“Você fez o que?!”

Domenicha já havia ouvido tanto aquele tipo de tom que nem desviou a atenção da sua bebida.

“Olha, eu nem pensei direito sobre isso. Foi meio que no instinto.” Ela deu de ombros, ainda sem dar importância à expressão do amigo. “E qual é o problema? Como se ela fosse tentar fazer alguma coisa com todo mundo aqui presente. Não acho que ela seja suicida...”

“Eu não acredito nisso...” Nick revirou os olhos, tomando um gole grande demais de seu copo. “Quando ela chega?”

“Eu não sei.” A Pooka rapidamente afanou alguns docinhos, praticamente os enfiando na boca – ela tinha a sorte de não ter nenhum efeito colateral quando comia chocolates, diferente de seu pai. “Nem sei se ela vai aparecer. Eu convidei, mas não quer dizer que ela realmente vai aparecer...”

Domenicha tentou disfarçar quando Wonder apareceu, reclamando sobre esperar os outros convidados para finalmente começarem a comer. A festa já havia começado há algum tempo para falar a verdade, mas eles ainda estavam esperando alguns convidados.

Principalmente Domenicha...

Ela realmente estava curiosa, se perguntando se Demetria iria mesmo aparecer ou não. De verdade, ela não daria a mínima se aquela garota não aparecesse. Se bem que...

Seus olhos azul e verdes de minuto em minuto se perdiam nas áreas escuras do salão, embora fossem poucas por causa da iluminação, tanto artificial quanto a que era refletida pelas paredes de gelo. A festa era em outro grande salão da oficina no Polo Norte, longe da correria das ultimas semanas para o natal; as paredes eram uma bela junção da cordilheira de gelo em que a oficina estava encostada, com paredes de pedra e madeira. Domenicha não tinha certeza se era por alguma mágica ou se era por algum mecanismo, mas a sala não era nem um pouco fria, mas na verdade muito aconchegante.

Mesmo assim, não havia nada além de sombras nos cantos escuros. Nem sinal de Demetria.

Domenicha decidiu se focar na festa e ignorar aquilo. Porque queria tanto ver aquela garota de novo?

“Boo!”

“AGH!” Domenicha quase pulou meio metro no ar, se virando para quem havia chegado de fininho (de algum modo) e sussurrara em suas orelhas sensíveis, dando de cara com uma marcara laranja. “Jack-o! Caramba! Não vai chegando assim nas pessoas não!”

“Ora, foi mal...” A pessoa por trás da mascara riu. “Eu sou o espírito do Halloween não sou?”

“Estou surpresa que meus pais tenham permitido que você viesse.” A Pooka disse com as mãos na cintura, mas não pôde deixar de sorrir. Afinal, aquele era Jack-o-Lantern, o espírito do Halloween e um dos maiores pranksters que ela já conhecia, e quem era ela para não gostar de pegadinhas?

“E quem disse que eles deixaram?” Jack-o rapidamente fisgou um salgado da mesa, tendo certeza de que Wonder não estava olhando. Ele abaixou o rosto e ergueu levemente a máscara para poder comer. Domenicha, embora curiosa, não ousou olhar, sabendo que o outro espírito não gostava que vissem seu rosto. “Eu entrei de penetra.”

“Nem tão de penetra assim.” Uma voz forte quase fez os dois jovens pularem.

Coelhão se aproximou com os braços cruzados e aquela típica expressão fechada; mas sua filha conseguia ver que era só de fachada mesmo, o Pooka havia acordado de bom humor naquele dia, afinal, era a festa de aniversário de sua pequena coelhinha.

“Oh, ola, Senhor Coelho da Páscoa!” Jack-o falou, fazendo uma reverencia boba com a mão. Não dava para saber o que havia por trás da máscara, mas dava para se ouvir um ar nervoso na voz.

“Eu vi você chegando.” Coelhão continuou com a mesma expressão.

“Ah, qual é, pai...” Domenicha sorriu, passando um braço em volta dos ombros de Jack-o, embora ele fosse mais alto. “Deixa o Jack-o ficar! Ele é o espírito de uma das melhores festas do mundo, a presença dele é essencial!” Tal rapaz assentiu como uma criancinha.

Coelhão bufou com aquele comentário, mas sorriu torto.

“Claro, pode ficar.” E de repente voltou a ficar sério, se abaixando um pouco, para ficar quase no nível de Jack-o. “Mas eu vou ficar de olho!” E, antes de se afastar, agarrou o braço de Domenicha e a afastou alguns centímetros do espírito do Halloween.

Jack-o riu baixinho enquanto o Pooka se afastava, sabendo que esse poderia ouvir as risadas mesmo assim.

“Ele realmente ainda acha que eu tenho uma queda pelo Jack?” Domenicha apenas deu de ombros, rindo junto com o rapaz. “Isso é ridículo!”

