A Caçadora

Fuja Comigo - £


Vi uma sombra descer da cúpula em cima do altar e pousar sem ruído algum, bem na escada. Ela nem ao menos produziu um som abafado, e aquilo me deixou bem alerta.

A figura fina e esguia demais para ser humana entrou em contato com minha luz, e eu sufoquei um grito no topo da garganta. Não era somente uma criatura, e sim pelo menos dez delas, que desciam pelas paredes e vinham rastejando e arrastando os pedaços do corpo desproporcionais ao resto, pelo chão.

Eles lambiam o tempo inteiro sua língua fina e pálida e produziam um ruído característico quando tentavam se comunicar, apesar de não fazerem o menor barulho enquanto andavam. Espérers, estes eram as criaturas mais idiotas, porque vinham ao ataque sem nem ao menos pensar antes. Eram completamente irresponsáveis por seus atos, e mata-los era apelação demais, até mesmo para nós.

Os espérers passavam pelos bancos estreitos de madeira da igreja e procuravam não fazer mais barulhos do que o necessário.

– Esses eram os demônios? – sussurrei para Claire, que já atirava em um espérer que se encontrava perto demais.

Ela balançou a cabeça, negando.

– Não pode ser. Tem que ter outra coisa além deles.

Suspirei e comecei a atirar também.

Foi fácil demais, e cada um gastou pelo menos duas balas.

Ouvi um rosnado alto vindo de detrás de nós e um arrepio percorreu minha coluna.

Eles estão vindo, preste atenção e por favor, não atire em nós, a voz de Edward me avisou.

Percebi que ele disse “em nós”, e não “nos lobos”, e me tremi de leve. A ideia de ele ser um metamorfo ainda não havia entrado em minha cabeça, ele teria que ir mais devagar se quisesse que eu aceitasse aquilo tão simples. Alguns dos lobos pareciam desconfortáveis perto do lobo branco como neve, e querendo ou não, eu acabava me sentindo meio mal com aquilo, já que ele trocava o peso do corpo de uma pata para outra, impacientemente.

Fui para perto de Claire, já que Edward parecia muito ocupado com outra coisa, e sussurrei em seu ouvido:

– Eles estão vindo, não atire nos lobos em hipótese alguma.

Ela assentiu.

Porque eu estava fazendo aquilo? Nós éramos treinados para matar os metamorfos, e vice-versa. Porque eles estavam nos protegendo? Ou melhor, porque estávamos os protegendo?

Chequei quantas balas tinha restante ainda na arma, e Hugh me entregou a besta que ele tinha, pegando a arma que eu tinha de minhas mãos.

Quando fiz uma cara de confusão, ele sorriu.

– Você é melhor com uma balestra do que com uma arma.

Fingi fazer uma reverência e revirei os olhos.

Foi quando os ouvimos, brotando do chão, chegando de fininho pelos cantos escuros da igreja. Os demônios surgiam de todos os lados, e diferentemente dos espérers, não era difícil os enxergar no escuro, e muito menos de ouvi-los. Eles não precisavam ser cautelosos quanto sua aparição, já que eram absurdamente perigosos e mortais.

Era possível ver a pele escamosa e de várias cores nada normais, os olhos que brilhavam por serem completamente brancos e as presas que chegavam a refletir a luz de nossas lanternas.

E então, tudo o que aconteceu depois foi tão rápido para meus olhos acompanharem, que em meio segundo eu já estava no chão com a besta engatilhada, e atirava no demônio que subira em cima de meu tronco e berrava ameaçadoramente em meu rosto.

Tentei não pensar no fato de que todos os metamorfos agora estavam em ação e tudo o que eu tinha de proteção era minha balestra e a pura sorte. E eu esperava que ela estivesse ao meu favor.

Meu coração batia forte no peito, e por mais que eu quisesse afastar o sentimento de estar solitária, não conseguia. Edward não estava ali para me ajudar com qualquer coisa. Ele estava ocupado demais cuidando de seus próprios demônios para prestar atenção em qualquer coisa que acontecia à sua volta.

