A Indomável

Capítulo II - Despertar


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- Ela morreu? - um deles sussurrava, enquanto limpava as mãos as esfregando uma na outra. Pelo menos era o que parecia.
- Não sei, mas tenho quase certeza que sim. Se ela não morrer agora vai morrer de hemorragia com certeza.
- Vamo embora, cara. Logo os caras vão passar por aqui e eu não vou ir preso de novo - uma voz ao longe dizia, parecia ser de um rapaz mais nervoso e menos confiante que os demais.
- Cala a boca! Eu quero ficar mais um pouco pra ter certeza de que ela morreu.
Uma dor alucinante vinha do meu pulso, era como se queimasse.
- É sério, cara. Vamos embora, ela ta morta com certeza. O namoradinho dela nem sobrou pra contar história, pra quê se preocupar?
Um sopro de uma risada surgiu.
- É, tem razão. Vamos embora daqui.
Me senti pouco mais relaxada quando ouvi o barulho do motor os levando pra longe dali. Quanto mais se passava mais era difícil manter minha respiração presa.
Aos poucos fui abrindo meus olhos, a dor ainda pulsava quente no pulso esquerdo. Era horrível!
Busquei cega por César no breu de arbustos e árvores tortas. E enfim, o que eu vejo quase me mata por inteira.
Aquele que eu amei com todas as minhas forças estava sem vida, com o rosto totalmente desfigurado por sabe se lá o que. A única explicação que eu buscava era no sangue dele em meu rosto, que espirrara enquanto aqueles monstros faziam aquilo com ele.
O choro e o grito preso na minha garganta foram inevitáveis, enquanto eu buscava seu rosto no emaranhado de carne e sangue que ficara no lugar.
Meu estômago tentou ser forte, eu tentei ser forte. Mas caí de joelhos, vomitando tudo o que eu tinha no estômago, e logo em seguida novamente vendo tudo negro em minha volta.

- César... César!!... CÉSAR!!!
Acordei num solavanco, cegada por uma luz claríssima, numa sala estranha e numa cama estranha, onde a única cor que eu via era branco e mais branco.
Minha mãe veio correndo me acudir, me abraçando.
- Querida, está tudo bem. Tudo bem - ela dizia, entregando em seu rosto pálido e cansaço o desespero e o medo de me perder.
- Onde está César, mãe? Onde?
Ela levanta da minha maca, com uma das mãos cobrindo a boca.
- ONDE? ONDE, MÃE? - grito eufórica.
Ao chacoalhar minhas mãos me deparo com um toco de braço envolto em gaze. O que me espantava era que aquele toco de braço era meu.
- Minha... Mão...
- Querida, eu...
- MÃE! O que houve com a minha mão???!
Era inevitável os soluços e minha respiração se tornava mais difícil a cada segundo.
- Mãe, por favor - repeti devagar, colocando minha mão inteira na frente de meu rosto - Onde está César?
Pelas feições de minha mãe, eu temia saber o que acontecera. Mas mesmo assim, rezava pra que eu só tivesse passado por um horrível pesadelo.
- Ele.. - ela suspira, tombando a cabeça pro lado - Ele morreu, querida. Foi uma lástima.
Meu ouvido zunindo e latejando não me deixava pensar, em mil flashes a imagem dele estilhado no chão repetia em minha mente sem me deixar agir. Ele estava morto. Morto!
- Não... não... NÃO! - eu tentava argumentar com um fio de voz, mas os medicamentos eram muito fortes, e eu me sentia muito fraca.
- Por favor filha. Você não pode se...
- Mãe, me tire daqui, eu preciso vê-lo! Por favor!.
- Querida, o enterro dele foi ontem.
- Como assim, mãe? - resmunguei indignada - Eu vi ele ontem à noite, por favor, eu...
- Filha - ela suspira colocando a ponta dos dedos nas têmporas - Você está à dois dias nesse hospital.
- IMPOSSÍVEL! - grito esganiçada e engasgando na saliva.
- Sim, faz dois dias que você está aqui e acorda e desacorda com frequência. Sempre delirando e chamando por César.

