A Farsa

Encontro de dois corvos


A sala de aula escura e supostamente deserta encontrava-se preenchida por um clima anômalo; a dúvida e receio pairava sobre o ambiente, um fino véu de pusilanimidade abrangendo o único e pequeno ocupante do espaço. A única fonte de luz presente derivava da fraca iluminação natural do céu cinzento, a qual proporciona um aspecto quase caliginoso, e do pequeno brilho vindo do aparelho celular.

“Fico feliz que tudo esteja bem agora, Shouyou”

— Kenma

Hinata Shouyou, unicamente entretido em reler a mensagem de Kenma Kozume pelos últimos minutos, levantou os olhos, encarando o nada em particular. Por alguma razão, havia chegado muito cedo à escola, e por conta do frio que fazia no exterior de qualquer estabelecimento, decidiu ir direto para sua sala e esperar o restante dos alunos chegar.

Uma manta reflexiva envolveu, mais uma vez, a cabeça ruiva de Hinata, ditando as palavras de Kenma na própria mente. O amigo estava certo, não? Realmente estava tudo bem agora. Àquela altura, Daiō-sama e seu fiel cavaleiro já deviam ter feito as pazes, e, talvez, reatado o namoro anteriormente findado. Iwaizumi garantiu-lhe que o efeito borboleta que o vídeo trouxe para si seria consertado, e, logo, ninguém mais pensaria besteira do alaranjado outra vez. Não sabia muito bem como ele faria isso, mas não podia-se dizer que essa tratava-se da maior preocupação de Shouyou.

Não… era como se ainda houvesse uma coisa não-esclarecida, algo que, definitivamente, originava aquele sentimento de desistência e confusão no pequeno isca de Karasuno. Sentia-se perdido; justamente o sentimento que varria-lhe o peito desde o início daquela farsa e que, agora que a mesma havia sido revelada, em vez de diminuir, ele havia, inquestionavelmente, subido de grau.

Hinata não estava triste. Apenas não sentia-se... seguro com alguma coisa, algo que ele, por alguma razão, estava procurando há dias e não encontrava de jeito nenhum. Não sabia nem explicar para si mesmo tal situação.

Seus olhos-castanhos varreram a sala, observando as carteiras vazias e a lousa sem uma única inscrição à giz, pronta para ser usada para mais um dia de aprendizado. O pior era que o problema por qual passava estava tirando ainda mais seu foco sobre as tarefas escolares, já prevendo que logo teria de recorrer à Yachi, outra vez.

Suspirou. Estava sentado acima da primeira carteira no canto da sala — estaria com sérios problemas se um professor o visse ali —, a qual fazia parte da fileira encostada ao lado da janela. O pequeno amante de vôlei recebia o apoio da parede a suas costas, o que proporcionava um melhor acomodamento; uma das pernas estava estendida, o pé balançando para frente e para trás, enquanto a outra estava dobrada.

Afinal, a quem queria enganar? Estava óbvio que, para Hinata, aquela história ainda não havia terminado.

No instante que tentava consolar seu espírito com a lembrança de que poderia se distrair no treino mais tarde — apesar de seu estado meio confuso e quase borocoxó, Shouyou estava com energia para dar e vender por todos aqueles dias sem jogar vôlei —, a mente distraída do alaranjado despertou ao escutar a aproximação de alguém. Temeu na mesma hora que fosse algum professor, já lamentando desesperadamente o fato de que não teria tempo de deslizar para fora da carteira; havia descoberto que a perna estava sem sangue por tanto tempo dobrada.

Preparando-se para a bronca que tomaria por estar sentado em cima da mesa, o ruivo já começava a pensar em alguma desculpa — se jogar no chão talvez fosse uma boa pedida, mas lembrou que se machucasse algum membro, não conseguiria treinar depois —, até que a porta se abriu e o pequeno impressionou-se com a imagem da pessoa inusitada.

