A Emboscada

Cap. 26 - A névoa não camufla injustiças.


Capítulo 26

“ A névoa não camufla injustiças.”

A nevasca fora interrompida tempos antes, e agora uma luz solar fraca irradiava do horizonte encaminhando-se para o poente. A tarde se arrastava enquanto sentiam o ar impregnado de sangue fresco, e os semideuses estavam demasiadamente cansados para conversarem entre si. Os ferimentos estendiam-se por vossos corpos, e até cogitaram a hipótese de Nico ter sido atingido por um espinho venenoso da Mantícora, contudo o machucado em seu braço não continha nenhum corpo estranho. Os outros também não estavam com gravidade suficiente para sérias complicações.

Ele soube que seu fim estava próximo quando o invulnerável Leão de Nemeia mostrou seus dentes melindrosamente esculpidos para matar, como de fato havia feito com os dois filhos de Ares que se punham ao seu lado minutos atrás. Ao ver o jogo se inverter, Kurt não teve outra saída a não ser implorar por clemência às únicas pessoas que estavam ali e poderiam fazer algo por ele. Incrivelmente, a criatura esperava racionalmente a hora de atacar.

- Por favor, ajudem-me! Ele vai me estraçalhar! – ele disse num fio de voz agudo e desesperado, alternando olhares para a criatura monstruosa.

- Era exatamente isso que você gostaria de fazer com cada um de nós. – Thalia disse com asco, praticamente fuzilando-o com seus olhos azuis tempestuosos.

- Era, mas vocês venceram, e eu estou em uma situação difícil agora. – o Leão apenas assistia e nesse instante pareceu notar que havia mais pessoas ali, e não fez qualquer arquejo que denotasse que os transformaria em sua comida. Enquanto as pernas de Kurt tremiam, mas incapaz de dar um mínimo passo para o lado sem a besta rugir.

- Coloque-se em nosso lugar. Você salvaria algum de nós depois de termos te sequestrado, ferido e perseguido insistentemente? – Giovanna estava séria como nunca haviam visto. Ela franzia a testa esperando a resposta de seu algoz.

- Não, eu não tenho caráter. Vocês têm. – ele disse, suando frio como nunca antes. Nem quando estava diante da filha morta.

- Você tem razão, mas não há muito que fazer por você. Podemos afastar o Leão, mas os deuses já sabem que sua ira é contra eles, e preciso dizer mais uma vez: não foram os grandes que mataram sua filha. – Percy mantinha a mão sobre Contracorrente. Kurt bufou de raiva por não estar em condições de revidar.

- Como pode ter tanta certeza disso? – ele apenas murmurou, ainda assombrado pelo medo de ser atacado e retalhado a qualquer segundo.

- Foi Ares. Ele armou tudo, mas foi descoberto por Hades, e agora o castigo o espera. O que quero dizer Kurt é que a emboscada não era para nós, era para você. E você caiu nela, sem sequer desconfiar na hipótese de seu estimado aliado ser o verdadeiro assassino de Alliz. Sua vingança te cegou, e te condenou a morte. – Annabeth explicou pausadamente, o que fazia Kurt ficar mais atordoado a cada palavra proferida. Por fim, ele trincou os dentes de raiva.

- E agora os deuses enviaram esse monstro para acabar comigo? Isso não os torna melhores do que eu. – ele conseguiu rebater, não se rendendo, mas com a mente cheia de frustrações ao saber que foi traído mais uma vez.

Kurt Spencer soube que sua vida após a morte da filha foi uma completa mentira regada a ódio e sofrimento. Durante o tempo em que passara na prisão, mantinha-se vivo pelo ódio aos inimigos errados, na esperança de uma vingança injusta que quase se concretizara. Ele não poderia se sentir mais sujo, embora ainda sustentasse uma faceta de orgulho que denominara dignidade, mas isso não seria suficiente para salvá-lo. Ele estava novamente sozinho.

Uma imagem tremeluziu atrás dos semideuses, que pareceram finalmente notar. Era Quíron, que observava há algum tempo a discussão que esclarecia todo o tormento dos últimos dias, mas que para Kurt, já durava cinco longos anos. Saíram da frente da mensagem de íris para que o mortal irrevogavelmente rendido também pudesse ver. Sem nenhuma espécie de cumprimento – apenas um sorriso terno por ver os meio-sangues vivos, ainda que tivessem ferimentos – ele respondeu à acusatória do sádico.

