A Culpa É dos Jogos Vorazes ONE-SHOT

Capítulo Único - Os Jogos do Câncer


Sessenta segundos.

Esse é o tempo que tenho para me localizar na arena antes que os Jogos do Câncer comecem. Nunca pensei que diria isso, mas estou literalmente morrendo de medo (na verdade, acho que o medo vai me matar antes mesmo do início efetivo dos Jogos ou do próprio câncer que está hospedado em meus pulmões estúpidos e inúteis).

Pense positivo, Hazel. Pense positivo, digo para mim mesma enquanto roo as unhas metaforicamente, afinal, este é um vício que me livrei há muito tempo. Afinal, mesmo toda a situação sendo desagradável, eles ao menos me deixaram ficar com o carrinho e um cilindro de oxigênio comigo ― claro que somente após os médicos da Capital terem me examinado milhares de vezes e constatados que eu realmente preciso do oxigênio para não morrer antes do gongo soar.

Na verdade, há pessoas em condições muito piores do que as minhas nessa arena. Como meu amado Gus. Augustus não precisa da prótese que substitui uma de suas pernas para sobreviver (em tese, claro), portanto ele é obrigado a ficar sem elas. O coitado terá que ir pulando numa perna só até a Cornucópia. Só espero que ele não torça o tornozelo fazendo gracinhas.

Você que chegou agora deve estar confuso, aposto. Pois bem, deixe-me esclarecer as coisas aqui: estaria eu prestes a embarcar em um jogo sádico e cruel onde terei que lutar até a morte? Bem, sim. E provavelmente terei uma morte angustiante e dolorosa? É óbvio. Mas poderia ser pior. Poderia estar chovendo ao invés de um céu tão lindo e azul como este. Apenas preciso ver o lado bom da coisa. Certo?

Esse é o primeiro ano dos Jogos do Câncer, logo após a América do Norte sofrer uma alucinante guerra civil onde três quartos da população morreu e o restante vive em pobreza extrema sob o julgamento de um governo totalitário e bárbaro. Então, os poderosos podre de ricos que restaram tiveram a brilhante ideia de criar um evento anual onde vinte e quatro crianças de doze a dezoito anos são obrigadas a lutar entre si até a morte apenas para entreter o resto do planeta, que atualmente vive uma paz utópica sabe-se lá como, e ficar ainda mais endinheirados.

Mas ainda poderia ser pior. Ouvi dizer que no começo eles queriam fazer o programa com crianças saudáveis e que chamariam de Jogos Vorazes. Mas a Capital, a cidade onde habitam os ricaços, não achou uma boa ideia sacrificar aqueles que têm saúde e que poderiam trabalhar até a velhice para o conforto deles. Então o que pensaram? Exato. “Porque não usar apenas pessoas doentes na competição? Assim, elas morrem de qualquer jeito”. Portanto, para dar certa dramaticidade às coisas (acho eu), mudaram o “Vorazes” para “do Câncer”. Eventos esportivos. Mortes. Sadismo. Câncer. Realmente, o pessoal da Capital é genial.

Então, como todos devem estar cientes a essa altura dos fatos, eu fui escolhida na primeira colheita do evento mais sádico e inumano do que sobrou dos Estados Unidos. Isso prova que sou azarada em vários níveis da escala de Azaramento (criada por mim mesma, diga-se de passagem). Como se não bastasse o câncer, agora recebo um bilhete com uma passagem só de ida para morrer ainda mais rápido. Palmas para mim!

Não importa o que os comerciais da televisão digam. Mesmo se eu sobreviver aos Jogos, continuarei com a sentença de morte do câncer piscando na minha testa. E isso é um saco. Eu já até pensei em desistir, sair do meu prato metálico antes dos sessenta segundos e explodir em bilhões de pedacinhos cancerígenos. Mas, claro, Hazel Grace não é o tipo de garota que se dá por vencida tão facilmente. Afinal, há pessoas mais doentes do que eu aqui e que morrerão mais rápido. Bom, se eu ao menos conseguisse correr...

Olho para os lados, observando em que lugar estou. Disseram que a arena poderia ser em qualquer canto do mundo ― desde um deserto escaldante até uma geleira no Himalaia. A Cornucópia está a uns cinquenta metros na minha frente, dourada e reluzente. Há várias coisas na boca do chifre de ouro, como sacos de dormir, armas, comida, cordas, remédios e próteses para aqueles que tem um ou mais membros a menos. Bom, sorte do Gus. Quanto mais longe da Cornucópia, menor é o valor dos suprimentos. A vinte metros de onde estou vejo um pacote de Doritos.

