravam, era a sua assinatura que constava nas plantas do futuro dojo de Korra. Por ironia, era isso que tinha feito elas se aproximarem tanto: o plano que levaria Korra de uma vez por todas para longe.

O pensamento fez com que Asami considerasse – e decidisse, por fim – por sua terceira cerveja. Korra a analisou com cuidado, antes de decidir dizer:

— Olha, vai com calma, eu não vou te carregar para a cama, hein? – avisou, sorrindo.

— Isso já ficou claro. – Asami rebateu num impulso, a cabeça um pouco zonza por ter se levantado rápido. Ela quis morder a língua, engolir as palavras de volta, mas, para o seu completo terror, já era tarde. Os olhos azuis e muito sérios de Korra a encaravam de uma maneira inédita.

— Você queria? – ela inquiriu e o jeito como ela encarava fazia Asami sentir como se não houvesse escapatória alguma no mundo para além de olhar de volta para ela.

— É possível que eu já tenha pensado a respeito. – Sato disse num fio de voz.

— E você decidiu dizer isso agora.

— Não, eu decidi que nós poderíamos ter deixado as cervejas para outra hora. – Asami murmurou, desviando os olhos.

— Asami...

— Korra, a gente não precisa ter essa conversa. De verdade. – foi a sua vez de massagear as próprias têmporas como se isso fosse livrá-la da tensão que estava sentindo.

— Mas eu quero. – Korra insistiu e Asami, que tinha certeza que nada poderia fazer com que ela abrisse mão do restinho de dignidade que ainda preservava, sentiu-se demovida de sua força de vontade quando Korra pousou a mão sob seu ombro de maneira delicada.

Era um gesto tão sensível, tão diferente de sua linguagem corporal habitual e tão estranho aos movimentos bruscos e autênticos de Korra que Asami estava acostumada que ela não teve outra opção senão suspirar.

— Eu não sei, acho que eu também só estou muito cansada. – confessou. – Não me entenda mal, eu passaria uma vida inteira apenas sendo sua amiga, mas o peso nas costas que isso me causaria, Korra... Começa a parecer insustentável.

— Agora que você verbalizou, me parece insustentável também, se você quer saber minha opinião. – Korra afirmou, a mão ainda segura no ombro alheio.

— Mas você vai embora. – Asami lembrou.

— Sim.

— Começar isso agora... Seria uma complicação.

— Sim.

— Com prazo de validade.

— Sim.

— Isso é tudo que você vai me dizer? Sim, sim e sim?

— Eu não vejo como eu poderia dizer não para você, Asami. Em nenhum sentido.

— Não é possível que você tenha sucesso com esse papo manjado. – Asami riu, finalmente encontrando coragem para encará-la de novo.

— Mais do que você imagina. E funciona com você, pelo visto. – sorriu também, aliviada pelo fato de que no fim das contas elas sempre encontravam uma maneira de rir uma com a outra (ainda que fosse da cara uma da outra). – Olha, tudo o que eu estou dizendo é que se você quiser a gente pode tentar enquanto estou aqui.

— A gente pode tentar. – Asami repetiu as palavras, mais para si do que para Korra, testando o gosto que elas tinham em sua boca: uma mistura de expectativa, de medo e de alegria genuína.

Korra respirou fundo e se aproximou devagar. Era estranho que depois de tanto tempo de flertes tortos e de uma amizade sincera misturada com objetivos profissionais as coisas fossem... tangíveis nesse novo sentido. Mas, ao mesmo tempo, era o único desfecho possível, ela pensou em seguida, quando Asami se precipitou para a frente e, surpreendendo-a, a beijou primeiro.

De algum modo, elas duas juntas, apenas parecia certo. E ainda que houvessem prazos, complicações e músicas tristes num futuro não tão distante... Naquele instante era leve. E Korra e Asami realizaram, quase ao mesmo tempo, que enquanto elas duas tivessem dispostas a assumir os riscos que essas coisas da tríade coração-corpo-mente sempre geram, aquela era uma lembrança luminosa e bonita o bastante para se produzir em conjunto.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.