Era Kageyama; com sua aura e altura brilhantes, e o usual aspecto tempestuoso varrendo suas íris azuis-escuras.

Kageyama. Somente Kageyama. Seu amigo e parceiro insubstituível de vôlei, o qual, na maior parte do tempo, causava medo e sentimentos de rivalidade e perseverança em Hinata.

Era somente esses requisitos que abrangiam a relação entre o moreno e o ruivo. Nada mais, nada menos. Então… Por que Hinata sentia o estômago revirar em agonia ao vê-lo, finalmente, cara-a-cara?

Ele e Kageyama não eram de se encontrar fora dos horários de treinos, a não ser quando procuravam Yachi para estudar. Eles também não eram da mesma sala, e Hinata normalmente almoçava na companhia de outros amigos. Por ter faltado ao treino nos últimos dias, sentia que não via Kageyama há anos — tal sensação desconsiderando totalmente a terrível interação entre eles na praça, o qual intitulava-se, também, como “O-Dia-Catastrófico-Para-Hinata-Shouyou”.

Na realidade, agora que pensava… Fazia semanas que ele e Kageyama não conversavam direito, e Hinata se perguntou se sua postura desestabilizada podia ser captada pelo outro.

— Ah… — mal percebeu a voz saindo, soando um tanto aturdida. — O-Oi, Kageyama… — praticamente murmurou a última parte. Baixou um tantinho a cabeça para o colo, fugindo do olhar do mais alto; em reflexo, levou o celular ao peito, e, involuntariamente, balançou os pés suspensos.

Sem abandonar sua aura séria e perpétua, Kageyama somente acenou em cumprimento. Seu olhar, como sempre, estava envolto sobre uma condição de exigência, no entanto, se Hinata observasse com mais cautela, poderia perceber suas mãos fechadas em punhos trêmulos.

Hinata continuou a demonstrar um claro aspecto esquivo, e por isso, Kageyama adentrou a sala, aproximando-se um pouco do pequeno acomodado acima da mesa. Analisou as feições infantis do ruivo, como sua expressão um tanto preocupada; a boca numa linha fina e amarga; e os olhos caídos sobre o colo.

Num lapso, Kageyama enxergou, naquele garoto de aparência luminosa e adoravelmente exótica, o mesmo Hinata que tinha conhecido três anos atrás. O alaranjado não tinha mudado muito desde aquela época, ainda demonstrando, por trás daquela constituição magra e baixa, a energia e impetuosidade a qual fora direcionada para Tobio na época em que jogaram, pela primeira vez, um contra o outro.

Kageyama sentiu a já frequente ansiedade no estômago lhe dominar, ativando uma dose de adrenalina por suas veias, e que buscou, indubitavelmente, conter. Tinha que lembrar de puxar o ar calmamente, pois aquela pressão invisível que o rodeava poderia comprimir seus pulmões se não tomasse o devido cuidado.

Mas sabia que estava apenas se enganando. Há tempos que já não conseguia se portar normalmente na frente de Hinata.

Desde que se reencontraram em Karasuno, Kageyama sabia que teria uma maior convivência com o ruivo, por ambos ocuparem posições totalmente interligadas em quadra. É verdade que eles não se deram nada bem no início — sem contar que, atualmente, o relacionamento entre eles não apresentava um “mar-de-rosas” tão perfeito assim —, mas, talvez, a primeira vez que algo dentro de Kageyama havia começado a mudar foi quando executou seu primeiro rápido com Hinata.

Ele confiou em si. Totalmente. À ponto de o próprio Kageyama e o restante do time pensarem que foi uma atitude louca, quase tola. Afinal, mal se conheciam direito, mas, ainda assim, sem qualquer justificativa além do instinto do alaranjado, Hinata confiou totalmente nas habilidades de Kageyama.