Me soltei sobre a maca, a deriva dos medicamentos fortíssimo, tremendo e sentindo minha visão turva.
- Mãe, eu precisava vê-lo - a voz que saía da minha garganta parecia de uma criança que chorava soluçando pela mãe.
- Shhh. Por favor, fique calma - ela se aproximava tocando meus ombros, tentando me acalmar, de um modo impossível. A única coisa que eu queria naquele momento não existia mais.
- Eu quero ficar sozinha, mãe - sussurrei.
- Mas você tem que...
- Mãe... - supliquei.
Ela engoliu em seco, olhando pra mim como se ela estivesse olhando pra uma criança malcriada e lhe dizendo "Você vai ver só depois!"
- Se prefere assim - ela deu de ombros e saiu.
Soltei meus fôlego inteiro, caindo em prantos no travesseiro da minha maca. Não era nem minha mão, não era nem a dor que ainda me corrompia pelo abuso que eu havia sofrido, nada disso doía tanto quanto a perda do amor da minha vida. Um pedaço que doía mais que os pedaços que foram arrancados de mim carnalmente.
Chorei tanto, que adormeci.
Acordei de madrugada, olhando as paredes do hospital, agora escuras. As luzes estavam apagadas e eu estava morrendo de sede, pensei no que poderia acontecer se eu me levantasse, se alguma enfermeira iria me flagrar.
Antes que pensasse em fazer isso, ouço alguém cantarolando O Lago dos Cisnes, uma musica que tocava em minha caixinha de musicas. Era incrível como aquela voz parecia-se com a minha...
- Quem está aí?
A voz cantarolando de repente sussurra uma risada, e depois volta a cantarolar.
- Quem está aí?
Ligo uma lanterninha de um chaveiro que estava ao lado da minha cabeceira e busco incessavelmente por alguém dentro daquele quarto.
Passo a lanterna rápido por um canto do quarto e vejo algo se mexer. Novamente retorno pra'quele canto, e alguém me sorri.
Alguém estranhamente familiar com uma maquiagem familiar nos olhos.
Estreito mais meus olhos e vejo que aquela pessoa que estava no canto do quarto, era ninguém mais, ninguém menos... Que eu...

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- Ahh... Quem é você? - sussurro desesperada e trêmula feito uma ramo de trigo.
A luz de repente se acende, e minha mãe surge irrompendo a porta. Com um enorme ponto de interrogação na face.
- Filha? O que foi?
- Tinha alguém aqui dentro, mãe. Tinha, eu sei que tinha.
Ela se afasta de mim, tentando ter certeza da minha sanidade.
- Não havia ninguém aqui dentro, eu estava dormindo do lado de fora do quarto, haviam três enfermeiras passando a todo momento por aqui. Não há dúvidas de que seria impossível que entrassem aqui dentro.
Focalizei no ponto onde eu vi o rosto me sorrindo. O meu rosto, era impossível ser alucinação. Minha testa franziu e eu não conseguia tirar os olhos daquele canto da parede.
- Minha pequena - minha mãe cantarolou pra perto de mim, me abraçando - Você ainda está em choque, deve estar sofrendo muito ainda.
Eu retribuí o abraço, me afundando nos cabelos da minha mãe. Meus olhos mal haviam secado direito, e eles voltavam a se umedecer novamente. Mas eu ainda não conseguia tirar de foco aquele canto do quarto.
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- Logo você irá se acostumar com ela.
- Espero que sim - sussurrei, tentando me entreter com a minha nova mão robótica.
Minha mãe estava sentada ao meu lado, um olhar distante e pensativo pairado sobre mim, e logo ela tenta disfarçar com um sorriso assim que a pego olhando pra mim.
- Você é canhota? - o médico pergunta.
- Não, não sou.
Ainda fico girando meu pulso, olhando a pele de silicone que cobria uma mão metálica, a ligação que havia no meu pulso com vários fios e outras coisas que eu nem sabia definir de tão complexo que funcionava.
- Ainda bem, pois essa mão você nem irá usar muito - o médico solta uma risada fraca. Eu também sorri, mesmo a piada sendo de péssimo gosto.
- Eu pareço o Robocop - sussurrei absorta ainda observando a mão estranha em meu corpo.
- É só no princípio, logo você esquecerá que ela não nasceu com você. Só tome cuidado com o aperto. Esse modelo ainda é muito forte.

