A Caçada

Capítulo Único


Lucian tirou uma flanela surrada da gaveta e começou a polir as pistolas relicárias, ritual que fazia sempre antes de uma caçada, vestiu a velha farda branca e dourada, ainda com os rasgos e manchas da última luta que teve ao lado de Senna. Jogou uma bolsa de couro sobre o ombro, onde carregava frutas, pão, queijo, um cantil de água e um estojo com pomada e ataduras; fechou a porta atrás de si, respirou fundo e seguiu pela rua pouco movimentada. O céu já escurecia sobre Demacia, nuvens cada vez mais densas se formavam sobre as montanhas, trazidas pelo vento que uivava ao passar pelas enormes colunas de mármore branco.

Depois de algum tempo caminhando pela trilha que levava à costa, Lucian avistou a extensa planície azul. A maré estava alta e o mar parecia mais revolto do que de costume, as ondas batiam com força contra a parede rochosa, salpicando seu rosto com água salgada. Lucian suspirou, não daria para velejar naquelas condições, decidiu retornar para casa.

No meio do caminho, entre um bosque de pinheiros e pequenos jardins de hortênsias, parou para bebericar um pouco de água, foi quando um farfalhar nas folhas caídas o fez ficar em alerta. Guardou o cantil e sacou as pistolas, caminhando a passos lentos por entre as árvores até encontrar rastros deixados sobre o solo úmido. Não eram pegadas de animal, nem alguém usando botas e aquilo fez o instinto do caçador se atenuar.

Foi então que uma risada provocativa ecoou até seus ouvidos. Aquela voz lhe era desconhecida, poucos espectros riam, Thresh era um deles, mas sua risada louca e debochada era inconfundível, mesmo entre o barulho de tiros e aberrações sendo desintegradas. Lucian postou-se de forma defensiva, as costas de encontro com um pinheiro largo, as armas paralelas ao rosto com os dedos à milímetros dos gatilhos. A risada continuou reverberando de um lado para o outro, sem conseguir identificar de onde vinha o som, resolveu arriscar.

— Revele-se, abominação! - Ordenou.

— Que crueldade me chamar assim - a risada transformou-se em uma voz feminina injuriada. - Mas gosto da potência em seu comando - riu maliciosamente - me excita.

— Desculpe - Lucian esboçou a tentativa de um sorriso no canto da boca - sou casado.

— Mas isso não é empecilho algum, aliás, prefiro os comprometidos - a mulher finalmente se revelou, saltando graciosamente de um galho - deleito-me com o desespero das viúvas ao verem seus homens estripados por mim - disse percorrendo delicadamente as garras sobre o corpo seminu, apenas o busto e parte do quadril envolvidos em sombras arroxeadas. - Já vi sua esposa, consegue coisa melhor.

— O que disse?! - Lucian saiu de seu esconderijo, as pistolas apontadas para a criatura. - Você é... Um súcubo - constatou.

— Muito prazer - o demônio fez uma saudação, sem tirar os olhos da presa - Evelynn.

— Por que está atrás de mim? - o atirador deu alguns passos para o lado, forçando o alvo a se reposicionar em um lugar mais aberto.

— Fiquei curiosa sobre o expurgador que teve a esposa capturada pelo Guardião das Correntes, que sofre pela pobre coitada aprisionada na lanterna junto de tantas almas enlouquecidas e torturadas - o demônio narrava em êxtase. - Me pergunto o quanto de dor você é capaz de aguentar.

— Você não tem ideia... - Lucian sussurrou tristonho, deixando-se levar momentaneamente pelas lembranças da amada esposa, tempo suficiente para que Evelynn fizesse um gesto sutil com as mãos, lançando um encanto sobre o homem abalado.

De repente o corpo de Lucian ficou pesado, a mente enevoada, os joelhos vacilaram e ele teve que se apoiar com as mãos para não cair. A súcubo se aproximou, sussurrando palavras provocativas e obscenas, o que faria qualquer homem ceder aos seus caprichos, mas desta vez a vítima não era um alvo fácil. Forte e obstinado, o purificador não seria ludibriado de forma tão vil.

Evelynn se aproximou do homem, tamborilou as garras sobre o tórax que subia e descia com a respiração calma, passou a língua sobre os próprios lábios, imaginando como despedaçaria cada parte daquele corpo viril, foi quando algo quente tocou seu abdômen. Saltou rapidamente para trás, antes de ser atingida por um feixe de luz concentrada, examinando a lateral esquerda de sua cintura.

— Nossa docinho, quase me acertou - debochou. - Agora é minha vez!

