5000 Zennys

Capítulo Único


Drent era um bom trabalhador. Ahh era, sim senhor. Manejava o machado desde os dez, e nenhum dos funcionários de qualquer uma das madeireiras de Hugel fazia um serviço melhor do que ele. Seus turnos semanais, porém, não eram o suficiente para pagar a comida de sua família e as contas da casa. O jeito era pegar bicos nos finais de semana.

Todos o chamavam de O Grande, tendo em vista seu porte físico avantajado. Mesmo não tendo mais do que trinta verões, seus serviços eram famosos na cidade, e muitos preferiam contratá-lo para pequenos trabalhos, dispensando até mesmo ofertas de outros lenhadores mais vividos. Afinal, ele era um bom trabalhador, era, sim senhor. A atividade daquele sábado consistia em trazer quatro grandes toras de madeira para o casarão do Sr. Paul, o dono da mais famosa casa de Corrida de Monstros de Hugel.

— Ahh, aí está você, Grande! — Da porta de sua mansão, o magrelo Mercador agitava a mão para o homem. Raquítico e cheio de neuras, Paul adquirira uma tremedeira constante devido ao nervosismo que sempre antecedia as Corridas de Monstros administradas por sua Casa. Já eram dez horas da manhã, mas ele ainda estava de roupão e chinelas — Acredite, você salvou a minha pele. Estou adicionando mais um páreo para a corrida, mas os pedreiros acabaram usando madeira demais... — O homenzinho minúsculo continuou falando e gesticulando por mais alguns minutos, e levou com muita dificuldade a carriola com as toras para a varanda. Drent já se acostumara com isso. Para ele, todos pareciam minúsculos e fracos demais.

— Vai ser o preço combinado, então? — Perguntou O Grande, com sua voz mansa.

— É claro. — Respondeu Paul, voltando com seus passinhos apressados – Já até falei pra Dalva tirar todas as suas dívidas da nossa venda. Mais uma vez, obrigado, Grande. É sempre bom contar contigo. Tome aqui — E entregou um saquinho marrom cheio de moedas — Deve ter uns 5 mil Zennys aí dentro. Compre um doce aos seus pequenos. — Com a mesma rapidez que veio, o homenzinho se enfiou no impecável casarão, e Drent seguiu seu caminho de volta para casa.

Enquanto andava, O Grande pegou o saquinho e o examinou, rolando-o entre os espessos nós de seus dedos de lenhador. Era tão pequeno que cabia na palma de sua mão. Estava enrolado com um fiapo de palha, para evitar que alguma moeda atrevida quisesse sentir o gosto da liberdade antes da hora decidida por seu dono. Drent sorriu, e amarrou o saquinho em sua cintura.

O sol quase atingia o seu apogeu, e O Grande estava a apenas dois quarteirões do conforto do seu lar, quando uma figura escura aproximou-se sorrateiramente. Antes que ele pudesse reagir, sentiu um golpe firme logo acima de sua coxa, bem onde ele pendurara o dinheiro. Tentou segurar o ladrão, mas ele era esguio. Para piorar, O Grande tinha destreza apenas no manejo do machado; em todo o resto, era lento e desastrado. Depois de agarrar o vento pela segunda vez, levantou o rosto e viu a figura correndo. O batedor de carteiras tinha muitos metros de vantagem, e ele era rápido. Entre suspiros indignados, O Grande desistiu de persegui-lo.

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Fabius sorria, correndo com todas as suas forças daquele gigante assustador. Suas mãos ainda tremiam, mas ele não sentia medo. Era a falta. A primeira vez que experimentou, há cinco meses, ele nunca imaginara que chegaria àquele ponto. Era uma nova linha de Analgésicos no mercado, muito fortes, que tinham algumas substâncias novas. Ele não sabia ao certo o que era, mas aquilo o deixava muito bem, e ele simplesmente não conseguia passar um dia sem tomar alguma dose. Pelo menos, não até a tremedeira começar.