- Sr. Spencer, é bom que saiba que não foram os deuses que enviaram o monstro. Assim como todos os outros, foi Ares. Os Olimpianos exigiram que ele acabasse com a emboscada, mas um simples bando de empousai contra você seria o alerta suficiente para que abandonasse sua ideia de matar mais inocentes. O senhor da guerra escolheu uma criatura que até Hércules teve dificuldade em combater, ainda há dúvidas de que ele quer por fim à sua vida? – Quíron usava seu tom clássico, calmo e ainda sim severo.

Kurt pareceu pensar. Seu rosto enevoou-se e então curvou sua cabeça para o chão, talvez questionando o que realmente fizera de sua vida. Alliz morreu por uma escolha errônea sua, mas Ares também tinha sua parcela de culpa, e isso não o fazia sentir-se melhor, de maneira alguma. Ele pareceu se dar conta da morte dos cinco inocentes da pousada e dos dois semideuses adultos à sua frente, e de todo o sofrimento causado aos heróis que não mereciam.

O arrependimento o consumia, mas não era da natureza do Leão da Nemeia ser piedoso. Ele avançou contra o mortal, que estava impossibilitado de se mover. Sua arcada dentária cravou-se na mesma perna em que Thalia cravara sua flecha, arrebentando os músculos, a tíbia e a fíbula, de uma só vez. Um grito de dor fez-se ouvir por toda a montanha, e Percy não se conteve. Sacou Contracorrente e tentou golpear o monstro, mas o bronze celestial não causou qualquer dano. O filho de Poseidon pensou rápido, e com o cabo da espada, golpeou a têmpora de monstro e o fez cair desmaiado, finalmente soltando o que restara da perna de Kurt Spencer.

Quíron suspirou, chamando novamente a atenção para si, embora Percy ainda avaliasse os estragos feitos em Kurt pelo Leão, que jazia inconsciente na neve recente da nevasca.

- Os deuses requerem sua presença no Olimpo, o mais rápido possível. Kurt também deverá ir. – ele anunciou.

- Demoraríamos três dias ou mais para chegar, nas atuais condições. E Kurt morreria antes que chegássemos lá, já que a saliva do monstro é venenosa. – Annabeth disse.

- A quadriga de Ares está á disposição de vocês, não se esqueçam do corpo de Megan. Ela era uma boa menina, merece um sepultamento justo. – Quíron solucionou as duvidas que persistiam em incomodá-los, e Kurt jazia ao chão olhando incrédulo para o estrago em sua perna, com a respiração entrecortada e incapaz de falar qualquer coisa. – Espero vocês no acampamento, ainda esta noite.

A mensagem se desfez com o toque do centauro milenar.

Enquanto esperavam que o seu transporte chegasse, eles ordenavam as coisas das quais não podiam se desfazer. Em instantes, fez-se visível a grande quadriga mágica guiada por Blackjack e Guido, que em poucos minutos os fariam atravessar o país rumo à Nova York, no Empire State, endereço do Monte Olimpo na América. Eles deixariam o estado do Colorado para trás, carregando mortes, traumas e um criminoso em sua bagagem.

Foi realmente desgastante e complicado colocar o corpo de Megan na carruagem, mas as garotas conseguiram ser fortes para levantá-la e repousar seu corpo na parte de trás, coberta. Nico e Percy se desdobravam para levar Kurt sem fazer mais estragos em sua perna, e ele emocionou-se por estarem o socorrendo quando podiam deixá-lo morrer congelado e agoniante com a dor, que ainda o acompanhava insistentemente.

Entretanto, Kurt ainda temia o que quer que pudesse ocorrer no Olimpo. Confrontar os deuses face a face era completamente diferente de praguejá-los às suas costas, e ele estava visivelmente temeroso. Quando deu por si, a quadriga já estava lançada ao ar voando rapidamente, fazendo com que todos que ainda tivessem tal sorte de sentir a brisa congelada a lhes arranhar o rosto.

Megan nunca mais sentiria. Kurt olhou para ela e as lágrimas começaram a brotar de seus olhos, ao finalmente se dar conta que a culpa também era dele e o arrependimento pesar em seu dorso. Pensou mais uma vez em suas vítimas: os cinco mortais na pousada, os dois filhos de Ares – Myrna e Elliot – Megan e até Alliz morreram diretamente pelas mãos do lunático. Ele nada poderia fazer quanto a isso, e sabia que pagaria, tinha de pagar. Sua mais nova sentença estava há poucos minutos, na morada dos deuses.