E, pela primeira vez, o moreno tinha encontrado um parceiro nato para o vôlei, um que ele sempre idealizou em seus dias no Kitagawa Daiichi — apesar de as coisas terem se mostrado diferentes do que imaginava. Mas, agora, em decorrência daquela parceria, os dois eram conhecidos como “a dupla do primeiro ano”, com seu feroz e tenebroso ataque rápido.

Kageyama havia achado, em seus colegas do Karasuno, o verdadeiro significado da palavra “companheirismo”, mas, com Hinata, sentia que ia além disso. Foi o destino o responsável por uni-los depois de todo aquele tempo, e Kageyama não conseguia tirar da cabeça a sensação de que aquilo não era uma coincidência, como se fosse pra ser.

E, encarando a figura pequena e, agora, um pouco mais atenta de Hinata ante seu silêncio, Kageyama finalmente comprovou, em contato com aquelas orbes ingênuas e brilhantes, o significado da verdadeira expressão que Oikawa apresentou a si um tempo atrás.

Sim. Diferente do que pensava, era o atacante que movia o levantador. No íntimo de Kageyama, assim como no de muitos outros, isso, por muito tempo, foi diferente. Para Tobio, era ele quem ditava as ações de Hinata durante o jogo, somente ele impulsionava e utilizava das capacidades físicas de Hinata para executar os pontos.

Mas não… era, na verdade, o contrário. Era Kageyama o único usado pelo pequeno, de forma perfeita e inconsciente, e — logo percebeu — tal coisa começou a se enquadrar dentro e fora do jogo. Confessava que, no início, após se dar conta disso, não sentiu-se muito agradado, pois dava a sensação de estar na palma da mão de Hinata.

Todavia, a verdade não podia ser diferente dessa, e Kageyama sabia disso.

Assim, ele finalmente suspirou. Não havia ido ali à toa, afinal.

— Eu estava te procurando. — o silêncio foi cortado pela voz séria e supostamente calma do moreno. Hinata arqueou levemente as sobrancelhas, mas não disse nada, fazendo Kageyama, mais uma vez, lutar para colocar os pensamentos em ordem e soar claro e objetivo. — Sinto que devo desculpas a você. — fechou os olhos rapidamente, em flagício. Não estava acostumado a fazer isso. — Eu... devia ter revelado tudo a você desde o início e… bem, estou arrependido por não tê-lo feito. Desculpa.

Hinata pareceu um tanto admirado, para não dizer perplexo. O pequeno entreabriu a boca, como se não soubesse bem o que dizer. Por fim, balançou a cabeça em desentendimento.

— Mas… não há motivos para se justificar para mim. — observou, em leve confusão. Analisava Kageyama como quem estivesse prevenido.

Aquilo atrapalhou um pouco o raciocínio do levantador.

— Ah… é mesmo. — murmurou, contido, olhando para os próprios pés. Sentia-se um idiota, mas, ainda assim, buscou uma forma de mascarar sua sinceridade. — É que… você acabou sofrendo as consequências por conta do plano do Oikawa-san, afinal…

Na mesma hora, o rosto de Hinata se atemorizou.

— Aah... eu não fiz nada de propósito, eu juro, Kageyama!... — já pôs-se a se desculpar, chacoalhando os braços em embaraço.

— Eu sei que você não teve culpa, boke. — Kageyama revirou os olhos, impacientando-se um pouco pela covardice que Hinata demonstrava às vezes. Não era à toa que o ruivo era facilmente confundido com uma criança e, também, manipulável. Pensar nisso fez Kageyama se irritar. — Por sinal, só um idiota para se deixar enganar tão facilmente. — censurou, fazendo referência ao fato de Oikawa tê-lo usado sem problemas em seus planos.

Falar aquilo devia ter despertado o instinto orgulhoso/desafiador de Hinata, pois o pequeno fez cara de poucos amigos.

— Eu poderia dar ouvidos a isso se você, no caso, não fosse um tonto que engatou num namoro falso. — rebateu.

