A Escolhida

59: Das cinzas.


A floresta nunca me pareceu tão selvagem.


O ruim de estar sozinha, é que tudo se torna mais assustador, e até sombras simples podem se transformar em seus piores demônios.


Eu andava a horas? Dias?


Não me importava mais. A dor em meus pés e o fato de estar provavelmente perdida me fazia esquecer o que havia acontecido, e me lembrar de não olhar para trás.


Eu preferia o medo da escuridão do que reconhecer que eu havia perdido tudo.


Perdido meu pai, não, provavelmente toda minha família que agora estava no palácio com Clarckson.


O luto ainda não havia chegado.


O que aconteceria com Marlee, Lucy, Anne, Mari? Será que Mason conseguiu ajudar elas?


Marlee.


Quando conversamos sobre a possibilidade de haver um traidor dentro do palácio, eu pensei em tantos suspeitos, e só agora percebo o quão estupida fui.


Mas afinal, quem desconfiaria de um rei?


Eu vi apenas as superfície, e não me aprofundei no pouco que eu sabia das pessoas que mais estavam próximas a mim. Eu não me preocupei em descascar camadas e apenas ignorei.


Eu devia ter procurado saber melhor quando conversei com Elise no corredor, e ela me disse de maneira desconcertante sobre a possibilidade de mim escolher Mason.


Não era só uma questão de ciúmes, sentimentos frustantes e rixas tolas, era algo mais negro e sujo, com pessoas perversas capaz de matar gente inocente.


Clackson açoitava o próprio filho, ele fez que açoitassem Marlee até os vergões que deixassem sua pele ferida.


Ele não tinha pudor, ostentava sorrisos enquanto planejava matar pessoas, ele não tinha pudor algum, e eu o odiava, odiava mais do que odiei qualquer outra pessoa.


Dar colar para ser aliado uma ova.


E Aspen? Será que ele, assim como os outros estavam vivos?


Tudo que eu nunca disse a ele, até o que seria passível de não dizer veio a mente naquele momento.


A chuva tornou tudo lamacento, me fazendo escorregar diversas vezes.
Pra onde eu iria?


Eu não tinha mais casa, não tinha mais palácio, não tinha mais família, não tinha mais Maxon.


Maxon.


Um ódio viscoso começou a fluir maliciosamente por minhas veias.


Seria egoísta culpar ele por tudo que tinha acabado de acontecer.


Tudo bem que ele não era de todo responsável por todos acontecimentos, mas ele também tinha seu dizimo de culpa.


Ele poderia ter me escolhido. Eu fui testada, esfolada, filmada, quase vendida, para no fim, não ser meu nome que ele disse.


Sim, estaríamos arriscando alto, mas palavras quando ditas não podem ser retiradas.


E mesmo que o mundo pegasse fogo, constaria nos altos que ele me escolheu como noiva e essa poderia ser a faísca necessária para queimar todo o regulamento e destruir todo esse regime opressor.


Meu pai poderia estar vivo.


Ele poderia ter me ajudado, mas ele nem ao menos me disse que meu irmão havia sido sequestrado.


Sim, eu poderia me arrepender mas nesse momento eu odivava com todo meu coração Marxon Schreave, e Kriss Amber, e o maldito rei Clarskson.


Eu só queria por fogo neles e assiti-los lentamente queimar.


Sem culpa.


Tanto o barulho da chuva que agora caia torrencialmente, quanto meus pensamentos de ódio, me impediram de perceber um rápido facho de lanterna que cortou a escuridão de repente, tão rápido quanto os raios que cortavam a massa cinzenta que era o céu.


—Tem alguém ai?
Minha voz mais rouca e grave que o normal reverberou pela floresta fria e “aparentemente” deserta.


Como se alguém fosse aparecer America.


Continuei a andar, agora descalça, apertando a corrente com pingente de asa que papai havia me dado, como se fosse uma forma de afastar meu medos e tê-lo de algum jeito perto de mim.


Ele não gostaria que eu estivesse chorando. Sequei as lagrimas.


Apertei ela ainda mais forte em minha palma, forte o bastante para sentir a ponta da asa perfurar minha pele.


