HERMIONE

O dia seguinte amanheceu sem mais nenhuma surpresa desagradável, para meu enorme alívio.

Ainda estava atordoada e angustiada com os acontecimentos do dia anterior, mas a presença inabalável de meu noivo parecia tornar tudo menos assustador e caótico.

Já não estava mais perturbada e instável. Por mais que a premonição de Calíope e os apontamentos de Becky e Leopold me assolassem, meu velho amigo tinha razão. Não podia deixar que tudo isso tirasse o pouco controle que eu exercia em minha vida.

Por isso, decidi que, enquanto durasse, ia aproveitar o tempo que me restava antes daquele suposto confronto, fazendo o possível para retomar as rédeas dos acontecimentos.

Mas o primeiro acontecimento da manhã não estava em minha grade de planejamentos.

Molly esperou que terminássemos o café para jogar a bomba em cima de nós.

– Vamos para a Romênia á tarde.

Encolhi-me quando Rony se engasgou com a fatia de torta.

Ele guinchou, os olhos marejados com o repentino sufocamento.

– E por que ninguém nos avisou antes?

Jorge olhou da Sra. Weasley para Rony, como se esperasse um deles começar a dar alguns berros.

Arthur piscou, suspirando.

– Achamos que estavam com coisas demais na cabeça durante os últimos dias. Não quisemos, hã, deixa-los mais... preocupados.

– Fracassaram – funguei – realmente querem fazer essa viagem, no meio de tudo que anda acontecendo?

Gui revirou os olhos.

– Achei que você tinha falado pra gente ontem que devíamos voltar á rotina normal, Hermione.

Mastiguei a língua. Eu e minha boca grande.

De repente, eu estava fazendo tempestade em copo d’água. Talvez nada acontecesse... afinal, os Weasleys estariam no exterior, bem longe de qualquer acontecimento macabro que a ameaça do suposto Wicca Negro pudesse provocar. Estariam seguros, no fim das contas.

Porém, Rony não parecia partilhar de minha inusitada conclusão.

– Mamãe, vocês não podem ir.

– Não temos escolha, querido – Molly me encarou – é uma emergência com seu irmão.

Ergui a cabeça, surpresa.

Carlinhos havia partido de volta á Romênia algum tempo antes. O que teria acontecido?

– Ele forneceu algum detalhe? – Rony parecia tenso.

– Ele diz ter sido um incidente com alguns dragões – o Sr. Weasley parecia estar preocupado – dois tratadores mortos, outros três feridos. Ele pediu que fôssemos vê-lo, mas garantiu que não foi nada grave.

Vi Rony empalidecer.

– Nós devíamos ir, então...

– Acho que não, filho – Arthur disse, segurando o pulso de Rony – Oliviene Stark pediu que vocês ficassem por aqui – ele se voltou para mim - com tudo que anda ocorrendo, Kingsley quer vocês num lugar mais seguro. Acham que pode acontecer algo se vierem conosco. Oliviene disse que, talvez, a única coisa que impede o tal Wicca Negro de causar mais desgraças é a sua própria presença em Londres. Se você sair daqui, Hermione, o Ministro acha que mais pessoas podem se ferir.

– Sr. Weasley... – baixei a cabeça – bom... se o Ministro acha melhor que eu fique, vou fazer isso.

Rony me encarou, parecendo desapontado, mas se limitou á bufar.

– Mais alguém vai ficar?

– Hum, não... mas alguns aurores ficarão nas redondezas, de acordo com Stark... – Molly ciciou – por garantia.

Assenti. Se não tinha jeito...

Se bem que estava relativamente aliviada por Rony ficar. Não sabia se aguentaria esperar por semanas pela sua volta.

– E aurores irão com vocês, suponho.

– Sim... desculpe, filho – Molly apertou a mão dele – os céus sabem que não queríamos deixa-los sozinhos.

– Tudo bem... vamos ficar bem – vi Rony sorrir, mas o sorriso não chegou aos seus olhos.

– Sim, vamos ficar bem – afaguei seu braço, beijando seu rosto.

O resto da manhã prosseguiu em silêncio, como se os demais Weasleys estivessem arrependidos de não terem nos contado sobre a viagem de última hora.

E foi com semelhante timidez que se despediram de nós, antes de entrarem no carro do Ministério que os escoltaria até a Romênia.

Assim que o carro desapareceu de nosso campo de visão, senti a mão de Rony estremecer contra a minha.

Virei-me para ele, plantando um beijo em seu ombro.

– Eles vão ficar bem, Rony.

Também estava desnecessariamente preocupada. Mas, diabos, os Weasleys estariam com aurores. Se eles não estivessem seguros, ninguém estaria.