- Acho que vou precisar de algumas aulas - murmurei.
- Não creio que seja necessário, isso é uma coisa que você aprenderá a controlar com o tempo. Sabendo equilibrar menos força nesse braço - ele se estica sobre o balcão, me mostrando alguns detalhes do engate que ligava meu pulso àquela coisa - Veja bem, o aperto dese modelo ainda é muito pesado, por isso tome cuidado com copos de vidro, canetas, ou talheres delicados.
- Tudo bem - balancei a cabeça, sorrindo e tentando parecer positiva.
- Agora aperte minha mão - ele ordenou.
Desengonçada, parecendo que estava segurando uma luva que pesava toneladas, ergui meu braço e cumprimentei o doutor, que bufou de dor.
- Um pouco mais suave - ele riu, tentando disfarçar os ossos dos seus dedos estalando.
- Me desculpe - enrubesci.
Minha mãe sorriu, ainda parecendo forçado.
- Precisamos ir, doutor. Eu ainda quero mimar a minha menina.
Espremi os lábios num sorriso e o médico consentiu, me dando todos os papéis pra que eu pudesse assinar - ou pelo menos tentasse.
Durante o caminho inteiro minha mãe estava silenciosa, o mesmo olhar distante e pensativo que pairava sobre mim anteriormente, agora pairava sobre a estrada, enquanto dirigia.
- Mãe? - perguntei assim que pisamos dentro de casa - Judeus. Eles nos confundiram com judeus. Isso diz alguma coisa pra você?
- O que? - ela exalou indignada.
- Sim, quando esses caras nos pararam, eles gritavam "malditos judeus". Mas não somos judeus.
- Nosso bairro foi fundado por judeus - ela respondeu fria - Nós nos mudamos pra cá quando você ainda era muito pequena, e esse bairro já era de judeus.
- Então César era judeu?
- Pouco provável. Com a miscigenação das famílias, creio que poucas que sobraram são realmente judias.
Hesitei por um momento, mas não pude deixar de comentar um assunto que minha mãe nunca comentava comigo, e essa era a primeira vez que ela mencionava, eu não podia perder a chance.
- Mãe?
- Sim?

- Você diz que nós nos mudamos pra cá quando eu era pequena. Por que nós nos mudamos?
- Ahh Amélie - ela sentou derrotada na poltrona.
- Mãe, você nunca me fala nada disso.
- Se você não se lembra, eu não irei falar sobre isso. Tivemos um tempo ruim na nossa antiga casa, simples assim. Fim de papo.
Abaixei a cabeça, falando baixo, quase num sussurro.
- Tão ruim a ponto de não termos nem fotos da antiga casa?
Ela olhava pra um outro lado, com o rosto apoiado na mão.
- Sim. Foi horrível, por isso não fizemos questão de guardar lembrança alguma.
- Mas por que eu não me lembro de nada? Nem de minha infância, nem de onde eu nasci, nem de uma parcela do que era a minha casa. Eu tinha 6 anos, mãe. Não era tão jovem assim!
- Acontece, nem todas as crianças lembram de tudo que se passou na infância.
Coloquei meu punho contra a minha testa. Minha mãe era irreversível.
- Por favor, mãe! Eu me lembro perfeitamente de quando viemos pra cá. Mas quando eu tento estender pra antes de virmos pra cá, minha mente se apaga por completo.
- Já disse. Não foi um momento bom - ela diz se levantando da poltrona, e andando transtornada pela casa.
Eu fora derrotada. Mais uma vez.
- Eu vou pro meu quarto.
- Isso! Vá descansar um pouco.
Há tempos eu não me lembrava desse assunto, nem discutia com minha mãe sobre isso. Mas era porque eu tinha uma distração, algo que me tirava o foco desse assunto, algo que agora, naquele momento, em cada pedaço do meu quarto destacava sua presença.
Desde o travesseiro onde ele deitou a ultima vez com os cabelos encharcados, até o porta-retrato que continha nossa fotografia.
Passei a mão sobre o lençol da minha cama feita, e logo em seguida me sentei, ciente de que nada daquilo retornaria pra mim. Fechei meus olhos, tentando inalar do fundo da minha mente o perfume dele, ou pelo menos o ultimo cheiro que guardei dele, com seus cabelos molhados e sua roupa cheirando a água de chuva com amaciante.