Ele sabia que o que estava fazendo era errado, e preferiria não roubar. Crescera nas ruas, e sempre lembrava dos ensinamentos de sua mãe. Não é porque não temos nada que podemos roubar o que é dos outros, ela sempre dizia. Mas ela não estava mais ali para reprimi-lo. Fugira de Hugel com o primeiro Bardo que a deu atenção e promessas de uma vida minimamente decente, e nunca mais deu as caras.

Isso não importava mais. A droga o chamava, e sua voz era sedutora, prazerosa, quase tão boa quanto a sensação que ela deixava em seu corpo por alguns minutos. A farmácia do Julian estava próxima. Ele era o único que aceitava vender a medicação sem indicação dos Sacerdotes.

O saquinho marrom balançava descontrolado no bolso do batedor de carteiras.

— M-M-Me d-dá tudo isso em Analg-gésicos. — Gaguejou Fabius, sem nem olhar para o Alquimista. Julian pegou a sacolinha, contou seu conteúdo e entregou quatro garrafas pequenas do medicamento, que o viciado pegou e saiu sem nem ao mesmo receber o troco.

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— Ai, ai... — Suspirou o farmacêutico, passando o saquinho de uma mão para a outra – Acho que hoje vai ter festa – Não sentia culpa alguma em alimentar o vício dos outros. Eles que tentem se curar, só estou fazendo o meu trabalho.

O período da manhã fora movimentado. Meia hora antes de Fabius chegar, um cliente de fora da cidade pediu um carregamento de Aloe Vera. Foi uma ótima venda.

O saquinho ficou esquecido na parte de baixo do balcão da farmácia até as onze da noite, quando Julian saiu para a sua “festa”, por assim dizer. O pequeno e apertado bordel ficava num bairro não muito bem conceituado da cidade. Foi bem recepcionado como o cliente fervoroso que era.

Depois da noite de libertinagem, o farmacêutico observava a musa nua ao seu lado, que brincava com a sacolinha de dinheiro.

— Achei uma beleza. — Disse ela, com um sorriso provocante.

— O que? — Perguntou Julian — Minha companhia ou o saquinho? — A mulher soltou uma gargalhada, e o abraçou.

— Ambas as coisas. — Depois de um beijo longo, perguntou — Posso ficar com isso? — O Alquimista cedeu sem pestanejar, e, ao espiar o relógio na parede, começou a se arrumar depressa. Já se passavam das duas. Saiu do quarto, e foi ter com Madame Glória, a mestra das garotas. Pagou a quantia de sempre, e saiu para a noite.

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Não fora de todo mal com Julius. Aquele farmacêutico sabia como tratar uma mulher, pelo menos. Depois de dormir um pouco Layla arrumou-se e saiu daquele cafofo imundo. Estava bem cedo, o sol ainda não havia nascido, mas a quitanda já estava aberta.

Madame Glória era uma megera. Pegava metade de tudo o que arrecadavam, e as meninas só recebiam na segunda. Até lá, se o dinheiro acabasse, elas tinham que se virar como podiam. Aquele saquinho de dinheiro veio a calhar. Já era domingo, e quase tudo faltava em sua casa.

— Minha linda! — Exclamou o vendedor gorducho Hick, de braços abertos. Sua cabeleira encaracolada balançando de um lado para o outro enquanto ele se aproximava do balcão. — No que posso te ajudar?

— Passa fora, que esse teu caminhãozinho não aguenta toda essa areia não! — Respondeu Layla, com uma risada. Os dois eram amigos de infância, e desde aqueles tempos, Hick dava as piores cantadas que ela já ouvira em sua vida. — Arranjei uns trocados. Me vê meia dúzia de pães, dois litros de leite, cinco ovos e três sacos da farinha mais barata que tu tiver.

— Três sacos? Pra que tudo isso?

— Quieto, homem! Sou eu que estou comprando, não é? — Com um dar-de-ombros, Hick entrou no armazém para buscar os itens. Era contra as regras pegar dinheiro dos clientes sem antes passar por Madame Glória, e os sacos de farinha serviriam para tampar o armário da cozinha. As outras meninas já testemunharam Glória abrindo porta por porta nos finais de semana. Se ela achasse algo de valioso, para ela significava que lhe estavam roubando, e o maior escândalo se formava. O resultado era sempre o mesmo: uma ou duas mulheres desabrigadas.