Uma veia de estresse nasceu na testa do levantador.

— Miserável… — cerrou os dentes, encarando, com crescente cólera, o semblante firme de Hinata.

Kageyama não seria tolo de arrumar briga numa sala de aula, por isso, como forma de segurar os nervos, deu as costas ao ruivo, preparando-se para sair…

Até sua consciência pesada e cobradora o parar.

Apertou os olhos, respirando fundo.

— Não, não, precisamos conversar, Hinata. — decretou, quase como se repreendesse a si mesmo. Respirou fundo, indo de encontro ao ruivo outra vez.

Parou a sua frente, o que fez, como sempre, Shouyou ter de levantar consideravelmente a cabeça para alcançar seus olhos. Hinata agora mostrava-se um tanto acuado acima da mesa, como se não soubesse muito bem o que estava acontecendo. Kageyama, por outro lado, começou a suar frio. Enquanto tudo que seu corpo queria fazer era se afastar daquela “tangerina-ambulante”, sua mente, por alguma razão, lutava e exigia que Tobio finalmente resolvesse aquela montanha-russa de dúvidas e anseios que lhe perseguiam; que ele fosse, acima de tudo, sincero com Hinata e consigo mesmo.

Suspirou, olhando nos olhos do pequeno. Sentiu uma estranha queimação varrer suas mãos e subir até sua cútis, mas uma vez que o ambiente estava escuro, não se preocupou com isso.

Não… tudo o que importava era se resolver, de uma vez, com Hinata.

— As coisas que você me disse naquele dia, na praça… — começou, o nervosismo que sentia traindo totalmente a severidade comum em seu semblante.

Hinata, encontrando a voz, logo interrompeu:

— Era o Daiō-sama quem estava me mandando dizê-las. — se explicou rapidamente.

Eu sei. — Kageyama, mais uma vez, fechou os olhos e apertou as mãos, trincando os dentes. Onde estava a coragem quando mais precisava dela? — É que… e-eu estava me perguntando, quer dizer… — respirou fundo, xingando-se mentalmente por tamanha falta de naturalidade. — Aquelas palavras, mesmo tendo sido ditas por Oikawa-san, foram muito familiares para mim.

Isso! Finalmente tinha soado como um ser humano decente. No entanto, a única coisa que recebeu de Hinata foi seu silêncio um tanto desconcertante.

Estava óbvio; o alaranjado não tinha lido nas entrelinhas.

— Hum… é mesmo? — ainda que mostrasse uma confusão sincera, o movimento quase imperceptível do polegar do ruivo, o qual massageava o próprio celular em nervosismo, não passou despercebido para Kageyama. — E o que tem?

— “O que tem”? — Tobio sentiu-se entrar em pane novamente. Essa não, teria de se esforçar. — Oras, o que tem é que… — se embolou. Deus, o que exatamente deveria dizer para ser compreendido sem que tivesse que dizer com todas as letras? — Eu… eu…

Foi então que algo, num instante, explodiu em sua mente. Hinata continuava olhando para si, um semblante entre ansioso e preocupado varrendo suas feições inocentes. Ao mesmo tempo que o pequeno parecia estar perdido no meio daquela história, era como se ele esperasse algo de Kageyama.

E, foi contemplando aquele rosto inseguro e frágil, que uma descarga de adrenalina e afabilidade preencheu, com estranha lentidão, cada canto do corpo de Tobio.

