O tal do Nathan era sem dúvida um pedaço de mau caminho, mas o que mais me intrigava nele era a sensação esquisita de que eu o conhecia. Nunca vira aquele rosto antes, mas tinha a sensação de que sua presença já foi sentida por mim antes.

Ele não falava muito. Era de se esperar, para alguém que não lembra de nada sobre sua própria vida, não iria querer bater papo. Parecia sempre disperso, perdido em pensamentos profundos e concentrado na própria mente.

Talvez quisesse muito se lembrar da onde veio, eu não sabia o quanto sentir que não sabia nada de si mesmo podia ser aterrorizante, portanto não o culpava. Só era esquisito. Me fazia querer ficar o encarando observando qual seria o seu próximo passo, ele era como se fosse um alvo de pesquisa, ou sei lá.

- Filha... – minha mãe tocou meu ombro, chamando minha atenção. Ergui o olhar para ela sentada na mesa. Tentando disfarçar o máximo o fato de estar encarando o sujeito. – Não vai se atrasar?

Virei o rosto procurando o relógio, só dez minutos para estar na escola, devia ir logo.

Levantei. Foi a primeira vez que Nathan tirou os olhos da comida, seguiu-me com os olhos até eu sair de casa com a mochila e mordendo uma torrada.

- É mesmo. – agradeci. – Vou indo, tchau mãe, tchau pai, tchau Nathan.

Não houve resposta dele, somente de meus pais.

No colégio, eu era uma garota normal. Não era zoada, graças a Deus. Não era popular também. Era feliz assim.

Quando cheguei, fui até meu armário como de costume e quando fechei a porta dele, dei de cara com Sabrina. Minha melhor amiga e Osvald, meu melhor amigo.

Sabrina estava com um sorriso de orelha à orelha e segurava dois papéis pequenos retangulares, mostrando-os com animação. No mesmo momento que meus olhos bateram nos papéis, meu coração deu um pulo.

- Ai meu Deus... – Murmurei. – Não me diga que esses são...?

Ela olhou para mim e assentiu sorrindo com entusiasmo. No mesmo momento dei um grito instintivo de emoção, depois tapei minha boca quando vi que os olhares do corredor estavam tornados para nós.

- Os ingressos para o System of a Down!

Dei pulinhos de alegria com ela.

- Como conseguiu? Achei que estavam esgotados e... Não eram caros demais?

Perguntei confusa. Osvald sorriu presunçoso para mim e no mesmo momento entendi. Quem Osvald não conhecia na cidade? Era óbvio que encontrou alguém que os vendeu para ele num preço melhor.

Pulei no pescoço dele o abraçando.

- Você é demais Ozzy!

Ozzy era o apelido que eu dera para ele.

Ele riu balançando a cabeça com algidez.

- Eu sei...!

Gabou-se. Damos risada.

- Vamos essa noite, nos encontramos lá e assistimos a bandaaa!!

Sabrina dançou em comemoração.

E quando ela pronunciou “essa noite”, foi como se um balde de água gelada caísse sobre mim. Era segunda. Meus pais nunca deixavam eu sair na segunda, e não me pergunte por quê.

- Mas... Que droga! – urrei irritada. – Não posso sair na segunda à noite, principalmente para ver uma banda de rock. Sabe o que eles acham delas...

O rosto de Sabrina fechou assim que ouviu o que falei.

Mas Ozzy só abriu um sorriso malicioso pensativo. Sempre que fazia essa cara significava: Plano.

Que felizmente, a maioria sempre dava certo.

- Amiga, amiga... – Osvald envolveu um braço no meu ombro querendo contar o que tinha planejado. Cheio de soberba. – A resposta para esse problema é simples... Já ouviu falar em... Sair escondido?

Pairamos no ar nos entreolhando. Fiquei em dúvida. Quer dizer... Ouvir falar já, mas praticar. Não.

Não gostava de fazer isso. Meus pais eram liberais, só tinham essa exigência, não sair segundas à noite. Era meio estranho e sem sentido, mas era bem melhor não sair segunda que em dia nenhum.

O problema é que o show do System of a Down era na segunda, e eu queria muito assistir o System of a Down.

Estar naquela situação era assustador para mim. A casa estava silenciosa e de luzes apagadas, só eu estava acordada. Desci as escadas vagarosamente. Preferi nem mencionar aos meus pais o show, assim seria menos oportunidade de desconfiarem.

Quando pisei meus pés na sala. Dei de cara com o garoto no sofá. Dormia como um anjo, admito.

Mas a presença dele estava sendo extremamente inconveniente agora.

Se ele tivesse um sono leve? Atravessar a sala seria muito mais fácil se ele não estivesse lá.

Suspirei pesadamente com raiva e me preparei para passar e ir até a porta. Pensei em ir pela porta de trás, mas era mais longe e teria mais chances de fazer barulho.

Pisei os mais leve que pude e passei pela porta. “Ufa!” Suspirei aliviada do lado de fora.

Entrei no carro e fui dirigindo até o estádio onde aconteceria o show.

