A Ilusão da Realidade

A Minha Solidão e o Trabalho de Física


Eu nunca tive o hábito de usar redes sociais. Para começar, o que eu ia dizer? “Fiquei em casa lendo, assistindo séries e conversando com as vozes na minha cabeça outra vez #AmigosImagináriosForever”? E além disso… para quem eu postaria qualquer coisa que fosse? Eu até tinha alguns amigos nos meus perfis, mas não eram realmente amigos, nem mesmo conhecidos. Eram apenas pessoas que me viram pelo colégio e já saíram me adicionando mesmo sem nos falarmos muito sei lá eu por qual motivo. Eu sempre aceitava os pedidos simplesmente por não saber o que fazer já também nunca tive paciência de ficar rolando a tela e vendo as mesmas coisas por muito tempo. Não fazia diferença nenhuma para mim.

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Pelo menos, não costumava fazer, mas passei a entrar todos os dias depois da minha briga com Emily porque eu sentia da presença alegre e cheia de energia que ela tinha na minha vida. No fundo, eu tinha a sensação de estar invadindo um espaço que não era meu, só que a curiosidade era maior e tinha horas que eu não conseguia me conter.

De uma forma geral, suas postagens continuavam as mesmas: fotos de balada com grupos de amigos, imagens engraçadas e coisas aleatórias. No entanto, muito de vez em quando, ela também compartilhava mensagens bem românticas; frases clichês, fotos de casais de filme, imagens com desenhos de duas mãos dadas e legenda “eu e você” e outros conteúdos parecidos. Não era o que mais havia em sua página, mas definitivamente estava ali e eu me perguntei se tudo aquilo era sobre o tal Daniel. Se a coisa entre eles estava ficando tão séria assim, talvez ela tivesse mesmo me usado para se aproximar dele naquela festa…

Balancei a cabeça para afastar o pensamento. Lembrar da traição e de tudo o que aconteceu ainda doía demais. Tentei procurar por Alex para me forçar a pensar em outra coisa, porém foi em vão. Não era a minha primeira tentativa e eu já sabia que não o encontraria — aliás, não me surpreendi por não encontrá-lo na primeira vez que procurei, mas isso me incomodava um pouco. Era uma sensação estranha lá no fundo do peito que eu não sabia explicar.

— Decepção — Roy sussurrou entre o sorriso torto só para me incomodar. — O sentimento que você está procurando se chama decepção. Você queria encontrar ele online, não queria?

— Cala a boca, Roy!

Suspirei e enfiei a cara na tela do computador outra vez. Roy estava indo mais direto ao ponto do que nunca ultimamente.

***

O momento que eu mais temia chegou mais rápido do que gostaria que chegasse e, ao mesmo tempo, parecia que já tinha se passado uma eternidade desde aquele fatídico sorteio de duplas. Finalmente, era o dia da minha apresentação de física com Alex, logo na segunda-feira de manhã. Tinha como ficar pior?

Foi uma pergunta retórica e a resposta era óbvia. Claro que tinha! Roy não me deixava esquecer isso nem por um segundo e ria da minha cara o tempo todo, como se eu já não estivesse me enchendo de preocupações por conta própria.

— Chegou o dia, loirinha — ele começou assim que terminei de vestir o uniforme. — E se você ficar tão nervosa que nem consegue andar até a frente da sala?

— Bom dia para você também, Roy — resmunguei em resposta. — Estou tentando não pensar nisso, obrigada.

— Ora, é para isso que eu estou aqui! — ele respondeu com aquela porcaria de sorriso debochado estampado no rosto. — Vamos pensar em outra coisa, então. E se você se atrapalhar e não conseguir nem falar direito?

— Cala a boca, Roy!

— Ou você pode acabar errando a hora de começar a falar — ele continuou, me ignorando completamente. — Ou talvez você tenha uma crise de riso por pura ansiedade. Ou então…

— Eu já entendi! — interrompi antes que eu acabasse ficando ainda mais apavorada. — Cala a boca, Roy!

— Ok, tá bom, já entendi, também. Mas… — Eu sabia que tinha que ter um “mas”. Ele nunca ia parar tão fácil assim. — E o Alex, como você já apelidou tão carinhosamente? E se ele não te deixar falar, ou falar na hora errada, ou te atropelar e te corrigir na frente de todo mundo, ou…

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— Cala a boca, Roy! Sério! Eu não aguento mais!

