A Ilusão da Realidade

A Estranha no Espelho


O salão imenso estava vazio e as luzes continuavam apagadas. Olhei para todos os lados, porém Emily não estava em lugar algum e, parando para pensar bem, eu não conseguia mais lembrar de como tínhamos nos separado, nem quando foi que chegamos. Onde estava todo mundo? Por que Larissa não estava ali? Meus pais também tinham desaparecido. Talvez aquele fosse o lugar errado…? O endereço devia estar certo, mas alguma coisa, com certeza, não se encaixava.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Emily? — chamei da direção da saída. — Tem alguém aí fora?

Não tive resposta. Na verdade, eu nem sabia se ela estava mesmo do outro lado da porta. Quando me virei, percebi que eu não sabia mais para que lado procurar. Abri a boca e tentei chamar outra vez, mas fui recebida pelo ar frio que tocou a minha pele, fazendo a minha espinha se arrepiar. Meus braços e pernas estavam congelando e o vestido curto que Emily tinha colocado em mim provavelmente não ajudava muito. Todo o calor do meu corpo parecia querer fugir de mim.

De repente, tudo fez sentido. Era sempre assim.

E foi então que eu ouvi a voz dela.

— Já vai embora tão cedo?

Sua mão gélida alcançou o meu pulso e me segurou com a delicadeza que eu conhecia bem. Ainda estávamos no escuro, mas eu fechei os olhos mesmo assim.

Eu sabia que ela estava olhando para o chão, pressionando os lábios um contra o outro, e não estava pronta para encará-la daquele jeito.

— Sabe, eu nunca estive numa festa dessas… — ela continuou do seu jeito sutil, com a voz baixa que eu me lembrava tão bem. Talvez os murmúrios tímidos passassem despercebidos por mim se aquele jeito não me fosse tão familiar. — Será que você não pode ficar só mais um pouquinho? Os convidados já devem estar chegando.

Não havia festa; agora, eu sabia por que não havia convidados. Aquilo tudo ainda era tão real, tão palpável… eu queria poder me virar e lhe segurar com muita força num daqueles abraços capazes de dizer tudo o que a minha própria timidez me impediu quando ainda havia tempo, mas isso só fazia eu me sentir cada vez mais gelada, como se o calor no meu corpo se dissipasse no ar a cada segundo.

Ela tinha que estar aqui. E talvez esse fosse o motivo mais egoísta e estúpido do mundo, mas, se ela não poderia aproveitar essa festa, eu devia encontrar o melhor jeito de fazer essa oportunidade valer a pena.

***

Acordei sentindo o meu corpo afundar no colchão duro que eu não conhecia. Emily se revirou na cama e eu puxei os meus óculos para perto, mas o meu cérebro recém-desperto e em choque não me ajudou a encaixar a armação no rosto. Eu só queria que aquela sensação estranha de sonho ruim passasse logo.

— Mel, atende logo — ouvi Emily resmungar e olhei para o meu celular.

Eu não tinha percebido que o meu telefone estava tocando e atendi com tanta pressa que não parei para ver quem estava ligando.

— Alô?

— Filha, você acabou de acordar? — minha mãe comentou do outro lado da linha. Essa nãoela conhecia bem a minha voz de sono.

— A gente ficou vendo filme ontem…

— É melhor você almoçar logo, já tá ficando tarde. E vê se não vai acabar pegando esse hábito… você vai ficar bem aí hoje?

— Vou — afirmei mesmo sem ter certeza nenhuma. — Tá tudo certo.

— Tome cuidado para não se distrair demais, certo? Se as suas notas baixarem, vamos ter que rever essas saídas com essa menina.

A voz e as palavras da minha mãe continuavam tão duras quanto eu já imaginava. Eu tentava pensar que ela só se preocupava comigo e com o meu futuro sempre que tínhamos essa conversa, porque era nisso que eu tentava me segurar nesses momentos. O que mais eu poderia dizer?

— Tudo bem, nós vamos ver — eu tentei enrolar, porém logo ouvi o suspiro da minha mãe.

— Nós vamos cuidar dos últimos assuntos da festa. Se precisar, estou de olho no celular.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Ok.

— Até mais.

— Até mais.

A ligação terminou de um jeito simples e direto, como eu também sempre esperava. Emily estava sentada com as pernas cruzadas no colchão e o jeito como ela me encarava fazia seus olhos bem abertos parecerem ainda maiores.

