Capítulo 1 - Adeus...


Eu sentia como se aquele fosse o pior dia de minha vida. O céu estava escuro e nublado, refletindo meu estado de espírito. Havia uma névoa pairando no ar, e o calor do verão de fim de ano não parecia capaz de varrer o frio que dominava o cemitério vazio. Estava tudo tão silencioso e quieto, que era de se espantar que houvessem três seres humanos vivos perto do túmulo recém cavado. Mas haviam três pessoas: eu, minha irmã e o coveiro.

Se algum dia, em um passado distante, eu tivesse imaginado esse dia, pensaria em um cemitério cheio de repórteres e jornalistas tentando conseguir um bom ângulo para registrar muitos fãs e admiradores se lamentando. Entretanto, como muitas outras vezes, eu estava errada. Enquanto estava parada ali, ouvindo nada além da terra a bater no caixão do meu avô, não havia ninguém lamentando a morte de um grande explorador além de suas duas únicas netas.


Caía uma chuva fraca de verão sobre a relva verde acinzentada assim como também caiam lágrimas silenciosas dos meus olhos e dos de minha irmã. Nenhuma das duas falava ou ameçava fazer tal ato. Eu travava uma enorme batalha interior, tentando segurar o choro e suportaro som do último montede terra bater no túmulo de um dos homens que eu mais amara na vida. O som do Adeus. Naquele momento, sua morte se tornou mais clara, irreversível e chocante do que tinha sido para mim. E eu sabia, no íntimo, que, mesmo que minha irmã não quisesse admitir, por ser durona demais, ela também lutava para controlar a horrível sensação de perda que corroía nossas gargantas.


Não entendia porque estava sendo tão difícil dizer adeus à ele. Afinal, já havia dito adeus a minha avó - dois anos antes - e aos meus pais, não havia?Fosse porque meus avós estavam conosco no enterro de meus pais, nos dando apoio e consolo, ou fosse porque eu era mais nova e inocente na época, o fato era que a dor de perder meu avô parecia maior do que a de perder meus pais.


Eles tinham morrido em um acidente de avião, em uma viagem do tipo de segunda lua-de-mel, para as quais casais vão sem levar os filhos. Nós tínhamos 6 anos. Depois disso, eu e Manoela passamos a viver com os pais de minha mãe, já que a família de meu pai vinha da Itália, e ele era o único membro da família no Brasil. Foram dias felizes os que passamos com meus avós. É claro que sentia falta da minha mãe e do meu pai, mas nossos avós nos tratavam com tanto carinho, e éramos tão novas para entender as coisas, que a saudade não machucava tanto. Me lembro claramente das risadas da minha irmã quando eu não conseguia encontrá-la no esconde-esconde. Lembro de minha avó sentada em sua poltrona, fazendo crochê, e de meu vô, com seus óculos, lendo o jornal enquanto tomava café, e duas crianças faziam, apressadas, a tarefa de recorte e cole que a professora passara. Lembranças boas que sempre me faziam sorrir. Até mesmo naquele dia cinzento, no cemitério, lembrar essa época feliz me fez dar um pequeno sorrisinho e me animou um pouco. Lembrei com carinho até mesmo da sala que costumávamos chamar de "a sala do vovô", onde meu avô guardava todas as relíquias egípcias que trouxera de suas muitas expedições, aquelas que ainda não haviam sido vendidas ou doadas, é claro.


Olhando para minha irmã, que estava de olhos fechados, com a cabeça abaixada e esfregava um pé no outro (um sinal de nervosismo que sempre a denunciava), eu me lembrei de um presente que ele trouxera para nós, para nosso aniversário de 7 anos. Os dois colares eram lindos. Eram simples e tinham apenas uma pedrinha, cada um, mas pareciam emanar um brilho, uma cor, que, até hoje, eu ainda não havia visto em outras jóias. O pingente do colar de Manolea era azul, provavelmente de safira, com seu nome delicadamente escrito em dourado na frente. O meu era roxo, suspeito que seja de ametista, com meu nome, "Alice" escrito em prata. Nós duas amamos esses colares, mas não saíamos diariamente com eles, pois tínhamos uma certa noção do valor que têm. Mas, atualmente, o que nos impede de sair mundo afora com eles é o fato de que não suportaríamos perdê-los. O sino da catedral bateu ao longe, me despertando dos pensamentos. Eu ergui os olhos e vi que o coveiro não estava mais lá. Provavelmente fora embora. A quanto tempo eu estava lá, envolvida em devaneios? Segundos? Minutos? Horas? Olhei ao redor, procurando minha irmã, para que pudéssemos ir para casa, ou para o que costumávamos chamar de casa, antes que nossa vó tivesse morrido de câncer, e antes que nosso vô tivesse morrido de infarto (eu sei, minha vida é um pouco recheada de tragédias).


Logo a achei, sentada ao pé de uma bela árvore, com o rosto nas pernas e os braços as envolvendo. Me agachei e sentei ao lado dela, encostando minha cabeça em seu ombro. Eu a amava demais, minha única família agora.


– Manoela? - eu a chamei, baixinho, com medo de que estivesse dormindo.


– Oi ? - ela ergueu a cabeça e haviam duas lágrimas em seu rosto, assim como deviam haver no meu.


– Podemos ir embora? Não sei bem se quero ficar aqui por mais um minuto sequer.


– Hum, claro. Também não aguento ficar aqui - ela abriu a boca para falar depois de alguns segundos, mas fechou-a em seguida.


– O quê? Pode falar...


– Alice, eu estive pensando...será que vão nos mandar para um abrigo? Vamos poder morar sozinhas com apenas 14 anos? Como vamos conseguir emprego...dinheiro? - ela estava fazendo as mesmas perguntas que eu me fizera desde que soube que estávamos sozinhas.


– Eu não sei. Sinceramente. Não entendo porque ninguém da Assistência Social, do Conselho Tutelar, ou seja, lá o que for não nos ligou ainda. Era de se esperar que alguém lembrasse que o Senhor Poletti tinha netas! - uma onda de raiva quente subiu por minha garganta. Será que ninguém, ninguém mesmo se lembrara do nosso avô? Ninguém se lembrara de nós?


– Concordo com você. Mas, olha, será que poderíamos discutir isso em casa? Está frio aqui, eu não aguento mais pensar que tem terra em cima do meu avô e estamos a pé, você sabe...


– É...eu também quero ir pra casa. Vamos...


E então nós nos levantamos e começamos a caminhar com o capuz sobre a cabeça, para nos proteger da chuva que ainda pingava, sem termos a mínima ideia de que nossa vida ficaria muito mais agitada dali para frente.