A Indomável

Capítulo XII - Estratégia.


"Não corra no corredor, Amélie!"

Era uma das coisas que eu costumava ouvir muito de minha mãe e hoje eu ouvia essa mesma frase sair da boca de várias detentas, olhando pra mim, desferindo ataques verbais em minha direção e a única frase que eu ouvia era a mesma:

- NÃO CORRA NO CORREDOR, AMÉLIE!

Repetidas vezes. A voz de minha mãe, se misturando com a voz de outras mulheres em minha mente. O barulho era tanto que eu me esquecia por um momento dos olhares de luxúria que elas jorravam sobre mim enquanto eu caminhava pelo extenso corredor, que tinha um odor que misturava urina, carne podre e genitálias sujas.

- Você é bem ousada, heim mocinha. Tocou exatamente na ferida do delegado.

- Não sei do que você está falando - respondi rispidamente à carcereira que apertava meus pulsos enquanto percorríamos o corredor entre as celas.

- O delegado tem a marca de aliança no dedo porque realmente ele foi deixado pela esposa e pela filha...

Sorri.

- Mas porque ambas morreram num acidente de carro que ele mesmo provocou perdendo o controle em uma curva pra uma viagem à Massachussets... A menina era muito pequena ainda, é uma pena...

Meu estômago revirou. Era até nojento imaginar como eu me vangloriei da dor alheia daquela forma. Afinal, eu também sentia dor, e a mesma dor. A perda é o que mais causa a dor, não importa como ela seja causada. Perda simplesmente é perda. Nada mais.

- Conheça suas novas amiguinhas, princesa. Só quero ver quanto tempo essa marra vai durar.

Ela me trancou e saiu, balançando a chave e gargalhando pelos corredores que possibilitavam que sua gargalhada ecoasse.

Eram três. E que eu bem notei, a menor delas tinha quase o dobro do meu tamanho. Havia uma gorda e grande deitada em seu catre e que não me deu muita importância, o que foi bom afinal. Havia uma ruiva repleta de sardas e cabelo crespo e amarrado num rabo de cavalo meio solto, e uma bem negra e forte de cabelos trançados desde a raiz, com lábios tão grandes que desviavam a atenção de seus olhos pretos de jabuticaba e principalmente, famintos ao deslizar o olhar pelo meu corpo.

- Então temos carne nova - ela sussurrou em meu ouvido.

A ruiva cruzou os braços, estreitando os olhos enquanto me encarava. Apenas abaixei a cabeça e caminhei para o meu catre, sendo interrompida pela negra, que entrara em minha frente.

- Então é tu a tal marrentinha que matou dois caras? - ela me olhou novamente da cabeça aos pés, fazendo um bico e batendo palmas - Tu não tem cara de assassina, meu bem. Sabe enganar bem, heim?

- Com licença? - sussurrei, sem sequer olhar em seus olhos, que lembravam muito os de um tubarão ao cheirar sangue humano.

- Oi? O que? Com licença? Pra que?

- Quero ir para o meu catre - sussurrei num fio de voz.

A negra tossiu uma risada de deboche olhando para a ruiva.

- Ouviu isso? A assassina mirim tá dando uma de obediente agora?

- Deixa a garota em paz, Isabel! Você vai ter tempo o bastante pra importuná-la - a ruiva resmungara franzindo as sobrancelhas.

A negra apenas me encarava mais uma vez enquanto saía da minha frente liberando meu caminho.

O catre era duro, os lençóis estavam manchados e o cheiro era tão indefinido quanto sua cor.

Procurei um canto que estivesse menos sujo e me aninhei, com o nariz encostado na parede gelada. E de tão amortecida, lágrimas escaparam sem a menor força.

- Sandersen! Tem alguém aqui querendo te ver!

Eu ouvira a carcereira gritar, antes mesmo que eu pudesse pensar em me mover novamente.

Me virei, olhando para as grades da cela que não haviam ninguém além da carcereira alta e negra. Porém não durou por muitos segundos.

Com muita dificuldade, um velho horrendo, apoiado por uma bengala entalhada perfeitamente em madeira, com um rosto deformado terrivelmente e um olho tapado me encarava por longos segundos, forçando uma risada debaixo das cicatrizes rosadas.

- Olá como vai? - ele sussurra numa voz rouca e quase inaudível.

- Desculpe, acho que você me confundiu.

- Não. Tenho certeza absoluta que é você que eu procuro. O tempo mudou nós dois, Amélie Sandersen. Ele aumentou ainda mais sua beleza inestimável e à mim... Deu esse rosto horrível e mais idade.

Estreitei os olhos, encarando ainda mais aquele velho.

- Eu te conheço?

- Talvez sim - ele sussurrou, forçando outro sorriso estranho e deformado.

- De onde?

Ele apenas se aproxima da grade da cela, sussurrando ainda mais baixo:

- Talvez de seus pesadelos, Amélie Sandersen.

No mesmo instante que arregalo os olhos milhões de imagens são atiradas contra mim em uma enxurrada. Imagens em que sou presa numa cadeira e "exorcizada", onde sou presa num quarto minúsculo, onde me bato desesperada contra as paredes quando meus braços estão presos numa camisa de força. E onde um homem me observa sorrindo, um olho que eu vejo pela abertura da porta do meu quarto. Aquele olho que me olhava agora.