— Quem era? — perguntou, visivelmente curiosa.

— Minha mãe.

— É assim que vocês conversam? — Sua boca se entreabriu assim que ela absorveu a resposta. — Sempre foi assim?

— Ela deve estar com um milhão de coisas para resolver… — suspirei e me preparei para mudar o assunto. — Já é hora do almoço?

Emily olhou no próprio celular e riu para si mesma.

— É quase uma da tarde… acho que a gente exagerou um pouco! — Mas, assim que terminou de falar, Emily riu. Algo me dizia que ela não estava nem um pouco arrependida. — Vamos almoçar, então?

Acenei com a cabeça e olhei para o celular na minha mão. Essa família provavelmente estava mais distante do que eu conseguia perceber, e eu realmente precisava esquecer de tudo isso. Ironicamente, tentar não pensar em algo só faz tudo voltar com ainda mais intensidade: as cobranças da minha mãe, as expectativas do meu pai, as coisas que a minha irmã me dizia quando demonstrava o quanto adorava me rejeitar e afirmar que eu não era bem-vinda, as brincadeiras sem graça que envolviam baratas, sustos e me deixar nervosa…

— Emily? — Minha voz não passou de um murmúrio, porém Emily se virou na minha direção no mesmo instante. — Depois que voltarmos do shopping, você me ajuda a escolher uma roupa legal para a festa?

Aquilo era o mais perto que eu conseguiria chegar de dizer “sim”. Emily sorriu e deu um pulinho que me lembrou os gestos de alegria de Liesel.

— É claro! Eu estava torcendo para você me pedir isso!

Encostado contra a porta do quarto, Roy jogou os cabelos para trás e sorriu do seu jeito debochado de sempre.

— Ora, ora, loirinha. Até que enfim! Eu já estava começando a achar que você não ia ter coragem!

***

Encarar mais uma tarde de shopping com Emily não foi tão difícil quanto deixar que ela me arrumasse para a festa, ainda mais com a ajuda de Lizzie e Roy. Nossa tarde acabou não sendo muito diferente do nosso primeiro passeio e logo voltamos para o quarto de Emily para nos preparar. Eu não estava acostumada a vestir várias roupas e ficar trocando acessórios antes de sair, porém deixei ela tentar o que lhe vinha na cabeça sem reclamar muito porque, pelo menos assim, sua atenção se mantinha ocupada e ela fazia menos perguntas.

— Tenta isso aqui — Emily estendeu a mão e me entregou mais uma muda de roupas. — Esse sim vai ser o escolhido, você vai ver.

Eu esperava que aquilo fosse verdade porque não aguentava mais olhar, escolher e trocar de roupas, blusas, saias, vestidos curtos e saltos que eu não sabia usar. Felizmente, quando cheguei no banheiro e olhei para a escolha da vez, suspirei aliviada. O vestido de alças preto caía até os meus joelhos e me servia bem, quase como se fosse meu mesmo com a nossa diferença de altura.

Voltei para o quarto e fiz o meu melhor para abrir um sorriso.

— Você tinha razão — concordei, balançando a cabeça. — É esse. Tem certeza que eu posso usar?

— Mel, eu não abri o meu guarda-roupa inteiro para você só para ficar mostrando as minhas roupas! — Emily insistiu e a resposta me fez desviar o olhar para a parede. — Deixa de frescura, você é minha amiga. Essa saia fica um pouco mais curta em mim, mas eu sabia que ia ficar do seu gosto em você.

— Er… o que isso quer dizer? — perguntei sem saber como entender aquele comentário. Era algum tipo de julgamento?

— Ora, quer dizer que eu sei que nós somos diferentes, ué — ela respondeu com uma facilidade de dar inveja e eu senti um peso sair dos meus ombros. — Eu sei que você não usa roupas como as minhas, então é melhor começar com algo que te deixe à vontade. Se você quiser tentar outra coisa…

— Não! — Balancei a cabeça sem pensar duas vezes e continuei murmurando. — Obrigada.

— Foi difícil, mas valeu a pena.

Emily sorria com satisfação e, vendo ela daquele jeito todo feliz e orgulhoso, eu me senti ainda mais leve. Ela realmente estava tentando, apesar das nossas diferenças. Isso era algo que me deixava um pouco confusa, mas que eu também queria poder retribuir de alguma forma. E a única coisa que eu conseguia pensar naquele momento…

— Você quer fazer a minha maquiagem?

