"A propósito do sono, essa sinistra aventura de todas as nossas noites, podemos dizer que os homens vão para a cama diariamente com uma audácia que seria incompreensível se não soubéssemos que resulta da ignorância do perigo."

Charles Baudelaire.


Naquela noite, em Sunnydale, Buffy Summers sonhou.

Estava a pé no meio de um deserto, um vasto pedregal de calhaus miúdos que se estendia até o horizonte. Era meio-dia e o sol jorrava na planície pedregosa. E, bem longe, no horizonte recuado, alteava-se uma cadeia de montanhas com os picos cobertos de neve. Buffy sorriu para o céu azul onde vogavam fantasmagóricas massas brancas de nuvens, e pôs-se a caminho. Estava só, inteiramente só. Apesar disso, ou por causa disso, sentia-se feliz.

Foi quando viu o homem. Ele se achava parado ali, de costas para a Caçadora, com os pés afastados plantados firmemente no chão e brandindo no ar uma enorme espada de aço reluzente. Tomando coragem, Buffy gritou:

– Alô, você! Andou esperando por mim?

O desconhecido voltou-se e Buffy o examinou com o olhar; o que tinha na sua frente era a figura de um homem alto, de físico avantajado, vestido com roupas de couro preto tacheadas e calçado com longas botas polidas. Buffy não sabia dizer se ele era uma criatura humana ou um demônio. A barba rala tipo pera e os cabelos compridos e revoltos eram do mais profundo negrume. Em seu rosto moreno estranhamente juvenil havia um certo ar soturno; e, embora ele não parecesse mau, havia mais do que uma sugestão de algo sinistro em seus traços rústicos mas atraentes, realçado pelos profundos olhos negros selvagemente luminosos. Seus braços musculosos manejavam a pesada espada com habilidade e uma graça quase poética.

– Não tenho medo de você - disse Buffy, impassível.

Subitamente, um tropel de cavalos começou a fazer a terra tremer. Buffy pulou de susto. Esquadrinhou com o olhar o deserto a seu redor, sem ver nada. Parecia-lhe que um invisível exército de gigantes cavalgava em sua direção. O monstruoso tropel crescia cada vez mais e abalava céus e terra. As nuvens dançavam, e no meio dos desolados e distantes picos nevados reverberava um som de trovão que sugeria rodas de titânicos carros de combate que sacudiam a terra com um estrondo terrível.

– Tá legal, Cavaleiro Negro - exclamou Buffy. - Como é que a gente sai desse lugar maluco?

E eis que, de repente, Buffy se viu em pé sobre um penhasco. A grande massa de rocha escarpada erguia-se como uma sentinela poderosa e imóvel na beira do deserto. Agora Buffy podia enxergar uma porção maior da estranha região onde estava, e ela observou que, em cada lado, imperavam condições diferentes. À esquerda estendia-se a planície desértica recamada de seixos que a Caçadora acabara de deixar. À direita havia uma confusão de dunas de areia e grandes lapas de rochas nuas a perder de vista, sob um sol inclemente e um céu sem nuvens. Do alto de seu posto de observação, Buffy olhava perplexa; como uma grande maré de devastação varrendo tudo à sua frente, o maior exército de todos os tempos invadiu as terras áridas daquela paisagem primitiva, rapidamente engolindo o deserto de todos os lados à medida que avançava, marchando com um barulho ensurdecedor semelhante ao de cem mil trovões estourando ao mesmo tempo. Buffy jamais vira tantos guerreiros e soldados, homens de muitas terras e muitas eras: da Índia védica e do Egito faraônico, da Grécia e da Mesopotâmia; gregos antigos, legionários romanos, bárbaros godos, vândalos e hunos; cruzados medievais, divisões Panzer e soldados norte-americanos da Segunda Guerra Mundial. Ali estavam as hostes de Alexandre e de Júlio César, de Gengis Khan e de Hitler. E um número incalculável de outros combatentes de vários povos e épocas da história humana que ela sequer conhecia ou saberia identificar. Uns em carros de guerra, outros em cavalos, revestidos de cobre, bronze e ouro, ferro e aço, os guerreiros movimentavam-se estrondosamente em longas linhas ordenadas, e Buffy notou que foram assumindo um formação mais cerrada, reunindo-se em círculos concêntricos ao redor do rochedo onde ela se achava. Pareceu-lhe estar olhando para um imenso oceano de metal fundido que rebrilhava aos raios do sol.