Jack-o-Lantern nunca foi amado pelos Guardiões, com exceção de Domenicha que gostara dele na mesma hora em que foi assustada por ele alguns anos atrás em uma noite de Halloween. É claro que havia um motivo por trás disso.

Há muitos anos atrás, Jack-o havia ficado ao lado de Breu, ajudando-o a aumentar seus poderes em troca de alguma coisa que ninguém, fora ele e o Rei dos Pesadelos, sabiam o que era. Porém, após ser pego pelos Guardiões e não levar mais que uma grande bronca, ele se afastou de Breu. Assim como Emily, a mãe natureza, não se podia dizer que ele possuía um lado na luta entre os Guardiões e o Bicho Papão. Ele preferia ficar em cima do muro.

O grande problema para Coelhão foi quando Jack conheceu Jack-o pela primeira vez. Não é preciso dizer que eles se deram bem. Então, é claro que o Pooka não ficou nem um pouco contente, sendo o grande ciumento que era.

Mas fora isso... É claro que os Guardiões mantinham um olho aberto para o espírito do Halloween. Quem poderia dizer se ele não se voltaria contra eles, ficando ao lado de Breu?

Domenicha não acreditava que isso iria acontecer, mas pouco lhe importava. Os Guardiões estavam tão fortes quanto nunca então, nem Breu nem Jack-o, seriam idiotas o bastante para fazer alguma coisa.

Nem Demetria...

No mesmo instante, Domenicha voltou a procurar aquela garota. Mas os cantos escuros continuavam tão vazios quanto antes.

“Domenicha...” A voz de Jack-o a surpreendeu de novo. “Você está bem?”

“Claro!” Ela sorriu. “Porque não estaria?”

“Eu fico vendo o modo como você olha para as sombras...” O espírito murmurou e dava para notar um pouco de tristeza em sua voz. “Você não acha mesmo que eu estou de volta com o Breu, acha?”

“Não!” Ora, mas é claro que ele iria pensar aquilo! A Pooka se sentiu mal. “Eu só estava pensando...”

“No que...?” Mas antes que ela pudesse falar alguma coisa mais, Jack-o se virou, erguendo a mão. Domenicha seguiu a direção para a qual a máscara estava voltada, notando que era para um dos cantos mais sombreados do salão. Espera... Ele não estava tão escuro assim antes, estava? “Eu sinto alguma coisa...”

Mas é claro! Domenicha havia esquecido que Jack-o-Lantern tinha a capacidade de sentir outras criaturas da escuridão.

Isso queria dizer que...

Dois olhos prateados surgiram no meio das sombras, como se flutuassem cintilantes no meio do nada.

“É Bre-- Mn!”

Antes que ele pudesse continuar, Domenicha agarrou sua máscara, colocando a mão onde ficava a abertura em cima de sua boca (que não podia ser vista). E, embora soubesse que aquilo não poderia calar o rapaz, a Pooka sabia que um agarrão tão repentino na máscara faria o trabalho.

“Shhh! Não é Breu! Embora pareça!” Ela sibilou para ele, que havia congelado em baixo de suas mãos. Deu uma olhada em volta, mas por sorte os demais presentes na festa estavam prestando mais atenção nos novos convidados que chegavam (que, aliás, eram Amber e Waren, os espíritos do outono e verão). “É a filha dele! Eu a convidei escondido!”

“Filha?” Jack-o se surpreendeu. Ele sabia muito bem que Breu era pai de Emily, mas aquela não era a mãe natureza...

“Fica aí, eu vou lá.” Domenicha disse, soltando o rapaz e caminhando até o escuro no que esperava ser um modo que não levantava suspeitas.

Os dois olhos prateados se mantiveram constantemente presos nela, encarando cada movimento até que ela estivesse perto. Um rosto se materializou em volta daqueles olhos e um sorriso de dentes tortos e pontiagudos se abriu.

“Ola.” Demetria disse em um tom baixo.

“Oi.” Domenicha disse, sem poder deixar de retribuir o sorriso, ela se encostou contra a parede, com os braços atrás da cabeça, como se simplesmente repousasse. “Estou surpresa que você veio.”

“Bem, você me convidou.” Demetria disse e era difícil decidir o que o tom de sua voz queria dizer. “E se conhecendo seus amigos é o único jeito de ser sua amiga...” Ela suspirou de um modo ainda mais estranho. “Eu decidi que era melhor vim...”

Domenicha riu torto, segurando uma risada. Não era um modo estranho, era um modo “derrotado”. Pelo jeito elas não estavam fazendo o que estava nos planos da garota das trevas. Melhor assim...

“Tudo bem.” A Pooka assentiu levemente. “Fica aqui que eu vou chamar meus amigos. Acho que é melhor você se desmaterializar, ok? E esconda esses olhos também! Jack-o quase pensou que você era o seu pai!”