Estava cheio, claro. Haviam pessoas em todos os lugares, no estacionamento, nos portões, estava escuro. Deixei meu carro em uma vaga que cacei para encontrar e saí de lá. Peguei meu celular para ligar para Sabrina e Ozzy.

- Alô? E aí, Ana? Conseguiu driblar os velhos?

- Consegui.

Respondi Sabrina num ofego hesitante. Ainda me sentiu mal. Mas até que não mordia fazer isso de vez em quando...

- Então entra, estamos no balcão da lanchonete esperando você, daqui a três minutos o show começa, não se atrase.

- Tudo bem.

Desliguei, e andei entre as pessoas, caminhei levada pela multidão até os portões, entreguei meu bilhete e entrei.

Claro que era difícil até respirar com tanto gente passando afobada pela pista, pisavam no meu pé a cada seis segundos.

Mas depois de um tempo, avistei Sabrina e Ozzy no balcão e me encontrei com eles.

Assistimos ao show nos espremendo entre a plateia para ver mais de perto. Valeu a pena. Vê-los ali ao vivo, cantar as minhas músicas preferidas...

No final, saímos um pouco tarde para fugir da multidão e pegar a saída livre. Segurávamos latas de refrigerante batíamos papos idiotas.

Quando chegamos ao estacionamento, estava meio deserto.

- Nosso carro está para aquele lado.

Sabrina apontou para a esquerda. Que droga, o meu estava para a esquerda.

- O meu fica para lá.

Lamentei.

- Tudo bem ir sozinha?

Ozzy indagou atencioso. Hesitei. Quer dizer, era meio perigoso ir sozinha pro carro num lugar daqueles, mas não queria dá-los todo aquele trabalho.

- Não, a gente se vê amanhã.

- Tudo bem, tchau.

Se despediram sorrindo.

A rua estava silenciosa, tinham pessoas mais adiante, bem longe. Adiantei os passos. Só encontrei vaga longe então teria de andar bastante, droga.

Quando me aproximei do meu carro cliquei logo no alarme para que destravasse, quando toquei minha mão na maçaneta da porta uma mão tocou meu ombro. Gelei, virando a cabeça devagar para ver quem era.

Um garoto desconhecido tocava meu ombro. Era careca, tinha um dente de ouro e sorria malicioso para mim com ar maligno e soberbo.

- E aí, gatinha? – saudou pervertido e sem esforço puxou minha mão com força tirando-a da maçaneta. Meu coração balançou de pavor. – Aonde vai com tanta pressa? Vem se divertir com a gente.

Quando vi, haviam três caras com cara de quem comeu e não gostou de aproximando cheios de safadeza no olhar. Minha mente queria explodir em pensar em que tipo de “diversão” eles falavam. O que eu faria agora? Olhei em volta com desespero, ninguém, ninguém!

Minha última esperança era fugir pelo carro, o que era bem difícil já que tinham me cercado.

- Saiam daqui!

Mandei e abri a porta do carro, um deles me puxou pela cintura rudemente e o outro fechou a porta do carro. Comecei a me balançar em pânico tentando me libertar dele quando os outros riam e chegavam mais perto.

Estava em pânico, amedrontada. Não devia ter saído de casa, não devia...

Abri a boca planejando gritar, mas quando saiu o primeiro ruído um deles tapou minha boca com a palma da mão áspera. Não sabia o que fazer. Seria meu fim, eu...

- Dá para largarem ela de uma vez?

Foi então que outra vez soou. Os bandidos voltaram-se para de onde ela vinha. Um deles ainda me segurava com toda força presa em seus braços e tapava minha boca. Foi então que vi quem tinha sido... Nathan?

Meus olhos se arregalaram sem entender, confusa, mas ao mesmo tempo aliviada, ele tinha que fazer alguma coisa! Era certo de que ele era a última pessoa que eu imaginava que apareceria para me salvar, não fazia ideia de como ele foi parar ali, mas que seja, ele estava me salvando.

O careca, que devia ser o líder daqueles playboys se aproximou de Nathan com ar desconfiado e repressor. Nathan não parecia com medo, estava parecendo sereno e seguro o que me deixou bem preocupada... Ele não viu que estava em bem menor número?

- Quem é você?

O careca indagou em tom desafiador. Nathan apenas respondeu calmamente:

- Nathan. – suspirou. – Apenas largue-a, está bem? Não vamos entrar num maior problema.

Foi a primeira vez que vi ele falar de verdade, me debati nos braços do homem tentando escapar de qualquer maneira.

Ele falava bem corretamente e parecia tão entediado com a situação, com tanta certeza de que a tinha sob controle que comecei a duvidar de que conseguiria me libertar.

Certo que ele tinha qualidade física para brigar muito bem, se aquilo acabasse mal (que era muito provável), mas contra quatro caras quase do mesmo tamanho que ele... Bem...

O careca gargalhou maquiavélico do que Nathan havia dito. Me debati mais ainda, mas era como se os braços dele se moldassem em mim e simplesmente nem se movessem.

