Névoa. Uma densa névoa cobria tudo o que os olhos ignorariam, se não estivesse escondido. Mesmo assim, andar por ela não era difícil. Só era tenso, pois a qualquer momento algo podia pular de dentro dela...

Bendito andava por um terreno cheio de raízes, apesar de não conseguir ver as árvores. Com um passo lento e cuidadoso, tentava ao máximo ver o que estava embaixo dos seus pés, se era uma cobra, ou não. Foi esse cuidado que lhe impediu de dar um baita chute em um obstáculo na sua frente.

O meio monstro passou algum tempo tentando compreender aquela forma com o pé, mas desistiu e tocou aquilo com a mão enluvada. A gelidez lhe revelou que era algo inanimado, e a aspereza, que era de pedra. Abaixou-se para ver melhor. Sentiu que tinha alguém lhe observando. Virou-se num susto.

— Amaldiçoado? – era a voz de Porcelana. Ela estava a alguns metros de distância, perdida na névoa.

Ele não respondeu.

— Amaldiçoado... onde estamos? Eu estou com medo...

— Meu nome não é Amaldiçoado. – disse ele, frio.

— Ah... desculpa... – ela parecia decepcionar-se – Você parece o meu irmão, de longe...

Porcelana se aproximava do que quer que era aquilo que Bendito tinha esbarrado. Ele não se importou, e deixou que viesse, fingindo prestar atenção na coisa de pedra.

— O que é isso? – a voz dela apareceu ao seu lado tão de repente, que o meio monstro teve um susto. – Ah, desculpa te assustar...

— Não tem problema... – ele manteve o rosto virado para a placa de pedra.

Então Bendito viu o que estava escrito.

Em memória de Adilson Lâche

Homem gentil, de pouquíssimos amigos, inseguro e sério.

Sua única coragem lhe custou a vida.

19XX

Bendito abaixou o rosto. Lembrara de Adilson do seu lado, todos os dias da sua vida. Desde quando era uma pequena e inocente criança, ao lado de sua mãe e pai, até quando ela se foi, e só sobraram eles dois, e até quando, naquele porão, foi o único a cuidar dele. Aquela sua primeira e última loucura, de fugir naquele vagão, tinha sido apenas uma de suas mais memoráveis ações. Nem mesmo Bernardo podia se comparar ao lutador que tinha sido Adilson...

Um soluço interrompeu a memória do meio monstro. Vinha da única pessoa do seu lado. Ele virou o rosto, e viu Porcelana segurando o choro. Aquela visão o assustou. Porcelana lembrava de quem havia sido Adilson?

Ela pôs as mãos no rosto, e em seguida uma chuva de lágrimas começou a pingar. Chorava alto. Chorava de triste e também de culpa.

— Me desculpa... me desculpa... me desculpa.... – não parava de repetir.

— Pelo que? – perguntou Bendito. – Ele não morreu por sua causa.

— Eu sei... eu sei... – sua voz saía toda desregulada por causa do choro. – Mas eu abandonei meu irmão... eu esqueci meu irmão... eu esqueci dos dois, e agora que eu lembrei... não posso mais ir atrás deles....

O ódio de Amaldiçoado por aquela sua meia-irmã foi dando lugar à empatia do amado Bendito.

— Você o conhece? – perguntou ela ao meio monstro.

— ...Conheço.

— Então, se o encontrar por aí, diga a ele que volte para casa. Pelo menos pra eu poder pedir desculpas...

– Acho que ele não poderá ir.

— Por quê? – tirou as mãos do rosto.

— Ele está procurando uma cidade. Talvez demore muito até encontrá-la.

— Oh, entendo... Então, se for assim... Diga a ele que desejo sorte. Que ele encontre essa cidade, e possa morar nela, se lhe agradar. Talvez ele esteja bem melhor longe de Belarus.

— Vou dizer, Porcelana.

—... Como você sabe o meu nome?

— Eu...

Bendito acordou do sonho. E, depois de ver seu irmão sumir de repente, Porcelana também.