— Eu… — sem pensar nas ações de seu corpo, Kageyama deu um passo à frente, segurando, entre a ponta dos dedos, o delicado rosto de Hinata. O pequeno, na mesma hora, brecou a respiração, seus traços assumindo espanto e choque. O sobressalto foi evidente em seu corpo, um arquejo surpreso escapando-lhe da boca. — Hinata — o moreno sentia sensações, que nunca antes havia sentido, despertar ímpetos e medos inimagináveis em seu espírito. —, eu estou… — engoliu em seco, o rosto surpreso do pequeno mexendo com seus sentidos, sua visão hipnotizada por aqueles traços tão doces e únicos, assim como, também, suas sobrancelhas arqueadas e seus lábios finos, possuidores de um deslumbrante brilho róseo…

Sim. Kageyama Tobio estava totalmente nas mãos de Hinata Shouyou. Essa era, definitivamente, uma questão mais do que esclarecida.

Estava embevecido com aquela visão. Mais que isso; hipnotizado. Hinata havia entreaberto tremulamente a boca, provavelmente no intuito de pronunciar uma pergunta, essa que não veio. Afinal, estava paralisado.

Kageyama, então, movido por um instinto novo e vibrante, desceu as mãos para os ombros de Hinata, respirou fundo, avançou o corpo e…

Envolveu-o em um abraço, acovardando completamente.

Sentiu todo o ar esvair-se de uma vez do interior de Hinata, o peito do pequeno engatando em movimentos apressados e profundos para respirar. Kageyama, por outro lado, entrou no mais completo desespero. Aquilo não fazia parte do plano, na verdade, desde quando estava seguindo um plano?

Precisava se acalmar. Seu objetivo tinha sido, obviamente, os lábios do ruivo, no entanto, Kageyama havia amarelado e partido para um abraço — o que não era menos pior, pois continuava a ser esquisito. Raios, será possível que não ia fazer nada direito?

— K-Kageyama… — a voz de Hinata lhe despertou de sua repreensão mental; essa saindo quase assombrada. Tobio conseguia sentir seu corpo franzino tremer em seus braços, o nervosismo às alturas.

Permaneceram daquela mesma forma por mais alguns segundos. Não tinham coragem para dizer nada, muito menos fazer alguma coisa. Mas…

Kageyama sabia que não podia deixar as coisas daquele jeito. Por mais que sua mente, agora, insistisse para que ele o largasse e batesse em retirada, obrigaria seu corpo a fazer o contrário.

Afinal, por mais temerosas e fortes que fossem as batidas de seu coração, não era como se as sensações acumuladas anteriormente em seu interior houvessem desaparecido.

Dessa forma, suspirou, esquecendo-se de tudo e de todos. Num movimento calmo e quase automático, desenlaçou os braços em volta de Hinata e, afastando-se minimamente, deslizou o rosto da orelha até sua bochecha, e, enfim, alcançou e firmou seus lábios.

Foi um toque suave. Extremamente doce e leve. Sentiu nitidamente a falta de reação do ruivo, que, mortificado, permaneceu com os braços paralisados sobre as pernas. Por alguns segundos, Kageyama sentiu o interior ir suavizando todas as agitadas emoções que ocupavam total espaço em seu ser, usufruindo, extasiado, daquele breve momento que havia tido coragem de começar.

No entanto, não foi necessário mais que poucos segundos para tais afáveis sensações abandonarem completamente o espírito de Kageyama, que, repentinamente, separou os rostos num ofego.

De repente, tudo o que sentia era o mais puro apavoramento.

— Hinata, eu…

— Não, Kageyama, eu… espera um pouco.

E, para sua mortal surpresa, no instante da separação, Hinata segurou sua face e, delicadamente, voltou a unir seus lábios.

O choque eletrizante foi instantâneo no coração dos dois. Enquanto que, para um, a surpresa partia do fato de a iniciativa de retomar o beijo ter vindo de Hinata, para o alaranjado, tal era causada justamente por sua ação inconsciente.

Porque… era como se, naquele momento, Hinata finalmente estivesse prestes a encontrar o que tanto procurou por todas aquelas semanas; e, por isso, não se importava em desenterrar a fundo o que desejava descobrir.