O demônio atacou com o que pareciam ser dois açoites, Lucian bloqueou com as armas, mas havia algo afiado na ponta dos chicotes. Um deles acabou acertando seu braço direito, deixando um corte que logo começou a derramar sangue.

— Ponto pra mim - Evelynn lambeu o líquido vermelho sobre a superfície da arma pontiaguda e atacou novamente. Desta vez Lucian moveu-se para o lado em um movimento extremamente veloz, lançou um disparo que se espalhou como uma granada de luz, o que deixou a súcubo temporariamente desnorteada. Ele avançou, mas a criatura envolveu-se em sombras e desapareceu.

Lucian aproveitou a oportunidade para recuar e cuidar do ferimento no braço, colocou uma pasta esverdeada e enfaixou, dando um nó apertado para estancar o sangramento. Andou a passos rápidos procurando um lugar seguro para descansar, encontrou um amontoado de rochas perfeito para se esconder, assim que contornou o pedregulho, ouviu o engatilhar de uma besta. Pelo canto do olho pode ver o brilho da ponta de uma flecha de prata, ergueu as mãos sem as pistolas em forma de rendição.

— Olá Shauna Vayne - cumprimentou, reconhecendo a caçadora noturna.

— Você está horrível - disse a mulher, baixando a arma. - Apanhou de algum espectro?

— Você não está em condições melhores pra me ofender. - Lucian se sentou sobre o gramado - Lobisomem?

— Não - Vayne franziu a testa, era difícil algo perturbar a atiradora daquela forma. - Acho que era um velho conhecido seu.

***

Era fim de tarde quando o céu de Demacia escureceu com as nuvens densas de tempestade, Vayne colocava os últimos dardos de prata na aljava, pegou seus óculos vermelhos e partiu. Na noite passada havia matado um dos lobisomens que perambulavam pelas redondezas da floresta, mas o outro, um pouco menor e mais rápido, conseguiu escapar. A caçadora o havia acertado com um dardo de prata, não fora um tiro letal, mas certamente a criatura não conseguiria ir muito longe com o ferimento.

Depois de descansada e rearmada, Vayne seguiu os rastros deixados a partir do último ponto de luta. Gotas de sangue e folhas esmagadas a levaram direto para um riacho, mas a trilha terminava ali, muito provavelmente o monstro ferido havia seguido caminho pela água.

A caçadora seguiu a correnteza que desembocava em uma pequena cachoeira. Sentou-se num tronco ao lado do córrego, suspirando desapontada, reabasteceu o cantil com água fresca enquanto observava a mata. Foi quando viu, do outro lado do rio, uma trilha de pequenos galhos quebrados e folhas amaçadas sobre o terreno úmido. A caçadora atravessou a água sobre as pedras salientes e se abaixou para observar os rastros, não havia pegadas, apenas uma linha reta que rasgava o chão.

Que tipo de criatura era aquela? Shauna não imaginava que sua dúvida seria sanada tão rapidamente. Ouviu o farfalhar das folhas seguido por um brilho esverdeado. Vayne rolou para o lado, desviando por pouco da lâmina em forma de foice; havia uma corrente de elos grossos na continuação da arma, que recebeu um puxam, fazendo a foice retornar e rasgar o couro da vestimenta da caçadora. Um filete de sangue surgiu do corte, na altura da panturrilha, mas nada que prejudicasse a movimentação.

— Ora, ora. O que temos aqui? - disse a voz tenebrosa, com uma vibração que parecia vir do além. - Uma caçadora?

Apesar de ser a primeira vez que Vayne se deparava com aquela criatura, sabia dizer que se tratava de um dos espectros das Ilhas das Sombras. Macabramente feito apenas de ossos, com o corpo envolto por uma luminosidade esverdeada que não se sabia ao certo de onde vinha. Certamente não era o tipo de presa da caçadora noturna.

— Uma demaciana - constatou a criatura, observando o símbolo na bota da mulher – tenho um velho conhecido em Demacia.

— O Guardião das Correntes... - a caçadora reconheceu pela lanterna, repleta de almas que serpenteavam sem conseguir sair.

— Prazer, Thresh - apresentou-se o grande espectro, fazendo uma reverencia. - Será um prazer tornar-te parte de minha humilde coleção.

Lançou novamente a foice, Vayne desviou o trajeto da lâmina batendo com a pequena besta acoplada no braço direito. Rolou para o lado e atirou um dardo de prata na direção, mas o projetil varou o espectro como se fosse feito de fumaça. Thresh riu, exageradamente, e voltou a atacar.