Alex. A minha maior preocupação depois do clima pesado que ainda estava pairando sobre a minha família. Apesar de termos nos organizado, separado nossas partes e compartilhado os nossos conteúdos por e-mail, não nos falamos pessoalmente em momento algum e nem pensamos em ensaiar, praticar ou só conversar sobre a apresentação. Na minha opinião, isso simplesmente não tinha como dar certo e pensar nas nossas dificuldades só me deixava mais nervosa. Eu não via a hora de acabar com aquilo de uma vez.

Ajeitei meus óculos, dei uma última olhada no espelho para garantir que não tinha nada fora do lugar na minha cara e, por fim, mostrei a língua para Roy. Ou melhor, para o espaço onde eu o imaginava encostado contra a parede, sorrindo e jogando os cabelos para trás.

— Você não está me ajudando em nada ultimamente, então vai ficar de castigo hoje. — Tentei imitar seu sorriso debochado, embora duvidasse que o meu tivesse o mesmo efeito. — Vem comigo, Liesel? Acho que preciso do seu apoio hoje. Você pode me acompanhar?

— É claro, é claro! Com certeza! — Ela levantou a mão ao ouvir o próprio nome e balançou a cabeça para cima e para baixo quando assimilou o meu pedido. — Vou garantir que não tenha nenhum perseguidor espiando a sua apresentação!

Lizzie andou rápido até o meu lado, suas botas de salto alto ecoando ao encostar no piso do meu quarto. Seus cabelos ainda eram rosa como chiclete desde a noite da festa da minha irmã.

***

— E a apresentação de hoje… vejamos…

Meu estômago gelou quando o professor finalmente tocou naquele assunto. Já tínhamos passado por todo o ritual de “bom dias” e a chamada, sem contar que eu tinha a impressão de que ele já sabia muito bem quem era a dupla do dia pelo sorriso com o canto dos lábios marcando seu rosto, exatamente como eu imaginava Roy em seus momentos mais debochados. Bom, isso podia ser mais uma das minhas paranoias. A ansiedade estava me consumindo e brincando com os meus pensamentos.

— Hm… é mesmo… hoje temos Melissa e Alexander discutindo a teoria de muitos mundos! Aplausos, por favor!

Andei até o lado do quadro sem tirar os olhos do chão. Meu rosto queimava tanto que eu sabia que devia estar toda vermelha. E, enquanto eu ainda estava tentando voltar a sentir o ar nos meus pulmões, Alex já tinha começado a apresentação sem que eu nem tivesse percebido o que estava acontecendo.

— A Interpretação de Muitos Mundos é uma interpretação da mecânica quântica que propões a existência de universos paralelos — ele começou. — O primeiro a formulá-la foi Hugh Everett, e…

Os rostos à minha frente estavam começando a parecer borrões e eu não conseguia ouvir uma palavra da explicação de Alex. Droga, por que o professor tinha que escolher um tema tão complicado? O que isso tinha a ver com o que estávamos estudando?! Qual era a próxima parte, mesmo.

— …Melissa? Melissa? — Ouvi Alex me chamar. — A visão geral, por favor?

A minha parte já tinha chegado. Todo mundo estava me olhando e eu me sentia pesada como se estivesse debaixo d’água. Olívia mascava chiclete na carteira da frente enquanto olhava para as próprias unhas e as amigas ao seu redor pareciam estar mais interessada nos próprios telefones do que em mim. Alguns garotos começaram a conversar no fundão. O desinteresse das pessoas ao meu redor me acertou como um soco no estômago e eu nem sabia o porquê — não é como se eu prestasse atenção em todas as apresentações da turma, mas, ao mesmo tempo, aquilo me fazia ter medo de que ninguém se importasse com o que eu tinha para dizer. Que ninguém desse a mínima para a minha apresentação, nem para a minha vez de passar por aquilo ter chegado. De repente, olhando literalmente de frente para todos eles em seus grupos, eu me senti mais sozinha do que nunca.

— Mel! Aqui! Você consegue!

Ainda precisei de mais alguns segundos para me recompôr, mas “ver” Liesel ao fundo da sala acenando e sorrindo com seu entusiasmo habitual era melhor do que olhar todos os rostos ao meu redor. Os olhos grandes e redondos de Emily me encararam por um segundo e eu tive a impressão de que ela acenou com a cabeça para me incentivar, mas foi tudo tão rápido que talvez eu tivesse me enganado. Ou talvez eu estivesse imaginando tudo aquilo e o meu rosto fosse derreter.