Porém, o que aconteceu em seguida desviou qualquer pensamento de minha mente.

Só pude guinchar de choque quando Rony me puxou pela mão de volta para dentro, num movimento rápido que quase me desequilibrou.

– Rony! O que você está fazendo?

Ele não respondeu. Apenas continuou andando, subindo comigo pelas escadas, parecendo decidido.

Eu só ouvira daquele jeito algumas vezes.

E em nenhuma delas eu saíra ilesa.

Essa não.

Só pude me sentar na cama quando entramos no quarto, aguardando o que quer que Rony estivesse tentando fazer ali.

Assisti, curiosa, ele remexer dentro do baú ao lado do criado-mudo, retirando, de dentro dele, um pacotinho familiar.

– EI, ei – arfei, já me sentindo sem graça – nem pense nisso.

– Não pedi tua opinião – vi, finalmente, um sorriso humorado cortar o rosto de Rony – abra.

Timidamente, recebi a embalagem parda e abri o laço que a prendia, retirando, de lá, o diário surrado que eu bisbilhotara algumas semanas antes.

– Rony... – ri, envergonhada – não precisa fazer isso.

– Sossegue, mulher... – Rony afagou meu rosto, me fazendo arrepiar de carinho – vamos casar... quero ser para você como esse diário velho... – ele abriu em uma página qualquer – um livro aberto.

Sorri, afagando a mão que ele me estendera. Ah, que garoto adoravelmente inusitado.

Voltei minha atenção para a página em que Rony abrira.

Eu já estava rindo antes mesmo de terminar de ler.

15 de Outubro de 1996

Eu quis simplesmente matar Harry hoje de manhã.

Tudo bem. Talvez – só talvez- eu reconheça que Hermione não é mais aquela pirralha surrada e insuportável do primeiro ano.

Surrada, nunca mais. Insuportável? Sempre.

Ele me fez praticamente dizer com todas as letras que Hermione era... ahn, qual foi a palavra que ele usou?

Atraente. Ai.

OK, eu admito. Hermione já não é aquela menininha metida á besta faz algum tempo. Que diabo, por que as garotas crescem? Mas nem eu sou idiota a ponto de discordar que Hermione está bonitinha. Pombas, eu sou um homem. Quem da nossa espécie não repara em curvas?

E que curvas.

Agora, o que me fez erguer um ponto de exclamação foi Harry Potter reparando nisso.

Qual é a desse quatro-olhos?

E daí que ela tem umas pernas bonitas? Ou que tenha um corpo esbelto? Ou olhos escuros tão avassaladores? Ou aquele sorriso diabolicamente desarmador?

Devo estar ficando maluco.

Estou começando a achar que Fred tem toda a razão...

Mordi o lábio, fazendo Rony sorrir.

– Você já gostava de curvas, é?

– Ah, Hermione... – as orelhas dele ficaram vermelhas – perguntinha sutil a sua...

Ah, como ele ficava adorável, envergonhado, a cabeça baixa como a de um garotinho tímido. Aquilo mexia comigo de modos tão fantásticos, que era impossível acreditar o quanto ele ainda podia me afetar.

Não resisti á abraça-lo, afagando sua testa com a minha.

– Não canso de me surpreender com você – passei o dedo pela última frase da página – o que Fred já sabia?

Rony ergueu o olhar. Parecia contemplar uma realidade distante.

– Quando voltamos do funeral de Dumbledore... – ele suspirou – ele ficou me atazanando – Rony riu, saudoso – dizendo que estava na cara que eu gostava de você, e me incentivou a tentar falar o que eu sentia... – ele balançou a cabeça – ele era impossível...

Quando voltou a me olhar, seus olhos estavam mergulhados em saudade e tristeza.

– E ele tinha razão?

Rony levou a mão ao meu rosto, segurando meu queixo.

E vi, enfeitiçada, seu olhar ficar agitado e profundo.

– Ele não fazia ideia de como tinha.

Acariciei o rosto de Rony, sorrindo. A cabeça dele deitou em minha palma, e seus olhos se fecharam. Um suspiro escapou de sua garganta.

– Acho que nós dois erramos por um bocado de tempo, não é?

Rony reabriu os olhos, segurando a mão com que eu segurava seu rosto.

– Sim... – sua voz transparecia desânimo – só me resta tentar recuperar o tempo perdido, não é?

– Você não perdeu nada, Rony... eu estou aqui, não é? Para você... por você.

– Mesmo que eu não mereça...

– Não, pare – arfei – já discutimos isso.

Olhamos para o livrinho entre nós.