Assim, após Kageyama, ávido, aprofundar minimamente o contato, de modo a fazer o pequeno suspirar, Hinata, em improviso, arriscou começar a mover timidamente os lábios. Imerso em profunda magnetização, Tobio, então, tentou acompanhar.

Com o esforço dos dois, o beijo passou a ser uma mistura de delicadeza e caoticidade, as bocas desencaixando várias vezes durante o processo; no entanto, essas sempre retornavam com notável pressa uma para a outra, preocupadas, unicamente, em dar continuidade ao contato.

Era óbvio que não sabiam beijar; a inexperiência estava clara nas carícias confusas e desordenadas, assim como no frágil enlace entre as bocas. A única experiência que Kageyama tinha nesse assunto era seu tenebroso beijo com Iwaizumi, o qual equivalia a zero se fosse usá-lo de alusão para reproduzí-lo com alguém.

Não; em momento algum procurou por qualquer tipo de referência. Aquele era um momento só seu e de Hinata, e cada movimento e toque, por mais inocente e ingênuo que fosse, despertava intensas fagulhas em seus corpos. As mãos tímidas do alaranjado dedilhavam delicadamente a nuca de Tobio, ambos os antebraços enlaçados em seu pescoço; Kageyama, por outro lado, deleitava-se em acariciar, com apreço, cada canto da cútis macia e lisa de Hinata, fazendo movimentos circulares com o polegar em seu maxilar, enquanto, com a outra mão, envolvia-o ainda mais para explorar aquela dinâmica única e curiosa de seus lábios.

Estavam pura e completamente embevecidos um com o outro, e os suspiros de aprazimento resguardavam aquele instante com devota flama e nobreza.

Simultaneamente, os dois, enfim, arfaram em falta de ar, separando-se na mesma hora. A princípio, permaneceram na mesma posição por um tempo, os narizes ainda roçando um no outro. Os olhos, por hora, evitavam se encarar. Respiravam com pressa e cansaço, e Kageyama, zonzamente trêmulo e ansioso, moveu o rosto de modo a fazer sua face encostar na bochecha de Hinata, apoiando levemente a mão esquerda sobre a superfície da mesa.

A sensação que sentiam era exatamente a mesma em meio àquele silêncio confortável e expectante. Respiravam como se tivessem corrido por horas a fio, percorrendo caminhos e obstáculos perversos e nada afáveis, mas tudo visando que, no fim, acabassem por esbarrar um no outro e, finalmente, unissem todos os sentimentos — florescidos ou não — que ambos os corações compartilhavam.

Sim. Aquele, definitivamente, era o encontro entre dois corvos; ambos destemidos, mas, que ao mesmo tempo, carregavam a aura da imaturidade e negligência em seus jovens espíritos.

De repente, Hinata, num impulso, inclinou a cabeça para trás, ainda mantendo as mãos no pescoço de Tobio, enquanto este olhou-lhe em surpresa e confusão. O rosto do pequeno, ainda um tanto rubro, mostrava indícios de assombro, admiração e mínima agitação.

— Eu gosto de você, Kageyama. — revelou rápido, num misto de aturdimento e afirmação. — A-Acho que acabei de descobrir isso.

Sua voz, repleta de inocência e surpresa com a própria conclusão, despertou sentimentos variados em Kageyama, desde os mais vibrantes até os mais puros e comoventes. Desde quando Hinata era tão angelical assim?

Engoliu em seco, respirando calmamente para não se agitar. Assentiu como resposta à declaração inimaginável do outro, adentrando a mão direita em seus cabelos macios e acariciando sua pele polida. Observava cada traço como se Shouyou fosse uma pedra rara e frágil, porém, uma que envolvia completamente cada um de seus sentidos.

— Eu… — Tobio passou o polegar por sua bochecha, agora corada pelo frio. Fazia uma carícia suave por seus fios cor-de-fogo. — Estou encantado por você, Hinata. Era isso o que eu queria te contar.