Além do chifre há uma enorme floresta de pinheiros que circunda a clareira plana onde estamos. Droga. Eu estava torcendo por um lugar um pouco menos rústico e sem ursos pardos querendo provar um pedaço de mim. Lembro-me muito bem das aulas de geografia. Com certeza vai ter ursos. Agora só preciso escolher uma maneira para morrer ― a) comida por ursos (o mais provável); b) morta naquilo que os capitalianos chamaram de “banho de sangue” (também muito provável); c) morta pela falta do Falanxifor (obviamente, provável de novo). Nesse momento o que eu mais quero é a existência da alternativa d) viver e esfregar a vitória e a grana na cara das inimigas. Mas, claro, o mundo não é uma fábrica de realizações de sonhos.

Se eu ao menos não tivesse gastado meu único desejo aos Gênios para ir à Disney, bem que podia usá-lo para que eles me tirassem daqui. Hazel estúpida! Burra, burra, burra! Agora aqui estou, sem a mínima chance de sobreviver graças à vontade infantil de tirar uma foto com os peitos na cara do Pateta.

Olho para os tributos aos meus lados. À minha esquerda está um garoto sentado em seu prato de metal, uma vez que ambas as suas pernas acabam na altura das cochas. Acho que seu nome é Legs Alguma-Coisa. Ele olha para cima e encontra o meu olhar. Legs dá uma piscadela bem humorada seguida por um sorriso bobo. Que fofo! Nem parece que vai morrer.

Reconheço a pessoa ao meu outro lado. É Isaac. Ele está com o olhar perdido, completamente cego como sempre. Só espero que na hora da chacina ele consiga correr para o lado certo.

― Ei, Isaac ― chamo e sua cabeça vira em minha direção.

― Ora, ora, ora. Hazel Grace. Você por aqui? Você poderia me fazer um favor?

― Sim ― digo. ― Contando que não seja manter nós dois vivos.

Isaac suspira.

― Sei que isso seria pedir demais. Só quero saber se você poderia me avisar quando a hora certa chegar.

Reviro os olhos.

― Ouvi dizer que vai soar uma espécie de gongo.

O garoto cego franzi o cenho.

― É? Desculpe. Não vi o memorando.

Então o gongo soa.

Você deve estar pensando que os próximos segundos foram de pura adrenalina (e excitação, para os mais pervertidos), todos correndo como loucos para a Cornucópia e depois se matando gratuitamente. Mas, lamento estragar suas expectativas, você está errado. Na verdade, “errado” é apenas um eufemismo comparado ao que realmente aconteceu. Basta lembrar que a Capital decidiu jogar vinte e quatro crianças cancerígenas (ênfase no “cancerígenas” por favor) numa arena.

Ninguém correu. Afinal, ninguém está ansioso para matar ou ser morto. Em um ato deliberado de bondade exercido pelo calor do momento, guio Isaac até os suprimentos, sua mão pousada em meu ombros. Como se fosse um perfeito cavalheiro, o garoto cego oferece-se para carregar o carrinho com o cilindro de oxigênio. Levo a mão ao peito, agradecida, e digo que sim, depois o agradecendo. Bons amigos héteros são difíceis de se encontrar em tempos como esse.

Mesmo caminhando sem pressa nenhuma, há varias pessoas ficando para trás, como o Legs Alguma-Coisa, que faz o possível para arrastar-se até o chifre de ouro, as mãos em forma de garras enterrando-se no terra e depois usando os braços para avançar alguns centímetros por vez.

― Vamos lá, Legs! Você consegue ― ouço uma voz encorajando o garoto sem pernas e identifico ser de Belly, o tributo com câncer de estômago em estágio avançado.

Legs está tão cansado pelo esforço que não responde, mas tem a finesa de erguer o polegar em sinal de positivo na direção geral da voz.

Finamente chegamos à Cornucópia, outros cinco tributos já se deleitando nos suprimentos. Deixo Isaac se divertir na pilha de comida e vou à que há remédios, procurando pelo Falanxifor. Encontro vários outros ― remédios para demência, para problemas urinários, laxantes, Dipirona ―, mas não o que procuro.

― Procurando isso, senhorita Grace?