— Tá aqui, lindeza. — Disse o vendedor, entregando duas sacolas de produtos — Oito mil e oitocentos Zennys. — Layla torceu o nariz, abriu a sacolinha marrom, contou o dinheiro novamente, e suspirou.

— Tenho só cinco mil...

— Não te preocupa. — Apontou para o saquinho — Me dá esse pedaço de pano também, que te faço por cinco mil. — Layla abriu o maior sorriso que Hick já vira e entregou o dinheiro e a sacolinha antes que ele mudasse de ideia. Juntando suas compras, ela abraçou seu amigo com ternura e o beijou na bochecha, saindo da pequena mercearia logo depois. O vendedor gorducho ficou ali parado por pelo menos um minuto, com um riso bobo na cara.

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Hick nunca tivera muita sorte na vida. Quando criança, sempre havia algum motivo para ser caçoado: ou era seu peso, ou seu cabelo, ou sua personalidade irritantemente risonha e brincalhona. Isso, porém, não era o que mais lhe incomodava. Desde que conseguia se lembrar, o dinheiro não parava em suas mãos. Ele e Layla foram pobres desde pequenos, e até então nenhum dos dois havia conseguido fugir completamente da miséria. Mas isso não importava. Seguiam a vida como podiam, sempre se ajudando.

Algum tempo depois de Layla sair de sua venda, Hick decidiu ir completar o estoque de suprimentos na feira. Lá, os preços eram muito bons, principalmente os de peixe e frutos do mar. Usando um cadeado e um pequeno feitiço que aprendera com um amigo Sábio, fechou a mercearia e saiu para uma Hugel que já não dormia, mas que também não estava inteiramente acordada.

Fazendo as contas por cima, achou que poderia comprar duas sacas de peixe. Aproveitou o fio de palha que prendia a boca da bolsinha, e fez um nó firme em seu cinto.

Seguiu pelo caminho mais curto, ou não conseguiria pegar a remessa mais fresca do pescado. Essa trilha, contudo, era famosa por ser um ninho de criminosos locais, e Hick, amedrontado, apertou o passo. Quinze minutos depois ele chegou à grande feira, e, ao botar a mão no cinto, procurando a sacolinha de Zennys, sentiu que a sorte lhe havia aplicado outro golpe. O dinheiro se fora, apenas o fio de palha permanecera, amarrado firmemente à sua cintura.

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Entreaberto, o saquinho jazia na vizinhança perigosa e hostil. Permaneceu ali por horas a fio, até que Zach, um bêbado famoso das redondezas, literalmente tropeçou no dinheiro.

— Olha só! — Zach estava deslumbrado – Acho que posso beber mais um pouco. — Deu meia-volta e voltou ao bar que havia acabado de sair.

O Canto do Bardo Canário era um estabelecimento tradicional da periferia de Hugel. Não faltavam bebidas baratas, comidas ruins preparadas alguns dias antes e requentadas especialmente para o momento, e a ocasional briga que acabava envolvendo a todos os presentes. A própria definição de perfeição.

E pra completar, o proprietário e administrador do estabelecimento fazia questão de servir pessoalmente sua clientela, o que aumentava ainda mais o charme do lugar. Zach entrou, aconchegou-se num banquinho e pediu mais cerveja.

— Ué, Zequinha — Provocava Humberto, que tinha uma rixa antiga com o outro — Você não tava limpo até agora há pouco? O que aconteceu?

— Nem vem, Betinho. E tu bem sabe que não gosto que me chamem assim.

— Pois te digo o mesmo. Não sou Beto. Sou Hum... — Um arroto descomunal, que chacoalhou diversas mesas próximas e atraiu os olhares de todos —...berto. — Por um breve instante, o bar permaneceu em completo silêncio, até o momento em que todos caíram na gargalhada ao mesmo tempo, num rugido uníssono e indistinto de gritos, uivos, e mãos batendo em mesas e cadeiras em meio a risadas histéricas. Até mesmo Zach riu um pouco.