– Mas o que é que eu tenho a ver com tudo isso?

Um toque no ombro fez Buffy voltar a cabeça. Em pé a seu lado estava o musculoso espadachim de cavanhaque e cabeleira negra que a caça-vampiros encontrara no reg, o deserto de pedregulho. Ele fez um gesto na direção do mar reluzente de aço que parecia cobrir o deserto de extremo a extremo, varrendo a distância com o braço estendido, enquanto seus olhos permaneciam fixos sobre a figura pequena e esbelta da caça-vampiros.

– Este é o seu exército, princesa. - A voz dele era surpreendentemente suave, embora cheia de crueldade.

Olhando para baixo, Buffy viu o deserto se enchendo lentamente de sangue, como a água que enche pouco a pouco uma banheira, e o exército dos exércitos com os corpos de cavalaria, de blindados e até elefantes de guerra pisando aquele líquido rubro e melado que subia cada vez mais alto... Buffy sentiu náuseas. A onda rubra que aparecia à sua frente continuou avançando até alcançar as bordas do penhasco e logo engolfou a escarpa numa enxurrada sanguinolenta que escorria e engolia e engolia. Buffy começou a correr, queria escapar daquele cenário maldito. Seus pés estavam ensopados de sangue. De repente parou. Sua visão turvou-se. Tudo à sua volta parecia encoberto por uma névoa vermelha... como um véu sangrento... uma vermelhidão sem fim...

A luz avermelhada do sol poente refletia-se na lâmina azulada da espada que Buffy segurava com ambas as mãos, pronta para se defender. Seus olhos inquietos percorriam o campo de batalha iluminado pelo flamejante pôr do sol, procurando eventuais inimigos, mas nada se mexia através de todos aqueles quilômetros de planalto coalhado de corpos de guerreiros mortos. Um cenário dantesco. O grande disco vermelho brilhante do Sol, baixo no horizonte, derramava torrentes de uma luminosidade espectral sobre o terreno rochoso e estéril encharcado de sangue humano. E semeado de destroços de guerra: armaduras despedaçadas, lanças e espadas quebradas, capacetes e escudos amassados. Aqui e ali havia os restos de uma carruagem destruída. Lançando um rápido olhar para si mesma, Buffy notou que usava uma espécie de armadura de couro envernizado com peitoral de bronze, braceletes nos antebraços e nos pulsos, e botas de couro macias que chegavam à altura dos joelhos. A lâmina da espada que empunhava media quase um metro de comprimento.

"Sou uma amazona", pensou Buffy, toda confusa. Ela perambulava pelo silencioso campo de batalha, por entre os mortos ensanguentados, carbonizados - tributo à depravação humana - como uma personificação da Morte vagando pelas ruínas de um devastado mundo pós-apocalíptico. Corpos queimados de homens e cavalos jaziam na rocha nua daquele planalto selvagem, testemunhas mudas do Armagedom.

De repente, uma terrível aparição surgiu diante de Buffy. Era um jovem alto, forte, vestido com uma malha protetora de metal manchada com placas purpúreas de sangue coagulado, segurando uma formidável espada no grande punho arranhado em atitude ameaçadora. O capacete de aço com pontas mostrava as marcas de golpes violentos. O rosto era uma máscara de puro ódio irradiando um furor insano. Parecia um endemoniado saído diretamente das infernais hostes do Tártaro. Apesar disso, Buffy reconheceu aquele rosto, que já fora belo, e sentiu o sangue gelar.

– Riley!

Com as mãos agarradas ao cabo da espada, Buffy recuou.

– Portadora da destruição! - berrou o ensandecido Riley, os olhos chamejantes como duas labaredas de um azul real vivo. - Guerreira, é o que você se diz, assassina é o que você é. Vamos! Lute, cadela! Somente um de nós continuará vivo.