A tristeza corroía-lhe a alma quando Annabeth virou-se para ele, impassível.

- Eu espero que esteja satisfeito por ter assassinado alguém que foi uma mãe pra sua filha. – a filha de Atena segurou-se para não fazer nenhuma expressão odiosa. O mortal simplesmente abaixou a cabeça.

Nada mais foi dito, e duas horas depois estavam por entre as nuvens do centro de Nova York. Os pégasos pareciam saber o endereço até que desciam para o terraço do Empire State Buillding e todos saíram da carruagem. Annabeth logo se adiantou e desceu com a intenção de buscar o cartão para o seiscentésimo andar.

O mortal adormeceu tamanha era sua dor na perna mutilada. Ele ora murmurava coisas imcompreensíveis, ora respirava pesadamente, demonstrando que estava tendo pesadelos. Os quatro semideuses decidiram mantê-lo na inconsciência enquanto Annie não voltava.

Percy afagou a crina negra de Blackjack e achou por bem apresentá-los à Giovanna, já que ela também era descendente do criador dos cavalos.

- Giovanna, venha aqui. – Blackjack relinchou. Guido permaneceu sem emitir som nenhum enquanto a garota se aproximava.

Ela é sua irmã chefe? É muito bonita!” – o pégaso de Percy questionou mentalmente o Jackson. Giovanna também ouviu, e disse em voz alta.

- Ele fala? Ou estou imaginado coisas? – ela arqueou as sobrancelhas.

Falo sim, princesa. Ainda mais se me derem torrões de açúcar, assim mantenho minha forma.” – Blackjack disse parecendo inflar-se.

A mais recente filha de Poseidon não podia ser mais escandalosa em sua reação. Começou a dar pulinhos e murmurar sobre como era fantástico poder falar com pégasos e sobre colo Blackjack era galante. Guido estava notoriamente ofendido, mas ela afagou sua crina assim como Percy fazia no outro. Eles continuaram a conversar, dessa vez Giovanna respondendo apenas mentalmente, como os animais ali faziam. Thalia e Nico os observavam e riam da esquisitice alheia.

- Ela é uma garota diferente. Um pouco maluca, e imprevisível. – Nico comentou sobre o comportamento tresloucado de Giovanna Donatelli, enquanto Thalia o olhava maliciosamente.

- E o príncipe das trevas adorou. Nunca pensei que fosse dizer isso para meu priminho de cara fechada, mas você gosta dela. – a Caçadora apertou as bochechas de Nico, fazendo-o ficar completamente corado. Ele até tentou retrucar, mas com Thalia nunca teria discussão, e teria que admitir para si mesmo que ela estava certa.

- Como você soube? – ele respirou fundo depois de ter concordado.

- Nico, jurei não me envolver com nenhum garoto e talvez por isso eu veja algumas coisas com mais clareza. Percebi no instante em que você teve que carregá-la desacordada que você já não seria como antes. Acho melhor você falar com ela o quanto antes, pois os garotos do acampamento não a deixarão solteira por muito tempo. – Thalia deu de ombros enquanto Nico mostrava-se surpreso com o que ela havia dito.

- Como vou falar com ela? Não tenho coragem... – ele disse, vergonhoso por ter confessado sua real fraqueza.

- Você já fez coisas muitos piores, e ela também gosta de você. Apenas tome a iniciativa, não pode ser tão difícil assim. – a tenente de Ártemis revirou os olhos.

- Para uma Caçadora, você até que é uma boa conselheira sentimental. É tão estranho dizer isso da tão rebelde Thalia... – Nico disse brincando. Ela empurrou seu corpo para a direção contrária.

- Tenho inúmeras utilidades, Coveiro. Já pensou em algo? – ela inquiriu.

- Uma ideia, mas vai ter que ficar para mais tarde, quando estivermos no acampamento. Cara de Pinheiro. – ele deu de ombros.

- Espero que dê certo, mas não fiquem grudentos demais senão faço descer raios para fritar as cabeças de vocês. Á propósito, poderia começar agora já que mencionou esse apelido ridículo. – Thalia sorriu, enquanto Annabeth aparecia com o cartão dourado.