Percebi que o lobo branco lutava ferozmente com um demônio grande e robusto, que parecia queimar, e já aparentava alguns respingos de sangue na pelagem. Assisti àquela cena, hipnotizada, até que um movimento no balcão logo acima de nós captou minha atenção. Vários caçadores que eram desconhecidos por mim, apareceram lutando com outras duas criaturas que não eram demônios e nem espérers.

Minha respiração ficou presa na garganta.

Não pode ser eles!

Os caçadores conseguiram jogar uma das sombras do balcão, e ela caiu com um baque absurdamente alto no piso, praticamente rachando-o. Um grunhido escapou de seus lábios, e quando fui ver, um dos lobos desocupados foi em direção a ela.

– Não! – gritei, jogando meu corpo contra o do lobo bege, sentindo-o voar alguns metros para longe da sombra, aterrissando com um rosnado alto de advertência.

Como resposta, armei a besta e mirei.

O lobo veio em minha direção e eu me esquivei facilmente fazendo com que ele fosse de encontro com um dos bancos de madeira cor de mogno, deixando-o em pedacinhos.

Observei o momento de distração dele e dei uma boa olhada na sombra que estava perto de mim. Estava bastante escuro, mas ainda era possível vê-lo com a iluminação de minha lanterna.

Seu cabelo louro e bagunçado cobria parte do seu rosto, mas não o sorriso sacana que se estendia por sua face, deixando claro que ele estava orgulhoso, de certa maneira. Seus olhos claros estavam cobertos, mas eu podia jurar que brilhavam como duas safiras no sol. Podia ver, pela luz de minha lanterna ainda ligada, que ele tinha cortes pelo rosto, e estava com o cabelo molhado de suor. Se Polux não estivesse tão machucado e vulnerável a mim, sentiria um tremendo nojo daquele suor, mas ao invés disso, corri até ele e tirei o cabelo de seu rosto, sorrindo aliviada por ele estar bem.

– Saia daqui. – ele disse passando os dedos por meu rosto.

– Você precisa sair. – retruquei, o levantando.

Antes que pudesse o ajudar a levantar direito, o lobo bege voou contra meu corpo, e me lançou até o outro lado da igreja, fazendo com que meu corpo se chocasse com uma estátua de anjos que parecia rezar em direção a uma imagem entalhada da Santa Ceia, também deixando-a em pedaços.

Palavrões e mais palavrões rodeavam minha mente, mas tudo o que eu podia fazer era choramingar de dor. Outra sombra se aproximou de mim, e antes que eu pudesse fazer alguma coisa, me pegou no colo, protetoramente. O homem me arrastou até uma parte mais iluminada – já que minha lanterna havia se quebrado com o impacto – e tirou as mechas que cobriam minha visão parcialmente.

– Kaus? – perguntei enquanto ele tocava todas as partes de meu rosto à procura de ferimentos sérios.

Eu nunca havia visto seu rosto tão sério e concentrado como antes.

– Eu vou matar aquele filho da mãe! – ele gritou.

Filho da mãe não fora exatamente a palavra usada, mas eu preferia não a repetir.

– Não vai não. – respondi me soltando de seu braço, levantando com certa dificuldade. Tateei o chão em busca da balestra e levantei para seu rosto.

– Vamos começar com isso de novo? – Kaus perguntou, sem nem ao menos se importar de levantar os braços, relembrando o episódio no quarto de Jason, em minha antiga casa.

– Eu disse que só não matei você porque não tinha as ferramentas certas.

Ele riu com escárnio.

– Nós dois sabemos que você não teria coragem, nem se tivesse com as melhores armas.

E com essa frase, desapareceu.

Eu podia ver os vitrais em cima de minha cabeça reluzir à luz da lua, fazendo as cores refletir na cúpula, que agora brilhava de leve, deixando parte da igreja muito mais clara.

Deixei meu corpo escorregar pela parede, e Polux correu em minha direção tomando meu rosto nas mãos, agachando ao meu lado. Ele parecia extremamente preocupado, assim como o irmão há alguns segundos.