A Caçadora ergueu sua espada, segura com as duas mãos, e apontou a lâmina afiada na direção do grandalhão de armadura de aço.

– Para trás! Afaste-se! - exclamou Buffy, gritando o mais alto que podia. - Não quero matar você...

– Vá para Tártaro!

Riley urrou e deu um salto para a frente, numa fúria absolutamente cega, com a espada descrevendo um relampejante arco metálico. Mas a espada de Buffy aparou o golpe, e as duas lâminas colidiram soltando faíscas no ar. Buffy lutava por sua vida. Tentou apenas defender-se, mas o colérico Riley golpeava seguidamente com sua poderosa arma, e os golpes eram cada vez mais perigosos. Uma fúria guerreira foi crescendo dentro dela, os instintos primordiais de uma caça-vampiros impelindo-a a se lançar contra o antagonista. O ódio tomava conta de sua alma. Com uma força descomunal, Buffy desfechou um gole terrível que acertou em cheio o peito do adversário, na altura do coração. A lâmina afiada azul-prateada rasgou a malha de aço, os ossos e o coração de Riley. Com um grito cortante de agonia, olhos vidrados, o robusto guerreiro tombou numa poça de sangue de um vermelho-carmim, morto aos pés da esguia Caçadora de cabelos louros.

– Riley! Meu Deus, o que foi que eu fiz?

Buffy caiu de joelhos ao lado do corpo inerte do ex-namorado convertido em espadachim. Sentia-se tão derrotada, nauseada, desesperada. O combate trouxera à tona o seu lado obscuro - o lado negro das caça-vampiros, a treva dentro de si. Sabia que nunca mais seria ela mesma, a linha divisória não mais existia, o limiar fora transposto. Ela matara um ser humano. Matara Riley Finn.

Então, como que realizando algum cruento ritual atávico, mergulhou as mãos no rubro líquido vital de Riley e os espalhou pelo rosto, pintando-se com o sangue do morto. Era uma reversão à primitividade, que evocava batidas de pés nus no chão de terra e o rufo dos atabaques.

De súbito Buffy levantou os olhos. Diante dela, trajado de couro negro, estava um homem em pé. Era o guerreiro musculoso de cavanhaque e espessa cabeleira negra que Buffy encontrara no deserto pedregoso. Ele se abaixou para pegar as mãos dela e ajudá-la a ficar de pé, ao mesmo tempo em que seus olhos negros pareciam queimar sobre a moça.

– Bravo, princesa! - ele exclamou suavemente, a satisfação clara em sua voz. - Matou seu primeiro oponente em combate, seu primeiro oponente humano. É uma verdadeira guerreira. Agora, deve beber o sangue dele.

Ele lhe apresentou, à guisa de caneca, um crânio humano cujas partes acima dos supercílios haviam sido serradas e o interior, dourado. Estava cheio de um líquido viscoso, de um vermelho vivo, coroado de espuma vermelha malcheirosa. Buffy sabia que aquilo era o sangue de Riley, misturado com cerveja - e ficou paralisada. A voz do homem de preto soou forte e peremptória:

– Beba o sangue do inimigo abatido, como convém a uma princesa guerreira.

Hesitante, ela tomou em suas mãos a macabra taça cheia daquela beberagem obscena. Então, como que impelida por um espírito maligno, levou-a aos lábios e bebeu, bebeu e sorveu até a última gota. Ah! Foi doce e selvagem, exacerbou o ardor guerreiro da caça-vampiros. A dor tinha passado; a confusão tinha passado. A natureza selvagem da Caçadora, livre, além do bem e do mal, se manifestava com toda a ferocidade que a caracterizava. E, acima de tudo aquilo, a voz do homem de preto soava como ferro:

– Você logo se acostumará a matar. Não haverá mais dor ou remorso, só prazer. Farei de você um terror dos homens e o flagelo de todas as nações da Terra. E o mundo inteiro se curvará a seus pés.

NÃÃÃOOO!!!

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.