Os filhos dos mares despediram-se dos pégasos, que voltaram ao acampamento no instante em que Percy desatara as rédeas da quadriga de Ares. Aproximaram-se de Annie, que se pôs a falar imediatamente.

- Teremos que descer um lance de escadas para alcançar o elevador. Depois é só seguirmos o procedimento padrão. – ela falou.

- Será difícil levar o idiota do Kurt. O imprestável poderia ter deixado o bicho estragar um dos seus braços, porque assim ele ainda poderia andar. – Giovanna falou, e todos sorriram brevemente. Foram acordá-lo, e aos trancos e barrancos conseguiram arrastá-lo pelas escadas até chegarem ao elevador.

Annie inseriu o cartão e logo o Olimpo abria-se à sua frente. Seu trabalho estava longe de ser concluído, mas pelo menos a entrada e a sala dos tronos estariam prontos, e ela mal podia esperar para retornar ao trabalho.

Os servos os escoltaram até onde os deuses estavam reunidos para uma última audiência sobre a cansativa e falida emboscada. Quando as grandes portas de madeira grossa se abriram, eles esperaram um tempo até entrar. Kurt parecia tremer, não se sabia se era pela dor ou por medo dos olimpianos, mas Percy e Nico achavam que era pelas duas coisas.

Sem qualquer dúvidas, Kurt Spencer estava entregue à vontade dos deuses, que se viam sentados em seus tronos decorados cada um ao seu gosto, trabalho feito por Annabeth. Não puderam deixar de notar que Ares possuía cordas mágicas amarrando-lhe ao próprio trono, para que não tentasse fugir, e os três grandes se mostravam inquietos. A primeira a falar foi a deusa da sabedoria e estratégia em batalha.

- Onde está o corpo de Megan? – ela perguntou aos semideuses, que se voltaram diretamente para ela.

- Não havia como trazê-la até aqui senhora, então a deixamos na quadriga, no terraço do prédio. – Percy falou educadamente, e naquele momento Atena pareceu gostar dele.

Uma voz retumbante atravessou o salão antes que dissessem mais alguma coisa.

- Hermes cuidará de todos os detalhes do sepultamento, mais tarde. Atena pode escolher o local. – Zeus interviu, em busca de solucionar tal questão.

Poseidon rosnou ao olhar diretamente para Kurt, mas seu rosto assumiu feições mais leves quando colocou os olhos em sua filha, a nova meio-sangue reconhecida por ele. Giovanna compartilhou o olhar, até que decidiu falar algo que lhe veio à cabeça e se prendeu em sua garganta:

- O senhor é Poseidon? – ela disse e ele assentiu, concomitantemente. – Cara, você é muito gato! Por isso que eu saí linda assim! – ela mexeu nos cabelos e seu pai riu, acompanhado por todos os outros, mesmo que os sorrisos de Atena e Zeus tenham sido discretos. O deus dos deuses enxergou o sádico.

- Então você é Kurt Spencer. – ele olhou para Kurt, que ainda estava amparado em Percy e Nico. Sua pele estava esverdeada e o enorme talho em sua perna completamente infeccionado, com os ossos quebrados envolvidos em sangue e pus. Ele não estaria vivo por muito tempo, e apenas meneou a cabeça até o senhor dos céus continuar.

- O que fizera é imperdoável. Uma injustiça matou inocentes, e criou traumas. Tudo gerado por um erro seu, cinco anos atrás. Saiba que receberá uma pena proporcional ao sofrimento que causou. Achou que poderia confrontar os deuses? Você é um humano infeliz, se não fosse pelo inconsequente Ares, você mal conseguiria manter-se vivo no frio de Aspen.- Zeus estava deveras irado.

Com a voz completamente esganiçada, falou.

- Eu não sabia da verdade, realmente culpei vocês. Só queria fazê-los sofrer como eu sofri quando minha filha morreu. – ele disse, sem levantar os olhos.

- A culpa foi sua Kurt! Alliz estaria viva se você tivesse dado ouvidos a mim. E nada justifica o que você fez aos meio-sangues, e nem àquelas pessoas inocentes. Você é desprezível. – Atena perdeu a compostura. Ela gritava, fazendo sua voz ecoar nos quatro cantos do salão, e Kurt Spencer não se atreveu a olhá-la.

- Se não fosse por Ares, eu tentaria a minha armadilha e teria falhado. – ele disse, quase inaudivelmente.