O professor fingiu tossir alto e, de repente, todos os olhos se voltaram para mim. Foi por um motivo forçado e eu sabia disso, porém não deixava de ser uma sensação extremamente intimidante.

— Respira fundo! — Liesel continuou, dando pulinhos e me chamando outra vez. — Você estudou tanto que não sei como não ficou louca! Você sabe isso!

Olhei para os slides que Alex já tinha posicionado no local certo, com o título bem grande para me mostrar por onde continuar e tentei respirar mais uma vez. O ar finalmente estava começando a voltar.

— Certo, a visão geral… vejamos… aqui, começando com a formulação do Everett…

Aos poucos, depois que eu passei a olhar apenas para Liesel e focar a atenção no papel com anotações que eu segurava com firmeza, as palavras começaram a voltar e eu fui me lembrando de tudo que estudei.

Caramba, o professor realmente não pegou nada leve com esse tema.

***

Por mais que eu soubesse que as palmas ao final da apresentação não eram nada sinceras, elas me encheram de alívio. Estava acabado. Finalmente, aquela tortura tinha chegado ao fim. E, apesar da minha trapalhada inicial, Alex e eu conseguimos nos revezar com as nossas explicações e o auxílio dos slides sem maiores problemas. Eu nunca imaginaria que conseguiríamos trabalhar tão bem “juntos” — à distância, cada um atrás da sua própria tela, mas juntos de certa forma.

Respirei tranquila pela primeira vez em muito tempo. Quando soltei o ar e ouvi as palmas começando a se abafarem, Alex já tinha sumido. Ele já estava no seu canto ao fundo, folheando seu caderno surrado e eu nem percebi que ele se foi. Mesmo que nosso contato fosse tão superficial, isso já estava começado a se tornar típico e eu já deveria ter me acostumado a não esperar mais que isso. Ele provavelmente sentiu pena de mim quando me perguntou quando as coisas estavam e eu não queria me deixar levar por isso, então não ia mais esperar muito dele, também.

O pior tinha passado. Eu já podia deixar aquela apresentação para trás e seguir com a minha vida.

— É isso aí! — Lizzie deu um tapinha no meu ombro. — Viu? Eu falei que você sabia!

Obrigada, Liz, respondi mentalmente e suspirei para mim mesma. Eu não teria conseguido me acalmar se não concentrasse os meus pensamentos em sua animação.

— Muito bem, foi uma apresentação bem interessante. — A voz do professor fez com que eu voltasse à realidade. — E vocês fizeram uma pesquisa bem completa, não? Espero que tenham prestado bastante atenção.

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O que ele queria dizer com aquilo? Balancei a cabeça e tentei não pensar muito. Lancei um olhar de lado para o outro canto da sala e logo notei que Alex continuava com a atenção fixa em suas anotações. Seus pensamentos já estavam completamente voltados ao seu próprio mundo mais uma vez e perceber isso me fez notar que eu provavelmente deveria fazer o mesmo.

— Não se preocupe, eu não vou te deixar sozinha!

A voz doce de Liesel fez com que eu me sentisse um pouco mais leve, ainda que só existisse na minha imaginação e na forma que eu mesma dei a ela. Mesmo assim, era graças a isso que eu tinha forças para encarar o mundo ao meu redor e as minhas próprias falhas. Seria melhor para todo mundo se eu voltasse a me fechar no mundo que eu criei, o meu próprio universo paralelo, e me esquecesse de todo o resto. Ninguém mais se machucaria; nem eu, nem quem chegasse perto de mim. Eu já havia me decidido e estava disposta a seguir firme com isso.

Então por que eu continuei olhando as minhas notificações o resto do dia todo, esperando por qualquer comentário de Alex sobre o nosso desempenho? Eu não tinha decidido que não deveria esperar por mais dele? Aquele contato humano já estava fazendo mais falta do que eu podia imaginar, pelo jeito.

Não. Eu não ia pensar naquilo. As provas finais já estavam quase chegando. Eu estava decidida a dedicar a minha energia e os meus pensamentos aos estudos, e também aos meus melhores amigos. Eu podia me sentir segura de que eles nunca me abandonariam, assim como eu nunca os magoaria. Do que mais eu poderia precisar?

O resto do dia passou se arrastando e já era noite quando eu abri os meus aplicativos pelo que parecia ser a milionésima vez sem ter mais um pingo de esperança de que haveria qualquer coisa nova ali.

Mas, pela primeira vez em tanto tempo que eu nem saberia dizer quanto, havia uma notificação não aberta me esperando.