Ergo os olhos e encaro um Augustus sorridente e otimista. Ele balança na mão uma caixinha de Falanxifor.

― Ah, muito obrigado, senhor Waters ― digo e surrupio os comprimidos, colocando-os no bolso. ― A pilha com as próteses está ali. ― Aponto para um amontoado de ferro e plástico a cinco metros de distância.

― Obrigado. Vou lá procurar uma perna nova.

Gus chega à pilha quando um garoto com a pele coberta por manchas pretas e verrugas por todo o corpo devido ao câncer abraça-o por trás, derrubando-o de costas. É mais ou menos nesse instante que todos os que estão na Cornucópia ― com exceção de Legs Alguma-Coisa, pois está na metade do caminho e na velocidade em que se arrasta só chegará aqui amanhã ― lembram-se do objetivo dos Jogos do Câncer: matar, matar e... (você adivinhou) matar.

Então, como se um interruptor fosse acionado, os tributos viram-se uns para os outros e começam a esmurrar-se, dar facadas e, como é o caso da Emily Sem Mãos (cujo nome explica muito bem quais partes do corpo a doença levou), dar mordidas dolorosas em qualquer pedaço de carne perto de seus dentes afiados.

Mas eu não me importo com o que está acontecendo ao meu redor, pois só tenho olhos para o que Gus está enfrentando. O garoto com câncer de pele parece estar levando a melhor, ambas as mãos ao redor do pescoço de Augustus, mas tem uma coisa que o garoto do câncer (de pele, sendo que todos aqui têm pelo menos um tipo de câncer) não está esperando.

Gus estende o braço e pega o objeto mais perto que há de si. Ele desfere um golpe violento contra o semblante do oponente, fazendo-o oscilar, dando tempo suficiente para Gus conseguir recuperar-se. O garoto perneta segura a prótese de perna com ambas as mãos e ergue-a até acima da cabeça. Então, em um piscar de olhos, desce o objeto com toda a força que tem, amaçando o crânio do garoto de pele cancerígena. Gotículas de sangue espirram em seu rosto, deixando Gus ainda mais gostoso. Por uma fração de segundo desejo desesperadamente lamber todo o sangue respingado em Gus.

Isaac, cego como sempre, faz o seu melhor, esticando o braço e apontando sua suposta arma mortífera em todas as direções. Pergunto-me o quão má eu seria se resolvesse lhe contar que na realidade está segurando uma frigideira e que isso é patético. Mas, claro, Hazel Grace não é uma pessoa má. Além do mais, aposto que a Capital deve estar se divertindo à beça.

Encaro Legs Alguma-Coisa, inútil e sem pernas. Ele finalmente alcançou a pilha de próteses e está procurando substitutos para seus membros inexistentes. Ele ergue uma perna de plástico e metal quando uma flecha atravessa sua garganta.

Fico boquiaberta, pois Legs não era uma pessoa ruim. Na verdade, ele foi o único tributo que não criticou meus pulmões vagabundos que não gostam de trabalhar como qualquer pulmão norma faria. Olho para trás, procurando seu assassino. É uma garota com uma trança única e jaqueta de couro do tipo que provavelmente participa de orgias semanais. Ela segura um arco.

Katniss Everdeen?

Eu gostaria de perguntar para o Tordo o que ela está fazendo aqui, mas meus lábios não me obedecem. Aliás, o que eu estou fazendo aqui? Olho para os lados, de repente a floresta de pinheiros tornando-se turva e oscilante. Quase surreal.

Katniss, o símbolo da revolução, ajeita outra flecha em seu arco fatal. Ela mira em minha direção. Então atira.

•••

Acordo em um solavanco, assustada. Por reflexo, procuro o buraco em meu peito onde a flecha entrou, mas há nada. Encaro o lugar ao meu redor. É o meu quarto ― a mesma máquina barulhenta conectada a mim, os mesmos livros na prateleira, as mesmas luzes ligadas.

Encaro o livro aberto sobre minha barriga e imagino tê-lo deixado cair quando peguei num sono. É Jogos Vorazes. Foi tudo um sonho, claro. Pego o exemplar e fecho-o, mal humorada, pois tudo pareceu muito real.

Eu nunca deveria ter abandonado Uma Aflição Imperial para ler algo tão tosco quanto uma distopia que faz uma crítica aguçada à nossa sociedade atual, apontando todos os defeitos do mundo de maneira limpa e clara.

É. Isso mesmo.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.