Enfim, as santas palavras que Tobio queria dizer desde o início e que, em todas as vezes, falhou miseravelmente para pronunciar.

Hinata manteve um semblante admirado; por um momento, ficou alheio aos mimos e afagos carinhosos que Kageyama continuava a ofertar-lhe no rosto e cabelos.

— Uau — o pequeno apresentou gradual admiração. — Você, dizendo isso… foi incrível. — piscou, pasmo. — Eu também fui legal?

Kageyama relaxou os ombros. É claro que devia esperar uma idiotice daquelas vindo de Hinata — no entanto, obviamente ficou feliz em ter conhecimento daquele fato curioso.

— Hum? Claro que não. — revirou os olhos, abrindo um pequeno sorriso com a mudança do semblante do pequeno, que, emburrado, franziu o cenho. — Nos vemos mais tarde, boke.

Sem que Hinata esperasse, Kageyama soltou-lhe, afastando-se e dirigindo-se confiantemente para a porta. Estava agora, definitivamente, de bom-humor.

Instintivamente, Shouyou saltou da carteira, correndo até o moreno.

— Ei, espera, Kageyama! — puxou-o pela manga, fazendo-o se virar. Devia ser por conta de ter agido sem pensar, ou por ter lembrado do momento intenso que os dois haviam acabado de compartilhar, mas Hinata travou por um segundo. Sobre o olhar curioso do outro, o alaranjado foi tomado por uma extrema vermelhidão, apertando as próprias palmas e desviando a cabeça para outra direção. — Hum… como ficamos, agora? Somos alguma coisa? Ou…

Kageyama arregalou os olhos.

— Ah… — sentiu-se desconcertado. Não tinha pensado nisso, e, agora, eram suas bochechas que começavam a assumir um insinuante rubor. — Hã, sobre isso, é…

— Somos namorados, então, namorados. — Hinata parecia querer se enfiar num buraco. — Hum… que tal?

O ímpeto que Tobio havia adquirido anteriormente, pelo jeito, havia-o abandonado de vez. O levantador só foi capaz de assentir mecanicamente.

— Hã… sim, acho que está ótimo. — coçou a nuca, desviando, também, seus olhos incertos. Pigarreou. — Sim, vai ser isso mesmo.

O alívio perpassou cada feição do alaranjado, que, suspirando languidamente, abriu, um tanto atrapalhado, um último sorriso para Tobio. Em seguida, passou rapidamente pelo moreno, gritando, nervoso, que tinha que ir ao banheiro.

“Ah... ele ainda tem isso, é?”, Kageyama somente acompanhou o pequeno com o olhar, e, permanecendo ali até que a figura ruiva virasse o corredor, pôs-se a rumar para a própria sala.

Kageyama suspirou. Incrível; era como se, ainda agora, sentisse a quentura e maciez da pele de Hinata sob a ponta de seus dedos. Somente torceu para que seus calos, originados dos anos atuando como levantador, não tivessem o incomodado; ainda bem que sempre mantinha as unhas perfeitamente polidas.

De toda forma, era isso. Seu coração continuava vibrante, envolvido por emoções afáveis e felizes com a descoberta de que era retribuído. Muitas vezes, havia pensado em desistir daquelas sensações que tinha pelo alaranjado, perguntando-se, simplesmente, se não seria mais fácil deixar tudo para lá e tratar do assunto como se aquilo não tivesse passado de um delírio seu.

Mas o tempo que passou na companhia de Iwaizumi o fez ver o quanto era sofrido ficar longe da pessoa que gostava. E, ao ver Hinata, sentiu que definitivamente não queria experimentar isso.

E, assim como ocorreu com o temível Karasuno, anteriormente intitulado como “Corvos-Caídos”, aquele sentimento, semelhante ao novo e confiante time que havia sido construído, felizmente — e com muita perseverança —, havia sido reerguido há tempo por Hinata e Kageyama; o brilhante levantador e seu devoto atacante.