Fiz menção de dá-lo a Rony, mas ele balançou a cabeça, empurrando-o de volta para meu colo.

– Não. É seu agora.

– Rony... não posso.

– Pode sim. Não me faça dizer de novo.

Revirei os olhos. Quando queria, Rony era a verdadeira teimosia.

Embrulhei-o, balançando a cabeça e lançando um olhar exasperado para Rony, e devolvi-o ao baú, fechando-o com uma pancada.

– Estamos zangados hoje, é? – Rony riu, fazendo minha expressão marrenta se desmanchar.

– Não estaríamos zangados se certas pessoas não fossem tão cabeças-duras – devolvi, empurrando Rony e saindo correndo quarto afora.

– Volta já aqui, Granger! – ouvi-o gritar, enquanto eu descia as escadas, gargalhando.

O restante de nossa tarde foi surpreendentemente divertido. Rony me levou para um passeio ao redor do charco do quintal, onde passamos algum tempo observando as mariposas gigantes e animais brejeiros que surgiram na água. Aprendi, espantada, uma variedade de novas criaturas que não conhecia antes.

Rony sabia o nome de várias delas, com as quais devia ter convivido desde criança. Eu nunca vira pessoalmente uma salamandra-de-fogo ou uma abelha-vermelha. E adorei ver, pela primeira vez, um sapo de três olhos, que, apesar de tudo, era um bichinho extremamente dócil.

Depois, á pedido meu, Rony tomou sua forma animaga, para que eu fizesse um desenho – que ficou assustador por sinal, já que o dragão ruivo empinou de susto quando mostrei o resultado final, cambaleando e caindo dentro do charco, fazendo os gnomos escondidos ali jogarem calotas de pneu em seu focinho.

Só consegui parar de rir quando Rony abocanhou meu tornozelo, com a cabeça enorme pingando lama e água, e me arrastou de volta para a Toca, enquanto eu estremecia de gargalhar no chão, apertando o pergaminho em minha mão.

Enquanto Rony se limpava no banho, após eu mesma me lavar e me trocar, tentei, sem sucesso, preparar o nosso jantar – já que o almoço se resumira á algumas frutas.

Tive sorte de ser salva á tempo, já que Rony veio correndo, apenas de bermudão, tentar apagar as chamas da panela com uma aceno da varinha.

– O que você tentou fazer? – ele tossiu com a fumaça, arregalando os olhos.

– Desculpa – guinchei, chateada – era para ser frango cozido.

Rony sorriu de modo penalizado, beijando meus cabelos.

– Tudo bem... eu não queria comer mesmo.

– Você... não queria... comer? – soletrei, erguendo a sobrancelha.

– Não... posso me virar com outra tangerina – ele piscou, indo até a fruteira e pegando duas frutas para nós. Pôs uma em meu prato e outra no dele, começando a descasca-la.

– Eu sou uma inútil – funguei, mastigando, desanimada, meu gomo – quer mesmo casar com uma mulher que vai te fazer passar fome?

– Eu nunca vou passar fome com você, Hermione – Rony me encarou, e me arrepiei com o sorriso malicioso que ele me lançou – bem, pelo menos, não de comida.

Tinha uma ideia nada sutil do que diabos ele quisera dizer com aquilo.

Terminei de comer minha tangerina de cabeça baixa, por que não estava gostando nadinha do como Rony estava observando minha refeição.

Ou me observando, o que era mais assustador.

Joguei a panela para lavar, enchendo-a de agua, assim que terminei. Sentia os olhos de Rony em mim, e, por algum motivo, aquilo estava fazendo meus joelhos tremerem. Que reação irracional.

Ou não era uma reação tão irracional assim...

Já que, assim que tentei me virar para sair da cozinha, dois braços me cercaram ao redor do fogão.

– Ahn, Rony... se importa de ir um pouco para trás? – murmurei, já enrijecida com o olhar fixo dele em mim.

– Acho que não há necessidade – sua voz baixou um tom. Ele estava sério.

E daquele maldito jeito.

Eu estava diante de um poço enorme de águas agitadas.

E estava na cara que, desta vez, eu ia me afogar.

– Está me assustando.

O que ele ia fazer?

Fosse o que fosse, eu já estava com as pernas bambas.

Por que coisa leve não ia ser.

Ofeguei quando Rony me levantou nos braços, como se eu não pesasse nada. Só pude me segurar nele enquanto subíamos escada acima, e estremecer de choque, quando Rony concluiu, com o tom de voz mais calmo e macabro do mundo.

– Você não faz ideia do que é ter medo... mas vai fazer, Hermione. Vai fazer.