Demetria rosnou de repente, surpreendendo a outra, mas voltou a suspirar.

“Eu vou ficar observando.” Disse simplesmente antes de desaparecer por completo. O escuro daquela área se tornou mais claro.

Ok, Domenicha tinha de admitir que aquilo era algo maneiro de se ver, alguém aparecendo e sumindo desse jeito. Ela deixou aquilo de lado e voltou para seus amigos tentando aparentar normal e calma. Um nervosismo estranho subira por sua garganta ao pensar em apresentar os amigos para aquela garota... Só esperava que não estivesse cometendo nenhum erro...

Ela deu boas vindas aos outros dois espíritos das Estações e outros convidados antes de ir até os gêmeos São Norte.

“Ela está aqui.” Domenicha disse simplesmente, recebendo um assentir duro dos gêmeos. Dava para ver que Wonder não estava contente; bem, de fato, a Pooka não havia contado sobre a possível presença de Demetria, mas pelo jeito Nick já havia dito tudo.

Os gêmeos deram de ombros e a seguiram para o mesmo canto de onde vieram. Já havia mais gente na festa e por sorte o movimento do grupinho passou despercebido. Era engraçado pensar que eles eram os aniversariantes e ainda assim poucas pessoas pareciam interessadas neles...

“Então porque ela está aqui?” Wonder perguntou, desgostosa.

“Para conhecer vocês.” Domenicha disse simplesmente e no mesmo instante um rosto cinzento voltou a aparecer nas sombras. “Wonder, Nick, esta é Demetria. Demetria, esses são Wonder e Nick!”

Um silêncio tenso tomou o ar no mesmo instante em que Domenicha se calou. Dois pares de olhos azuis e roxos se focaram em dois olhos prateados e dava para notar o que eles transpassavam. Nick e Wonder estavam nervosos, tensos, com certeza se lembrando de todos os golpes de luta que haviam aprendido de seus pais e dos demais Guardiões. Enquanto Demetria... Não havia como ter certeza... Aqueles olhos acinzentados eram estranhos, obscuros e nevoados, impedindo que qualquer coisa os transpassassem...

“Prazer em conhecê-la...?” Nick começou.

“Porque você estava perseguindo a ‘Nicha?” Wonder interrompeu um pouco alto demais. Domenicha fez sinal para que ela falasse mais baixo enquanto Demetria não respondia. “O que? Você não sabe falar?”

“Eu não perseguia a Domenicha.” A garota finalmente respondeu, os olhos tão enevoados quanto antes e a voz sem vida alguma. “Eu a visitava. Queria falar com ela.”

“E por quê?” Wonder continuou, cruzando os braços na frente do peito como seu pai fazia para se mostrar mais forte.

“Queria conhecê-la.” Demetria disse, curto, rápido.

“Por quê?” A fada interrogou.

Demetria rosnou baixinho, surpreendendo a Pooka mais uma vez. Era estranho... Demetria soava tão parecida com ela quando ela rosnava...

“Eu queria uma amiga.” A garota das trevas continuou. “E Domenicha pareceu a pessoa perfeita.”

Ok, Domenicha não esperava isso. O que estava acontecendo ali?

“A ‘pessoa perfeita’?” Nick perguntou, aquilo havia soado estranho até para ele. “O que quer dizer com isso?”

Demetria se calou, como se hesitasse em falar o que quer que fosse. Domenicha estranhou aquilo. A garota sombria havia dito que queria ser sua amiga, que há muito a procurava e tentava fazer contato, mas uma coisa que a Pooka nunca se perguntou mesmo era o “porque” daquilo tudo.

E agora, quando questionada, Demetria se calava.

Havia algo de errado ali...

“Não lhe devo essa resposta...” Ela disse apenas.

“Você é filha de Breu, arqui-inimigo dos Guardiões...” A voz de Nick ficou mais forte, tentando incitar a garota a responder. “E de repente decide que quer fazer amizade com uma das filhas deles com a única desculpa de que ela parece a pessoa certa? Isso é um pouco estranho não acha?” Demetria não falou nada. “Qual é o seu plano de verdade?”

Ok, agora acusações parecia estar prestes a serem jogadas pelo ar.

“Ei, gente, calma!” Domenicha se apressou entre eles. “Também não é pra tanto! Quem diz que ela realmente tem algum motivo por trás de uma amizade?”

“Você está a defendendo?” Wonder perguntou surpresa.

“O que?! Não! Eu...” Espera, ela estava a defendendo! “O que eu quero dizer é que a gente não pode se precipitar a nada...”

“Então porque ela não diz nada então?” Nick se voltou para Demetria que continuava calada. “O que há por trás do que você diz?”