Enquanto eu fechava os olhos, inalando o que tinha dele naquele quarto, uma coceira repentina subia pelos meus pés e pernas, subindo e subindo. Abri os olhos rapidamente e avaliando um pouco abaixo, vi aranhas se enroscarem em mim, com pernas longas e peludas.
Chacoalhei minhas pernas até elas saírem, usei minha mão nova pra espremer uma por uma.
Sem mais saída corri pra fora do meu quarto, sem ver sequer nada em minha frente. Até trombar com alguém.
- Tio! - soltei assustada e ofegante.
- Hey pequena Mely, o que você ta fazendo correndo por aí?
- Pequena - debochei dando um sorriso e balançando a cabeça, ainda ofegante - Meu quarto... Estava... Estava cheio de aranhas - tentei explicar, achando inviável.
- Aranhas? - minha mãe perguntou.
- Sim - gesticulei com as mãos - É estranho, mas tinha um monte delas. Olhe! Minha mão até está suj...
Eu estiquei minha nova mão mecânica pra mostrar o sangue e a gosma nojenta das aranhas moídas. Mas não havia simplesmentenada.
- Não seja tola. Nossa casa é de alvenaria, aranhas buscam casas de madeira.
- Isso é verdade - meu tio recém-chegado concordou, dando um sorriso e me abraçando.
Minha mãe, como sempre, decidiu por si só o meu bem, e achou que era importante chamar meu tio recentemente viúvo, irmão de meu pai, pra ficar um tempo conosco, pelo fato de sermos muito ligados desde que eu me entendo por gente.
Era bom ter meu tio por perto, eu poderia fugir um pouco da monotonia de minha mãe, e de sua amargura, que só tem crescido após a morte de meu pai. O ruim era ser obrigada a contar todo o inferno que eu passei nesses últimos dias.
- Não quero mais tocar nesse assunto, tio - murmurei enfim, tomando um gole demorado de café, depois de contar por cima o que eu me lembrava. Minha mãe ficara na cozinha, escutando tudo, engolindo certas lágrimas que tentava me esconder.
- Você então não conseguiu ver o rosto deles?
Dei de ombros, derrubada pela minha incompetência.
- Não, era escuro demais.

- Isso torna as coisas mais difíceis - meu tio resmungou, coçando o queixo no pouco de barba que tinha.
- Por isso prefiro não tocar nesse assunto - estiquei meu braço, tensionando a minha mão mecânica. Talvez me ajudasse a manuseá-la melhor.
- Tudo bem, eu entendo você - meu tio sorriu. Os olhos e as bochechas idênticas as de meu pai - Você precisa dormir.
- Tem razão. Eu me sinto tão cansada que nem parece que eu dormia à cada meia hora - sorri, olhando para o meu braço.
Ele me puxou pra cima pelos ombros, me abraçando e beijando minha testa.
- Pequena, você já perdeu tanta coisa. Cuide bem do que ainda te sobra.
Encostei minha testa sobre o peito de meu tio, franzindo os lábios pra tentar suavizar as lágrimas que vinham em enxurrada.
- E o que ainda me resta? - murmurei entre soluços, solavancando meus ombros.
Ele envolveu os braços ao meu redor, e eu senti que a minha pergunta não tinha resposta. Ou pelo menos não uma naquele momento.
Até ele me afastar pelos ombros e olhar fundo nos meus olhos.
- Eu não sei, só sei que você deve cuidar - ele sorriu, limpando as lágrimas.
Sorri sem humor, o olhar adejando pelas paredes.
- É, pode ser.
- Boa noite, querida - ele se curvou me dando um beijo na testa.
- Boa noite, tio. Durma bem.
- Você também, e toma cuidado com as aranhas - ele sorriu.
- Eu cuidarei - murmurei. dando as costas para o meu tio.
Enquanto eu subia as escadas eu sentia e via os degraus afundando e se levantando como uma onda, minha visão parecia ter ficado turva por causa dos medicamentos. Dei uma piscada e chacoalhei minha cabeça, tentando ignorar o mal estar que aquilo me causava.