- Há um tempo atrás, um heroi ensinou aos deuses olimpianos a assumirem a responsabilidade por seus atos. Seria bom que, na hora da morte, você reconhecesse seus muitos erros. – Zeus falou, frio e rancoroso.

Kurt nada mais teve a dizer, mas inclinou-se ao chão. Nico di Angelo e Percy Jackson deitaram-no e observaram de perto a convulsão que a dor lhe provocara. O fim estava terrivelmente próximo. Hades se levantou ao sentir a vida esvair do mortal, e aproximou-se dele.

- Você herdou os Campos dos Asfódelos, talvez por lá aprenda a valorizar a vida sem causar sofrimento aos outros. Você teve acertos, mas deixou-se tomar por uma ira desgovernada e seus erros se tornaram maiores que você. – Ele disse alto o suficiente para que todos escutassem o veredicto dos deus dos mortos.

- Acabe com o meu sofrimento, e consequentemente o de vocês acabará. Não estarei mais aqui para ser a pedra em vosso caminho, e já não suporto mais o veneno a arrebentar minhas veias. – Kurt implorou, com lágrimas saltando incessantemente de seus olhos.

- Em condições normais, você teria morrido poucos minutos depois do ataque, mas aguentou até que seu destino fosse traçado. E já foi feito. Torne-se uma alma melhor, Kurt Spencer. – Hades tocou-lhe a cabeça, e no mesmo instante o mortal parou de tremer. Ele havia partido.

A sala ficou completamente em silêncio por longos minutos. Ninguém atrevia-se a falar, mas ainda havia um réu a ser julgado, e as órbitas fumegantes do lugar dos olhos de Ares se agitaram mais do que nunca. Zeus finalmente se prontificou a falar.

- Por traição aos deuses, provocar desordem no mundo mortal e ser co-autor na rebeldia de um sádico contra os semideuses, creio que todos concordam que Ares, o deus da guerra, mereça uma punição condizente com seus atos. Proponho que Ares seja aprisionado em uma inviolável urna de bronze por treze meses, tempo em que suas funções serão desempenhadas por nós e que poderá repensar suas atitudes nos últimos tempos. Todos anuem?

As mãos de todos foram prontamente levantadas. O destino do deus estava traçado. Sufocaria por treze meses em uma prisão incômoda e já antes experimentada por ele*, mas havia conseguido escapar. Dessa vez a segurança seria reforçada, ele não conseguiria sair antes do prazo.

Atena levantou a voz, agora completamente tomada por sua habitual racionalidade.

- Proponho que a urna de Ares seja colocada junto ao túmulo de Kurt Spencer, como sinal de que agiram juntos para conspirar contra a vida dos semideuses e contra o Olimpo. Todos anuem?

E mais uma vez a assembleia de deuses foi unânime.

Sem mais, os deuses saíram de seus tronos e sumiam em fumaça branca. Apenas Zeus, Poseidon, Hades e Atena continuaram ali.

- Argos espera vocês na entrada do edifício, irá leva-los ao acampamento para que se recuperem. Vocês se mantiveram vivos. – Poseidon disse, formal demais para o sempre brincalhão senhor dos mares.

Todos se viraram para sair, mas Giovanna permaneceu onde estava, olhando para o pai.

- Isso é um adeus? – ela disse confusa, e por que não dizer, visivelmente triste.

- Eu diria que é um até logo. Você vai descobrir que vida de semideus não é fácil. – o pai piscou para a garota.

- Acho que eu já sei. – ela sorriu e virou-se para seguir seus amigos.

Desceram o prédio e avistaram o senhor de múltiplos olhos espalhados por seu corpo. Sem dúvidas, Argos não mudara nos últimos meses. Extremamente cansados, todos os cinco semideuses dormiram até a chegada à Colina Meio-sangue, mais uma vez aliviados por terem sobrevivido novamente.

Assim que a van do acampamento parou na entrada, Thalia saltou do veículo e correu para dentro das fronteiras do local como se sua vida dependesse disso. Percy e Annabeth desceram abraçados e sorrindo, aproveitando o clima tranquilo, e não demorou muito para que também sumissem de vista.

Observando Peleu enroscar-se no pinheiro de Thalia, Giovanna mal notou quando Nico colocou-se ao seu lado. Ele demorou um tempo pensando em como poderia falar à ela sobre o que sentia, por medo de ser precipitado demais. A garota deu uma leve cotovelada em suas costelas.