E naquele momentos eu fiz duas promessas.


A primeira, era de que eu nunca mais iria chorar.


Um barulho de galho quebrando se fez mais alto do que o barulho da chuva contra a copa das arvores.


Talvez fosse apenas minha mente projetando ilusões por causa do meu medo, afinal, quem estaria numa floresta lamacenta, de noite, durante uma chuva torrencial.


Bem, eu.


Um barulho misto de vozes se fez presente durante alguns instantes.


Segurei ainda mais forte a corrente em meu punho, tendo agora a certeza de que eu não estava sozinha.


Calma América, calma.


Passei a mão pelo rosto tirando os cabelos encharcados que impediam minha visão.


Eu estava um caco. Mas isso não importava.


Eu estava quebrada tanto por fora, como por dentro.


Ao mesmo tempo que eu queria me recostar em uma árvore, esperar a chuva passar para pensar melhor no que eu faria a partir de agora, eu não conseguia parar. O ódio funcionava como combustível em meu corpo, fazendo minhas pernas movimentarem e incinerando minhas esperanças de que tudo ficaria bem.


Eu precisava continuar.


Precisava, mesmo que não soubesse para que lugar ir. Mesmo que não tivesse para onde ir.


Novamente o barulho de galhos quebrando.


Vozes.


Aumentei o passo, e ao invés das vozes desaparecerem novamente, elas aumentaram, ficando cada vez mais próximas.


Corra América.


Três figuras altas e mascaradas apareceram na minha frente, sendo rapidamente iluminadas pelo brilho do raio cortando o céu.


— A achamos – disse um deles, com uma voz dura e cortante.


Dei meia volta tentando correr e não tropeçar nas raízes altas e solo lamacento.
Estar descalça ajudava, usar um vestido de noiva encharcado não me ajudava nem um pouco.

Quando as luzes finalmente me alcançaram e andar estava mais difícil, percebi que não tinha mais jeito.

Uma dúzia de homens vestidos com uniformes do palácio apareceram na minha frente, porém uma única olhada para seus rostos com cicatrizes e alguns sem dentes, me fez perceber que eles não eram guardas.

Eram rebeldes, e uma parte de mim, soube também, instintivamente, que eram mortais.

— Você é América Singer?

O que estava mais perto a mim disse.

— Depende de quem está perguntando.

Respondi com a voz mais firme que consegui.

— É ela, o de trás falou.

— Vocês estão com Clarckson ou contra ele? - era uma pergunta ousada, mas não tinha como voltar atrás.

Novamente, o mais de perto foi o único que teve uma reação. Ele deu um sorriso, que América conseguiu distinguir por detrás do rastro de luz.

— Depende de quem está perguntando?

— Bom, eu não estou.

Isso agora tirou sorrisos de todos, e não importava que estivessem na chuva e o meu vestido de noiva estava encharcado.

— Você vem com a gente. - outro dos homens disse balançando um das luzes da lanterna como se para me acordar de um transe.

— Eu não sei se quero ir com vocês.

— Então o que você quer? - o primeiro homem disse certeiro.

Olhei para o céu, sentindo meus olhos comprimirem com as gotas gordas de chuva.

Cada fibra do meu corpo ardia com algum tipo de dor e necessidade.

Brutalidade.

Eu queria tanto, e não sabia o nome, mas eram intenso.

Dessa vez foi minha vez de sorrir.

Meus lábios se movimentaram antes que minha mente processasse a palavra aparentemente ofensiva na minha língua.

Eu não havia ganhado a coroa. Eu não havia ganhado Maxon, mas havia uma única coisa que ninguém, nem mesmo um exército, ou a porra da monarquia poderia tirar de mim.

— Vingança.

O suspiro que isso tirou de todos os homens apenas fez com que eu elevasse o queixo, e sentisse a potência de todo meu ódio.

Não dava para voltar atrás.

Eu não sabia mais o que era voltar atrás. Nem se queria.

Era hora de descobrir do que eu era feita.

Duas promessas, sim, duas promessas.

Primeira, de que eu não iria mais chorar.

E segunda, que a morte do meu pai não seria em vão.