Shauna se viu forçada a recuar, não sabia lidar com aquele tipo de aberração. Correu entre as árvores, ganhando certa distância do ceifador que caminhava lentamente. Escorou-se no tronco de um carvalho antigo, engatilhou a balestra que carregava nas costas e esperou pelo ataque.

Pela direita veio a lanterna tentando um golpe na cabeça, pela esquerda a foice tentou esfolar suas pernas. Mas a caçadora agilmente saltou entre as correntes, acertando o meio dos elos com um dardo gigante. Thresh ficou preso à arvore, gritando de raiva. Vayne aproveitou a oportunidade para fugir e cuidar do ferimento na perna.

***

— Thresh está aqui? Por quê?! - Lucian ficou agitado.

— Não sei, não tive tempo de perguntar, ele não parecia muito a fim de bater um papo - Vayne respondeu sarcástica. - E o que foi que te deixou assim?

— Uma súcubos - Lucian fez uma de suas carrancas. - Acho que se chamava Evelynn.

Os olhos frios da caçadora noturna brilharam com o reflexo da luz da lua.

— Em qual direção?

Lucian apontou para o sul - E meu velho “amigo”?

— Setecentos metros ao norte. - Shauna estava pronta para partir - bom expurgo, Lucian.

— Boa perseguição, Vayne - o purificador também partiu.

A caçada iniciou-se em direções opostas, inimigos distintos, mas o mesmo propósito: eliminar a imundice do mundo.

Vayne seguiu para o sul, na direção do mar. Ao ouvir o som das ondas se chocando na costa parou, e olhou para cima. Já devia ser quase meia noite, pois a lua cheia brilhava enorme, bem ao centro do céu estrelado. De repente o cheiro de fumaça a alertou, seguiu colina acima até chegar em um casebre em chamas.

A criatura das trevas lambia as garras ensanguentadas, enquanto repousava sentada sobre os corpos de um casal de fazendeiros. Sem pensar, Vayne puxou o gatilho da besta, soltando uma sequência de dardos prateados. A Súcubos desviou-os com seus açoites pontiagudos e riu.

— Ora, ora... Se não é a minha órfã preferida.

— Logo também serei seu fim – Vayne avançou como um gato selvagem, os olhos cheios de ódio e desejo de vingança.

Evelynn envolveu-se em sombra e correu para a floresta. Deixando marcas nas cascas das árvores, formas obscenas desenhadas no solo úmido e risadas pretenciosas que reverberavam pelo silêncio da calada da noite. Shauna escondeu-se em um arbusto e esperou. Ouviu o farfalhar das folhas atrás de si, seguido por uma rajada de espinho que brotavam do chão. Rolou para o lado e atirou na diagonal, acertando a orelha esquerda da criatura sombria.

Vaca!— Evelynn lançou-se sobre a caçadora, acertando-a com as garras na barriga.

Vayne contraiu o abdômen ao receber o golpe, e antes que pudesse receber outro, chutou a súcubos no queixo. A caçadora se arrastou para longe, rolando para dentro de uma valeta cheia de folhas, pegou um frasco de vidro que carregava na pequena bolsa presa à cintura, e despejou o líquido sobre o ferimento. Trincou os dentes para não gritar de dor, o remédio efervesceu, estancando o sangramento.

Evelynn cambaleava sob a copa das árvores, desnorteada com o golpe certeiro. Cuspiu o sangue que lhe enchia a boca e coloria os lábios, um dente caiu junto com o líquido espesso e a criatura gritou de raiva.

— Você vai me pagar! Sua caçadorazinha de merda! - A sombras arroxeadas oscilavam em torno de seu corpo. - Já te contei que seus pais choraram enquanto davam o último suspiro?

Cala essa boca rançosa, sua imunda! - Vayne vociferou.

Um dardo silvou pela floresta, acertando a clavícula direita de Evelynn. Ela tentou remover o projétil, mas a prata imbuída na arma queimava-a o corpo como ferro quente. Usou a ponta dos açoites para tirar o dardo, mas mesmo assim o buraco deixado ainda ardia como fogo. Viu a caçadora correndo entre os troncos de carvalho, envolveu-se em sombras e saltou como um animal. Seus olhos faiscavam em um rosa vívido, as presas e garras brilhando como pérolas recém polidas.

Vayne mantinha a distância, desviando das investidas da súcubos, lançando dardos de prata que eram desviados pelos chicotes medonhos. A perseguição durou até que ambas estivessem exaustas. Evelynn parou subitamente, com dois dardos fincados na coxa direita e um no braço esquerdo.