- Está querendo me dizer alguma coisa? – ela disse em tom brincalhão.

- Sim, mas não sei como começar. – ele foi absolutamente sincero.

- Seja simples e rápido, antes que eu perca a paciência. – Nico ficaria receoso, se ela não exibisse um largo sorriso no rosto.

- Eu, eu... me sinto diferente desde que você apareceu. Gosto de você Giovanna. – ele passava a mão no pescoço, evitando fitar seus olhos verdes.

- Já esperava, todos gostam de mim. Antes que você leve a sério, eu digo que foi apenas uma brincadeirinha, okay? Também gosto de você Nico. – ela disse, e ele não pode deixar de sorrir também.

Ficaram assim, um sorrindo para o outro como dois patetas até suas mandíbulas doerem. Na verdade, Nico sentia-se aliviado e feliz por ter falado, mas estava desconfortável por não saber como se portar naquele momento, até que Giovanna quebrasse novamente o silêncio incômodo.

-Você vai ficar aí parado? – Nico arregalou os olhos, mas não se moveu. Ele era incapaz de pensar em algo para dizer naquele momento.

- Estou vendo que vou ter que fazer tudo por aqui. – Ela aproximou-se rapidamente e o beijou sem rodeios. Nico finalmente parece acordar e tomou as rédeas da situação, abraçando-a com vontade, mal acreditando que aquilo realmente acontecia ali, à porta do acampamento meio-sangue.

Depois de muito conversarem e se beijarem sentados abaixo do Velocino de Ouro guardado pelo dragão, Nico, mais solto, pegou nas mãos da sorridente Giovanna.

- Não sei se você acharia cedo demais, mas estou com vontade de fazer isso: Giovanna, quer namorar comigo? – o garoto das trevas nem acreditava que aquelas palavras saíam da boca dele.

- Claro que sim! Minha filosofia de vida é “aproveitar o momento”, por isso não acho cedo demais, o tempo é relativo. Vou fazer inveja para todas desse acampamento! – ela deu uma piscadela cômica, ao mesmo tempo em que se jogava em cima do seu mais novo namorado. Peleu sibilou, e então acharam prudente entrarem no acampamento.

Ambos caminhavam, de mãos dadas, descendo à colina e atraindo os olhares de todos que se faziam presentes. A corneta do jantar soou e Nico levou Giovanna diretamente para o refeitório. Orientou-a para que se sentasse junto de Percy, que se encarregaria de ensinar o resto. Ele sentou-se sozinho e ao fazer sua refeição, percebeu como estava faminto.

Quando o jantar acabou, todos reuniram-se em volta da fogueira, em que Giovanna teve o tridente de Poseidon flutuando sobre sua cabeça, sendo reconhecida pelo Deus. Os campistas cumprimentaram os meio-sangues vindos do resgate de Annabeth e também a própria semideusa, que havia resistido bravamente ao sequestro, ao estupro e às perdas que presenciara. Foi lhe dada a palavra quando traziam duas mortalhas com corujas bordadas em cada uma delas. A mortalha de Megan, e também de Alliz.

- Duas crias de Atena pereceram pela mão de dois seres desprezíveis: um deus e um mortal. Uma criança e uma adulta, ambas de coração bom e conduta honrosa. Não tive o prazer de conhecer uma delas, mas a outra protegeu-me com a própria vida. Ela me acolheu quando fugi do cativeiro, me salvou quando estava prestes a me violentar. Foram poucos dias, mas Megan Armstrong marcou a vida de cinco de nós. Ela merece os Campos Elíseos. – as lágrimas rolavam pelos rostos de muitos ali, em especial, do chalé de Atena.

As mortalhas queimadas significava a redenção. Mortas para o mundo, Megan e Alliz finalmente encontrar-se-iam e teriam a eterna tranquilidade.

Kurt Spencer e Ares agora compartilhavam a própria clausura, respectivamente em seu caixão mortal e sua caixa de bronze, para que talvez o cativeiro lhes fizesse aprender que a névoa não camufla a morte, tampouco, as injustiças causadas por uma vingança impetuosa. Um voltaria, o outro, jamais terá uma segunda chance.

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* Realmente existe o mito do aprisionamento de Ares em uma urna de bronze.