Eu já senti o arrependimento antes mesmo daquelas palavras saírem pela minha boca. Ao mesmo tempo, ver a excitação de Emily triplicar valeu o esforço.

— Com certeza! Pode confiar em mim, não vou exagerar!

— É só isso que eu peço, Emily.

Respirei fundo e fechei os olhos. Emily me puxou para a cama, abriu a gaveta da escrivaninha e, depois daquele gesto, eu me perdi outra vez. Fechei os olhos e deixei que ela fizesse o que achasse melhor no meu rosto enquanto me falava sobre todos os benefícios da base ou do corretivo, apesar de eu não entender muito bem nada do que estava ouvindo como se ela estivesse falando em outra língua. A cada palavra que ela dizia, mais distante eu me sentia do mundo em que as outras pessoas ao meu redor viviam; felizmente, Roy e Liesel não saíram do meu lado em momento algum. Lizzie até tentou comentar alguns dos seus próprios truques de maquiagem, mas continuei tão perdida quanto antes, é claro — o que a minha criação poderia entender sobre isso se eu mesma não sabia nada?

Eu odiava pensamentos como aquele e, mesmo assim, eles sempre acabavam encontrando um espacinho entre os meus medos quando eu ficava nervosa daquele jeito. A hora estava cada vez mais próxima, a festa ia começar logo e eu ainda não sabia muito bem o que esperar da minha decisão idiota de simplesmente aparecer sem aviso.

— Prontinho! — O chamado de Emily me fez voltar à realidade. — O que você acha?

Olhei para o espelho sem saber o que esperar, ou para onde eu devia olhar. A maquiagem de Emily não estava ruim — pelo contrário, ficou muito melhor do que eu esperava — só era… estranho, muito estranho, me ver daquele jeito. A sombra escura combinava com o vestido, o brilho era quase sem cor e tinha só um pouco de glitter, o blush era tão suave que eu só sabia que estava ali porque ela me explicou, meu nariz estava afinado e até as minhas bochechas redondas pareciam diferentes. Levantei um pouco o espelho para tentar me ver com aquela roupa, também, e isso só fez tudo ficar mais inusitado. Era como se eu estivesse olhando para uma completa estranha no reflexo. Definitivamente, aquilo não era para mim. Não era eu.

— Não gostou?

Senti a voz de Emily enfraquecer e meu estômago gelou.

— Emily, ficou lindo! — torci para que a minha animação forçada a convencesse, afinal, eu não estava mentindo. Tinha ficado muito bom, eu que não gostava de me ver maquiada. — Acho que eu não tô muito acostumada.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Podemos dar um jeito nisso! — O sorriso de Emily voltou. — Se você quiser, posso te levar para algumas festas bem legais!

Mordi o lábio enquanto tentava encontrar uma resposta. Eu nunca tinha estado em uma festa e já começava a sentir o meu coração disparar só de imaginar todas aquelas pessoas me olhando e vendo o quanto eu era esquisita e desajustada, ainda mais se eu fosse daquele jeito, como uma pessoa que não era eu mesma. Ao mesmo tempo, como dizer isso sem acabar com a animação de Emily? Ou sem parecer algum tipo de crítica que eu não queria fazer?

— Talvez… — sussurrei torcendo para que ela não ouvisse.

— Vai ser divertido! Não tá sendo ótimo até agora?

— Acho que sim… — Minha voz não pareceu nada convincente aos meus ouvidos. Eu me perguntei se Emily conseguia sentir a minha dúvida sempre que eu falava alguma coisa. — Desculpa. É que eu tô preocupada com a festa da minha irmã.

Não sei como foi que eu consegui pensar naquela desculpa, mas funcionou. Emily colocou a mão sobre o meu ombro e tentou demonstrar seu apoio.

— Tudo bem, uma coisa de casa vez — Emily assentiu. — Vamos pensar só nessa noite por enquanto. Respira fundo e tenta ficar calma. Vou terminar de me arrumar e a gente já sai.

— Ok.

— Dá uma olhada no espelho do guarda-roupa se você quiser garantir que tá tudo certo.

— Ok — repeti.

Levantei com um pulo assim que Emily saiu e procurei pelo espelho. Os meus olhos verdes me encararam de volta e os meus cabelos lisos caíam até quase a cintura, como sempre. Mesmo assim, meu reflexo ainda parecia fora do normal, como se eu fosse ainda mais diferente de mim mesma agora que podia me analisar em tamanho real… o que não queria dizer que isso era algo ruim. Era apenas estranho e eu estava perdendo a conta de quantas vezes essa palavra se repetia na minha cabeça. No entanto, eu ainda tinha uma preocupação muito maior em mente.