Demetria de repente sorriu, um sorriso torto e nada amigável, que deixava aparecer cada um daqueles dentes nojentos.

“Não tem porque eu dizer algo tão importante para alguém como você...” Sibilou.

Domenicha se surpreendeu com aquele comentário, sentindo seu sangue gelar com aquele tom de voz. Não se parecia nem um pouco com a voz que falara com ela antes. Era uma voz fria, desprovida de sentimentos, e terrivelmente sombria. Por um momento ela hesitou antes de fazer alguma coisa... Será que havia mesmo sido enganada?

Seus olhos se desviaram para os demais na festa, encontrando a máscara de Jack-o-Lantern virada na sua direção.

“É claro que tem se isso tem a ver com a ‘Nicha.” Nick continuou, tão sério quanto antes. A força do sotaque russo de seu pai aparecendo a cada palavra. “O que de tão importante você tem para com ela?”

“Eu quero ela.”

Domenicha congelou ao ouvir aquilo, mesmo assim sentindo as bochechas esquentarem. Demetria a queria...? Mas... Em que sentido...?

A quer?” Wonder entrou na desavença. “Pois não pode tê-la! Domenicha não é um objeto ou algo do tipo!”

Domenicha corou mais enquanto os amigos a defendiam. Mas ela tinha de por um fim naquilo!

“Será que não?” Demetria se voltou para a Pooka com aquele sorriso sinistro. Ela ergueu a mão cinzenta, mas antes que ela pudesse se aproximar da outra, uma mão agarrou seu pulso.

“Não ouse encostar nela!” Nick disse seriamente, mas pelo jeito não teve nenhum efeito sobre a garota.

“E você...” Demetria sibilou, erguendo a outra mão e agarrando o braço de Nick, tentando afastá-lo. “Não ouse me tocar!” Mas o garoto não a soltou. “Eu disse... NÃO TOQUE EM MIM!”

“NICK!”

Aconteceu rápido. De repente, Demetria se soltou do aperto de Nick e se lançou para fora da escuridão, atingindo o peito de Nick com as mãos com uma força tremenda. O garoto voou pela sala, caindo próximo às mesas de doces com um bate alto, mas abafado.

É claro que isso chamou a atenção dos demais na festa.

“Mas o que é isso?!” A voz forte de Norte ribombou pelo salão e Demetria de repente congelou, como se só agora tivesse notando os demais.

“Sua...!” E antes que Demetria pudesse reagir, Wonder havia voado para seu pescoço, o agarrando com as mãos pequenas e a erguendo no ar. “Ninguém machuca o meu irmãozinho!”

Domenicha se surpreendeu com a repentina mudança de eventos. Ela olhou da São Norte para o outro do outro lado da sala, que já estava sendo amparado pela mãe e por outros convidados. Norte, Coelhão e Jack se aproximavam com armas em punho.

Demetria sorriu contra o aperto de Wonder e de repente se desfez em fumaça, sumindo das mãos da fada e se arrastando para a escuridão. Até que algo a impediu de seguir em frente.

Jack-o-Lantern a agarra com a mão e, para sua surpresa, ela não podia se desvencilhar, mesmo sendo nada além de fumaça.

“Eu sabia que algo como você não seria bom sinal.” Ele disse simplesmente, puxando Demetria para longe do escuro.

Demetria gritou de algum lugar de dentro das sombras que havia se tornado e não era como se Jack-o estivesse apenas a puxando, mas como se ele estivesse arrancando alguma parte dela. Por um instante Domenicha sentiu os batimentos de seu coração contra seu ouvido, rápidos e pesados e ela não sabia o porquê...

“Pare!” Domenicha pulou até o espírito do Halloween, o puxando pelos ombros numa tentativa de fazê-lo soltar a garota que continuava gritando. “Solte-a! Está a machucando!”

“Domenicha!” A voz de Coelhão surpreendeu a jovem Pooka, mas não a ajudou em nada.

Ela voltou a puxar o braço de Jack-o até que ele não conseguiu segurar mais e soltou. A fumaça que era Demetria se enrolou no ar antes de flutuar rapidamente para a escuridão e desaparecer completamente.

Domenicha caiu sentada com a força e simplesmente encarou aquele canto escuro.

“Domenicha?” Uma mão fria pousou em seu ombro. “Você está bem?”

A Pooka não falou nada.

“O que você fez?!” Jack-o gritou. “Eu tinha ela em minhas mãos!”

Domenicha ainda não respondia.

“O que era aquilo?” O que parecia ser a voz de Jamie falou de repente.

Mas a garota hibrida continuava calada.

O que havia acontecido ali? O que havia acontecido com ela? Porque ela reagira daquele modo? Demetria havia acabado de lançar seu melhor amigo para longe e a única coisa com a qual ela se importara era com aquela garota!

Céus... O que Demetria havia feito com ela?