- EU NÃO ACREDITO QUE É VOCÊ! - gritei desesperada avançando sobre ele inutilmente entre as grades, as carcereiras esticando os braços e o protegendo. Protegendo aquele verme!

- Sentiu saudades? - Ele esticou a pele nojenta que agora combinada perfeitamente com seu caráter.

- NUNCA! Seu infeliz! - agarrei com toda a força as grades. E ele se deliciava ao me assistir daquela forma.

- Amanhã nesse mesmo horário virei até aqui te buscar. Pense pelo lado positivo, você sairá daqui! E irá pra um lugar muito melhor comigo, na clínica, onde é o seu lugar.

- NÃO! Você nunca, NUNCA vai me pegar! - terminando a frase eu escarro e cuspo em seu rosto. Ele apenas sorri e o limpa com um lenço de bolso.

- Não fique tão impaciente, amanhã estarei aqui. Agora tenho que ir, tenho algumas obras de ultima hora pra terminar na clínica, nos vemos amanhã.

Ele segue pelo corredor, sendo seguida por duas carcereiras, e eu me desmancho no chão, assistindo aquele monstro triunfar.

Mas aquilo não ia ser por muito tempo.

Gritei milhares de vezes chamando uma carcereira, e apenas um guarda me atendeu com uma batida na grade da cela e me mandando calar a boca.

- As carcereiras foram pra fora, idiota!

- Mas eu preciso!

Ouvi os passos de uma delas chegando naquele momento, bufando de raiva pelo meu escândalo.

- O que está acontecendo aqui?

O guarda dá de ombros e aponta com o queixo pra mim.

- Essa estúpida está chamando por uma carcereira.

Assim que o diz o guarda sai andando, e aproveitando o meu suadouro e a oportunidade, finjo um mal estar.

- Preciso de água.

- Ora, vá pedir água pra mamãezinha!

Eu precisava urgentemente que ela se aproximasse.

- Mas eu preciso, eu não vou...

Com ambos os braços pra fora da cela, fui a chamando pra mais perto, e quando ela finalmente se aproxima, eu agarro seu pescoço com minha mão esquerda. A mão que eu odiava e que agora estava me sendo útil.

Os olhos assim como o corpo da carcereira iam se desfalecendo aos poucos e enquanto ela caiam ao chão eu esticava meu braço para alcançar as chaves no cinto.

- O que você pensa em...? - Isabel, a negra maior me perguntou indignada, olhando a força que eu fazia pra tentar alcançar as chaves com meus braços curtos e magros.

- Não está vendo?

Ela me empurra longe e enfia de uma vez só a mão pela grade arrancando as chaves do cinto da mulher.

- Rápido, vamos sumir daqui - ela sussurrou para as outras.

- Por favor! Ainda não, eu preciso que vocês escapem por trás! - sussurrei, enquanto ia puxando a carcereira pra dentro da cela e lhe arrancando as roupas, botas e boné.

- Quê? Você vai...

- Sim! Por isso eu quero que saiam por lá, eu tenho uma outra ideia e preciso de distração.

- Essa cadela branca quer que saiamos pra distrair os guardas enquanto ela foge! - Isabel esbraveja entredentes. E no mesmo instante sai corredor afora, provocando um rebuliço.

Droga! Tive que agilizar ainda mais o que eu estava fazendo, era tudo que eu não precisava.

Terminei de vestir as roupas e entreguei uma das armas para a ruiva e me virei para a gorda.

- Eu sei que você tem uma faca escondida aí embaixo! Rápido! As duas me façam de refém.

- Você é idiota? - a ruiva quase voa pra cima de mim.

- Anda logo! Eu sou a carcereira agora, me façam de refém e depois abordem um dos guardas.

Ela deu de ombros e atendeu, apontando a arma pra minha cabeça enquanto a gorda me cutucava com um punhal fino.

- NÃO SE MEXAM! OU A GUARDINHA AQUI, MORRE! - a ruiva gritara, interpretando muito bem seu papel, porém era inevitável não notar o quanto ela tremia.

Eu mantinha a cabeça um tanto virada e abaixada, escondendo meu rosto. O suficiente para sussurrar para a ruiva o que fazer.

"Esse guarda da esquerda. Pegue-o! - sussurrei.

E ela assim o fez, com ajuda da gorda que agora apontava o punhal para o pescoço do guarda.

Antes mesmo que me notassem, já estava no final do corredor, próxima à um telefone.

Disquei trêmula os números que eu não tinha certeza e rezando pra que fossem os certos.

Tive um espasmo de alegria quando aquela voz rouca e adoravelmente familiar atendeu ao meu chamado.

- Johnnie, a resposta de sua charada é o homem! - murmurei entre gaguejos.

- O que?

- O animal que anda de quatro patas de manhã, duas ao meio-dia e três à noite é o homem.

Depois de longa pausa, a voz dele se tornou mais calorosa e receptiva.

- Amélie! É você!

Antes de mais delongas cortei seu entusiasmo no meio, antes de assistir a piora do rebuliço que se formara.

- Johnnie, preciso de sua ajuda!