– Por favor, saia daqui! Eles vão matar você! – supliquei, sentindo um aperto na boca do estômago só de pensar em Polux morto.

Ele assentiu ainda concentrado em algo no canto de minha boca, e passou o dedo no local, vendo o sangue manchar sua pele, levemente.

– Eu volto para buscar você, e vamos para algum lugar seguro. – ele me assegurou, limpando o sangue na calça.

– Não. É perigoso demais. Eles nos achariam.

Eu estava dando qualquer desculpa para não ir. Por mais que fosse tentadora a proposta de Polux de fugir com ele, eu não conseguia parar de pensar em Fitch. Em momento nenhum. Como ele ficaria sem mim?

Ele ficaria bem, agora tem Cali, a voz pessimista soou dentro de minha cabeça.

Polux expirou como se estivesse sem paciência.

– Se é o que você quer...

– Sim é o que quero. – afirmei o cortando.

Engoli seco e ele beijou minha testa.

– Fique viva. – ordenou antes de sumir.

Levantei toda desengonçada e limpei a poeira que insistia em grudar em minhas roupas. Rumei bufando até o lobo bege que procurava por mim, e corri em sua direção, me chocando com seu corpo novamente, derrubando-o no chão, fazendo questão de ficar por cima e longe de seus dentes afiados. Eu socava e chutava todas as partes que podia alcançar, até que de repente seu corpo sumiu de perto do meu, e um rosnado absurdamente alto encheu meus ouvidos.

O lobo branco se posicionou entre mim o metamorfo bege, que ainda estava irritado, e continuou rosnando, ameaçadoramente.

O silêncio reinava ao nosso redor, e tudo o que eu podia pensar era: mas já acabou? Eu havia feito tão pouca coisa! Nem matar um mero demônio eu tinha conseguido!

Toquei na pelagem branca e pensei: Se acalme, está tudo bem.

A resposta foi mais um grunhido e a voz alta de Edward enchendo minha cabeça: Ele estava prestes à te atacar e está tudo bem? Sua voz era cheia de uma repreensão que eu desconhecia.

Fui eu quem começou.

E esta simples frase fez com que a cabeça do lobo branco – ou Edward – se virasse rapidamente em minha direção. Ele rosnou desta vez para mim, e pude ver de relance a satisfação que o lobo bege parecia exalar.

Como? Edward gritou por dentro e rugiu por fora, atraindo a atenção de todos os caçadores, que seguravam as lanternas para nossa direção.

Encolhi os ombros.

Não foi por querer! Eu só o vi atacando uma sombra e pensei que fosse um dos nossos!, tentei me defender em vão.

Mais rosnados.

Você salvou Polux Finnik da morte, Helena? A voz estrondosa se propagou em minha mente, e logo lágrimas vieram nas beiradas de meus olhos.

Não foi por querer, já disse que pensei ser um dos nossos!

O lobo balançou a cabeça, como se estivesse decepcionado, caminhando para longe de mim, bufando pelo nariz – como se isso fosse possível.

– Você teria feito a mesma coisa! – gritei, não me importando de ter pronunciado aquelas palavras em voz alta.

O lobo nem sequer fez menção de se virar para olhar para mim, mas continuou andando. Os outros lobos o seguiram com exceção ao bege, que ainda me encarava parecendo achar graça em toda aquela situação. Mas bastou um rugido alto de Edward para ele o seguir.

E enquanto eles saiam pela porta de bronze e seguiam para a parte de trás da igreja, em minha cabeça uma sirene de alerta dizendo: Mentirosa! Mentirosa!, apitava à todo o tempo.

Claire se aproximou e tocou meus ombros, amigavelmente, tentando me acalmar.

– Vai ficar tudo bem. – ela tentou dizer.

Enxuguei as lágrimas e funguei fundo, repetindo mentalmente que eu não deveria chorar por coisas idiotas como brigas com Edward, e disse.

– Eu sei.