Bernardo estava sentado no laboratório, encarando a maca onde Querido passara alguns anos de sua vida. Uma estranha melancolia o encheu, e ele quis ler novamente o livro que o convenceu a libertar aquele antes menino das suas próprias garras de cientista maluco. Levantou-se, procurou o livro no quarto dos cavaleiros, achou e o leu sozinho, no laboratório.

“Eu vi diante de mim uma criatura feia. De rosto deformado e cabelos bagunçados, não do jeito que imaginamos, bonito, mas uma bagunça catastrófica, animal, rebelde, malcuidada. Saiu da escuridão da noite machucada, com as mãos sujas de sangue e terra, as unhas com fungos e as mãos peludas como bicho. Eu recuei, temeroso. Nunca tinha visto tamanha aberração, e o sangue me avisava que ela era perigosa. A criatura me revelou seus dentes, amarelos e alguns furados. Eu tremi, e comecei a suar frio. No entanto, olhei nos olhos daquela criatura. Ah, aqueles olhos...

Olhos violetas, tão belos e raros nos globos oculares de algo tão feio. Aquela cor encantou-me e atraiu-me de um jeito que não entendi. Porém continuei a afundar na cor misteriosa dos olhos daquele monstro, e ele me encarou de volta. Ambos invadimos a alma do outro, e eu vi, lá dentro, algo pulsando. Algo tão brilhante e tão bonito que me tirava todo o medo. Eu me aproximei daquela criatura, como se ela fosse uma pessoa normal, e não desviei o olhar.

Aquele brilho começou a se tornar cada vez maior, até que me vi rodeado de um mundo novo, um caos entre bem e mal, em que o bem era muito pequeno, mas também muito resistente. E a esperança brilhou como uma luz, uma luz violeta...

Senti uma gota de algo cair no meu cabelo. Na verdade, quando voltei a mim, estava quentinho, no abraço de uma criatura horrenda de aparência, mas linda de coração. E eu chorei também. Chorei por tê-la julgado. Chorei por tê-la abandonado, por causa de todos os outros. E a abracei de volta.”