Será que era tarde demais para mudar de ideia?

***

A atmosfera descontraída do carro do pai de Emily não poderia ser mais diferente da tensão que tomava conta de mim. Eles conversavam sobre assuntos quaisquer tranquilamente e eu só conseguia me imaginar entre Lizzie e Roy no banco de trás para ocupar todo aquele espaço vazio. Eu queria que os meus amigos me dissessem qualquer coisa, porém até mesmo Roy estava sem palavras. Talvez fosse o meu próprio nervosismo, ou então aquela sensação de culpa que já fazia meus músculos ficarem duros mesmo antes de chegarmos no salão. Eu não conseguia encontrar palavras para nada, nem mesmo para os meus melhores amigos. Então, nós três continuamos sentados em silêncio e observamos a conversa deles enquanto eu tentava manter uma expressão neutra até o pai de Emily parar na frente do salão.

— Ligue quando a festa acabar — ele comentou com um sorriso e acenou pela janela depois que nós saímos do carro. — Eu venho buscar vocês.

— Certo. Obrigada.

— Obrigada, senhor — tentei agradecer, mesmo que meio sem jeito.

Emily não disse mais nada, deu um último beijo no rosto do pai e o carro se afastou.

— Emily? — chamei com a voz baixa. — Tá tudo certo? Eu te arrumei algum problema?

— Mel! — Ela cobriu a mão com a boca. — Nem entramos ainda e você já bebeu? Que problema você me arrumaria?

— Sei lá… — Balancei a cabeça para tentar dispersar os pensamentos ruins. — Eu não consigo nem imaginar uma conversa tão tranquila no carro com os meus pais. Desculpa ter ficado tão quieta.

— Por que você está me pedindo desculpas por ser você? — Ela colocou as mãos na cintura e arqueou a sobrancelha. Aquela reação fez com que eu conseguisse me sentir um pouco mais leve. — Eu já conheço o seu jeitinho, Mel, e também sei que você deve estar bem nervosa. Não precisa se preocupar assim. E o meu pai adora me levar e buscar nos lugares, ele gosta de saber que eu cheguei e voltei para casa em segurança. Está tudo bem.

— Entendi — tentei continuar o assunto mesmo que fosse uma completa mentira.

— Vamos entrar logo! Você já quer falar com a sua irmã?

Pelo jeito, Emily estava aprendendo a entender quando eu não sabia o que dizer, porque ela me segurou pelo pulso e me levou pela multidão para entrarmos andando a passos rápidos.

O salão estava lotado e aquela foi a primeira vez que eu me dei conta de que a minha irmã conhecia tanta gente assim. Uma banda tocava uma música com batida de rock que eu não consegui reconhecer e as pessoas ao nosso redor pulavam, cantavam, andavam para todos os lados e balançavam copos ao meu redor.

Eu nunca tinha me sentido tão deslocada na minha vida.

Por que eu tinha pensado que aquilo era uma boa ideia?

O que eu estava fazendo ali, no meio de tanta gente?

Será que algum dia eu ia conseguir entender esse mundo ao meu redor?

Quando foi que decidir enfrentar a Larissa de frente na própria festa me pareceu ser uma boa ideia?

No que eu estava pensando quando isso pareceu fazer sentido?

Deixei Emily me guiar e respirei fundo, tentando me concentrar. Quis imaginar Roy segurando a minha outra mão e prometendo que tudo ficaria bem, mas quando é que o Roy foi de agir assim? Ao mesmo tempo, eu conseguia imaginar Lizzie pulando e gritando até estourar os pulmões tranquilamente, enquanto Roy se perdeu entre a multidão com as mãos nos bolsos e seu sorriso idiota no rosto até que eu o perdesse de vista entre todas aquelas pessoas se movendo. Continuei deixando Emily seguir à frente sem nem pensar no que deveria fazer. Minha mente estava em branco, meus ouvidos queriam estourar e eu não conseguia pensar em mais nada.

Apesar de eu tentar procurar por Roy desesperadamente, quando Emily nos colocou bem na frente do palco, a única coisa que eu consegui reconhecer no meio de toda aquela confusão foi o olhar frio do guitarrista logo à minha frente entre as luzes coloridas que o iluminavam.