- Escuta, ham... Nathan. – pronunciou com desdém. - Lamento muito, mas as coisas não funcionam assim com a gente, cara. A gente pegou a menina primeiro... Portanto... – fez uma cara de desculpas falsa. – A gente fica com ela.

Nathan observou os caras rindo ainda com a mesma expressão de tédio quando meu coração já estava quase explodindo de desespero, tentava arduamente me libertar dos braços do homem quando vi que Nathan deu um passo à frente caminhando até mim. O careca desmanchou o riso começando a ficar irritado e o impediu segurando-o pelo ombro.

- Ô! – protestou com indignação. – Você é surdo?

Nathan olhou com desgosto para a mão do sujeito do seu ombro e murmurou:

- Tem três segundos para se afastar.

O careca começou a rir com os amigos achando-o louco. E eu, sinceramente, estava começando a achar! Seria efeito colateral da amnésia? Perder o juízo?

Foi quando Nathan pronunciou:

- ...Três...

E num piscar de olhos agarrou a mão do sujeito e num movimento rápido o torceu nas suas costas e o enforcou com o outro braço livre fazendo um “mata-leão”. Observei incrédula a reação dos outros homens quando viram o careca indefeso nos braços de Nathan.

O homem contorcia-se sem ar preso nos braços dele. Nathan não se comoveu com a situação do careca, apenas fitou os caras que estavam ao meu redor e disse:

- Eu proponho uma troca, a garota, para o seu amiguinho não morrer asfixiado, ele não tem muito tempo.

Os caras se entreolharam com confusão e num ato me soltaram e me jogaram para ele.

Dei dois passos sem equilíbrio e corri até ele. Nathan soltou o careca e o empurrou para que fosse até o grupo dele. O mesmo puxou o ar sem fôlego tentando se recuperar.

Nathan os encarou com ar desafiador e depois de cinco segundos eles saíram correndo.

Tudo bem, primeiro: Como ele aprendeu a dar aquele golpe?

Segundo: O que ele estava fazendo ali?

Terceiro: Como ele sabia que eu estava lá e porque salvou quem nem conhece?

Ficamos sozinhos e eu apenas consegui encará-lo com confusão, gaguejei e pigarreei imaginando o que dizer primeiro.

Quando abri a boca ele me impediu de falar, disparou reclamando comigo por cima:

- Você ficou louca, Ana? – Ana? Como ele sabe meu nome? E desde quando temos esse tipo de intimidade? Fiquei imóvel sem entender nada. – Como pode sair de casa uma hora dessas? Show de rock? Enlouqueceu? Eu sei que você ama o System of a Down, mas você nunca fez isso, não pode simplesmente cometer um ato imprudente desses e depois esperar que eu venha lhe salvar!

Parou de falar e tapou os olhos com os polegares, respirando fundo impaciente. Finalmente consegui dizer algo:

- Como você...? Veio aqui? Como sabe meu nome? Como sabe que eu nunca fugi de casa? Como sabe que eu amo o System of a Down? E como sabe dar aquele golpe? Você não está com amnésia?

Bufei indignada. Nathan não respondeu, apenas olhou para mim com má vontade.

- Está muito cedo para você saber, agora vamos para casa.

Finalmente respondeu e me puxou pelo braço. Ainda não me situava no que tinha acabado de acontecer.

Entrei no carro e respirei fundo, tensa.

Estava começando a ficar preocupada com isso. Nathan estava se tornando cada vez mais imprevisível. Não sabia como ele sabia tanto sobre minha vida, e com certeza ele não estava com amnésia. Mas a questão era como ele conseguiu enganar o exame do médico?

Ia entrar no banco do motorista quando ele pôs o braço na frente. Fuzilei-o com o olhar estarrecida:

- O quê...?

- Já criou problemas demais por hoje. Eu dirijo.

Informou autoritário e entrou no carro.

Abri a boca prestes a retrucar, mas depois eu apenas desisti e fui para o banco do carona. Não sei como, mas começara a sentir medo dele.

Não sabia como ele conseguia fazer e saber tudo aquilo e duvidava se a forma dele conseguir isso era segura.

Mas quando me sentei no banco do carro. Uma pergunta me invadiu:

- Espera, se você está com amnésia como lembra como dirigir? E está insinuando que eu sou barbeira?

- Escuta, se você assistisse mais o Discovery Chanel, saberia que certas informações a amnésia não apaga. Não dizem que nunca se esquece como andar de bicicleta? Dirigir é o mesmo.

Enfiou a chave na ignição e deu ré habilidosamente saindo da vaga rapidamente sem nenhum arranhão e depois seguindo pela rua.

Puxei o ar tentando engolir o que disse. Não era normal que ele tivesse tanta liberdade para falar comigo assim, como se eu fosse dependente dele ou sei lá, alguém que lhe devesse explicações. E... Como ele sabia que não assisto ao Discovery Chanel?

Chegamos em casa e eu segui para dentro com arrogância sem nem olhar para ele, fui direto para o meu quarto. Certo que eu nem sabia o porquê de estar chateada com ele se ele havia me salvado, mas talvez ele me irritasse naturalmente.