Shauna aproximou-se cuidadosamente, engatilhando a besta gigante que carregava nas costas. Seria o tiro final. Ludibriada com a tão esperada vingança, não percebeu o chicote escondido sobre as folhas podres. Evelynn a derrubou com uma rasteira e enlaçou-a pelo pescoço. A caçadora deixou a arma cair aos pés, contorcendo-se na vã tentativa de se livrar do aperto.

O demônio começou a açoitar o corpo da jovem caçadora, deixando sua roupa de couro em farrapos. A pele agora exposta, era marcada por chicotadas que esfolavam a carne. Por fim desenhou uma linha reta com a lâmina, do peito até o umbigo, fazendo o sangue rubro tracejar um belo e sinuoso rio vermelho.

Vayne já não tinha mais forças para lutar. Erguida do chão, começou a sufocar sem o apoio dos pés para sustentar o peso do corpo.

— Fica tranquila, querida. Já vai ver eles... - Eve debochou.

Aquelas palavras foram como um estopim para o ódio mais profundo que Shauna Vayne nutria. Sua mente foi invadida por lembranças dos dias felizes que havia vivido com seus pais em Demacia, até que a última lembrança deles a despedaçasse. Caídos sobre o chão numa grande poça do próprio sangue, estripados e degolados. E sobre os corpos já sem vida, o demônio da luxuria ria da agonia no rosto da jovem órfã.

Você tirou tudo de mim, Demônio! Agora eu vou me vingar!

Vayne puxou um dos frascos da bolsa e quebrou-o sobre os olhos de Evelynn. A criatura gritou em sofrimento, soltando a caçadora que, aproveitando a última oportunidade que teria, pegou a arma engatilhada e atirou. O dardo pesado atingiu em cheio o coração da feiticeira das trevas, empalando-a em um majestoso carvalho.

— Então isso... É... A dor? - As últimas palavras de Evelynn saíram como um sussurro ao vento.

***

Lucian seguiu para o norte. Passou por árvores esfoladas e vegetação ceifada até chegar ao pequeno riacho. Os rastros deixados por Thresh ainda podiam ser vistos, assim como a árvore destroçado a qual estava preso pouco tempo atrás.

Olha quem chegou?— A voz medonha rindo por entre as folhas.

Eu vou te matar!— Lucian sacou as pistolas. - Vou te assistir morrendo!

— E vai destrui-la também? — Thresh riu, erguendo a lanterna onde mantinha presa a noiva do sentinela. - Onde foi a caçadora? Queria me divertir mais com ela.

— Foi cuidar de outra aberração, de você cuido eu.

Lucian soltou uma sequência de disparos rápidos, Thresh usou a foice como alavanca para desviar dos tiros, deu a volta por trás do atirador, arremessando a lâmina em sua direção. Lucian deu um salto para o lado e desferiu um feixe de luz purificadora que se espalhou pela floresta.

O Guardião soltou a lanterna, criando uma barreira fantasmagórica em torno de si e puxou a corrente atada a foice. Os elos de metal atingiram a têmpora do purificador, atordoando o por alguns segundos.

— Isso tudo é saudade de sua amada? - Thresh zombava enquanto criava uma parede pentagonal com energia sombria.

Ergueu o atirador pelo pescoço, perjurando-lhe a pele com as garras.

— Logo você se reunirá aquela desgraçada.

— Não ouse falar dela! - Lucian vociferou. Colocou as duas pistolas na direção da lanterna do Guardião e disparou um raio de luz perfurante. O objeto explodiu em uma onda de neblina esverdeada, lançando os dois para trás.

As almas antes aprisionadas rodopiavam freneticamente tentando se livrar da névoa.

— Minha coleção! - Thresh recolheu a lanterna, prendendo novamente aqueles que não conseguiram fugir a tempo. - Você me paga!

Assim que tentou acertar Lucian com a foice, a arma chocou-se contra uma parede de luz cálida. Senna havia conseguido escapar da prisão espectral, defendendo seu amado com um escudo luminescente.

— Senna... - Lucian fraquejou sobre os joelhos.

Thresh hesitou, analisou por um segundo a situação e decidiu recuar, sumindo em meio as sombras. Senna largou a gigantesca arma no chão e correu para os braços de seu amado. Lucian era conhecido pela frieza e falta de emoção, mas naquele momento lágrimas incontroláveis escorriam por seu rosto. Voltaram para casa sem concluir a caçada daquele dia, todavia, cheios de coragem e obstinação. Pois os últimos sentinelas da luz, estavam unidos novamente.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.