Eram exatamente 4:15 da manhã, eu me esticara pra observar no relógio de cabeceira que "tiquetaqueava" tanto que eu não conseguia voltar a dormir. Além do relógio, haviam muitas coisas à mais que me perturbavam; Minha cabeça que doía, as imagens de um pesadelo ruim e real que não saíam da minha mente, a falta que César me fazia, o buraco enorme no meu peito que doía cada vez que eu respirava, e a minha vontade de viver que continuava diminuindo consideravelmente. Mesmo meu tio me apoiando a continuar seguindo em frente, dizendo que a minha sobrevivência era algo movido por uma força maior, por um motivo maior, e mencionara até em uma missão. Mas alguém sequer perguntou se estou feliz em ter sobrevivido?
Me estiquei sobre minha cama inteira, olhando para o teto, e a cabeça novamente latejando com tantos e tantos pensamentos borbulhando em minha mente.
Eu sou acordada de repente por uma musiquinha que eu não ouvia há séculos. Minha caixinha de música tocando "Für Elise", fazendo com que a bailarina rodopiasse devagar com o ritmo da música.
- Merda - sussurrei, tentando parar a chave de corda da caixinha musica, até ela mudar de musica e tocar O Lago dos Cisnes, e novamente Für Elise, e depois repetir Lago dos Cisnes, e assim indo, num círculo paralelo, uns 20 segundos de cada música.
- O que deu nessa caixinha doida? - bato nas laterais, tentando silenciá-la, temendo que alguém acordasse.
E então ela toca finalmente O Lago dos Cisnes e logo depois pára, fazendo com que a bailarina ficasse estática pra minha alegria.
Suspiro aliviada deslizando pelo canta da minha cama caindo sentada no chão. Eu então estico a minha mão pra pegar a caixinha e tirar suas pilhas até ela explodir em mil feixes de luz na minha frente. Me abaixei cobrindo meus olhos dos pedaços de vidro que explodiram de repente.
Sem saber o que me movia, saí em disparada pra fora, atropelando todas as portas. Sem me dar conta de que eu ainda estava de camisola, hobbie e meias.
- Ela quer me matar...

- ... Ela quer me matar - sussurrava trêmula, durante o percurso da minha rua extensa.
Quando enxerguei a primeira esquina me joguei de joelhos, e caí em prantos sobre minhas mãos. Um choro sonoro repleto de lamúrias.
Tirei minhas mãos devagar da frente de meu rosto, olhando tudo em volta. O meu queixo não parava de tremer.
- Filha? O que está fazendo? - minha mãe tocou meu ombro, me assustando e logo em seguida meu tio aparece, a seguindo.
- Ela... Quer me matar... Me matar...
Minha mãe franziu a testa, horrorizada.
- Ela quem?
Pisco confusa, o olhar adejando pra todos os lados sem conseguir um foco.
- Eu... Não... Sei...
Minha mãe me olha com reprovação e logo olha para o redor de vizinhanças com cortinas abertas e olhares curiosos.
- Vamos pra casa - ela ralhou me olhando de soslaio.
Olho meu tio e ele está estático. Mas não me reprimia e nem me apoiava, era indecifrável.
- Mas...
- VAMOS! - ela sussurra entredentes arregalando os olhos.
Eu me levanto, concordando com a cabeça e ela me abraça pela cintura, me levando até em casa, já que meus pés estavam machucados por causa dos cacos de vidro. Me obrigando a passar na frente de Lúcia, a vizinha mais dissimulada que podíamos conhecer.
- Bom dia - ela sussurra num meio sorriso de repulsa.
- Bom dia - minha mãe responde se o menor humor.
Lúcia estava acompanhada da filha, que tinha minha idade, e eu não pude deixar de ouvir seus cochichos de péssimo gosto.
- Se César estivesse vivo iria se arrepender da escolha - ela sussurrava pra filha, e ainda acrescentava - Desde que eu a conheci sabia que ela não era totalmente sã.
- Ele ainda teve coragem de me trocar por ela, mamãe - a filha sussurrava, com ojeriza.
- Agora vemos como ela é de verdade. Será que não foi ela quem mandou matar César pra ficar com o dinheiro dele?...
A última frase ecoou na minha mente, fazendo minha visão turva de repente ficar avermelhada e afunilada como a de um predador.

Minha mãe ainda me arrastava para a porta, quando hesitei e a empurrei, indo em direção à Lúcia, mesmo mancando e lhe acerto um tapa pesado e certeiro no rosto.
- Não ouse falar do que você não sabe nunca mais! Fui clara?
Cuspo cada palavra entredentes, e logo depois me viro pra a filha horrorizada.
- Digo o mesmo pra você! - e me viro sem sequer olhar pra trás.
Entro porta adentro, sem notar minha mãe horrorizada e meu tio estático e incrédulo. E muito menos sem notar toda a minha vizinhança parada diante de suas portas com seus olhares pairados em minhas costas.