Pelo menos até Humberto lhe socar a cara com toda a força e arremessá-lo de seu banquinho.

Atordoado, o outro revidou, mas sem querer acertou um casal que ainda se recuperava do riso inesperado, e logo se formou a confusão.

O dinheiro se perdeu no primeiro murro. Como não havia mais o fiapo de palha para segurar o saquinho fechado, moedas voaram para todos os lados, e aqueles que não entraram na briga abaixaram-se para recolher os Zennys que tilintavam no chão.

— Que horror! — Exclamou um viajante, após receber uma bofetada no olho direito. Para fugir da algazarra, agachou-se do lado de dentro do balcão. Para a sua surpresa, o barman também estava escondido ali. Ainda abaixado, ele recolhia calmamente os copos para longe da algazarra, evitando que fossem destruídos.

— Você não é daqui, certo? — Perguntou o dono do bar, com um sorriso levado. O viajante nem precisou responder, sua expressão de completo terror já era mais que suficiente. O velho barman riu com gosto, mostrando alguns dentes de ouro e prata que compensavam os vários outros que lhe faltavam. — Não se preocupe, logo acaba. É sempre assim: discutem, brigam, quase se matam, mas no outro dia estão bebendo juntos de novo.

— Vou-me embora daqui, ficar nessa cidade é loucura! — O barman gargalhou de novo. Terminando com os copos, tentou salvar uma garrafa de rum barato que havia milagrosamente sobrevivido à confusão, mas um dos combatentes foi mais rápido e a agarrou antes, arremessando-a com destreza através do bar e acertando em cheio a cabeça de algum azarado que tentava fugir. Suspirando, o velho deu algumas palmadas de consolo nas costas do viajante e disse:

— Pode até ir, mas pelo menos visite uma das Corridas de Monstros daqui. É a maior atração turística de Hugel. Às vezes você pode até dar sorte e ganhar uma bolada. — O rosto do viajante se iluminou por um momento, mas logo se contraiu novamente. Seu olho estava dolorido, e já começava a inchar – Vamos lá para dentro, vou colocar gelo nessa tua pancada.

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Domingo, quinze para as duas da tarde. Hora santa. A corrida de monstros começaria em apenas quinze minutos. Um evento que envolvia praticamente toda a cidade, direta ou indiretamente. O Sr. Paul estava na bilheteria. As arquibancadas, lotadas. Cinco minutos antes de fecharem as apostas, um grupo de beberrões chegou, tendo cada um deles apostado em seu preferido. Restou esquecido apenas o novo Peco Peco, por motivos óbvios. Ninguém apostava em animal novo, e com razão: os pobres coitados não estavam acostumados às corridas e acabavam empacando, assustando-se por qualquer coisa.

Os bêbados arrumaram um lugar nas arquibancadas abarrotadas de apostadores, e esperaram. Faltavam só três minutos. Dois. Sessenta segundos. Paul engoliu em seco. Suas mãos já tremiam antes mesmo das apostas começarem, algumas horas antes; naquele momento, ele mal conseguia raciocinar direito. Para se distrair, passou a colocar todo o dinheiro que os bebuns pagaram dentro de uma sacolinha que eles também haviam deixado em cima da mesa.

Seu lucro sempre estava em jogo, pois ele também participava das apostas por fora, com contatos clandestinos. Sendo o dono da Casa de Corridas, ele manipulava os treinamentos e a alimentação dos monstros de modo que um deles tivesse melhores condições de ganhar. A aposta era quase sempre certa, e os resultados daquela semana dependiam da vitória do Pesadelo.

O suor frio escorria por suas costas, suas têmporas latejavam intensamente, suas mãos tremiam como se Loki tivesse descido à Rune-Midgard e ordenado sua cabeça numa bandeja de prata. Quando parecia que a tensão não podia piorar, o Justiceiro atirou para cima e os monstros foram soltos no páreo.

O público foi à loucura. A cada vez que ocorria uma ultrapassagem, uma parte da arquibancada rugia de alegria, enquanto que outra vaiava em desaprovação e desespero.

Após boa parte do percurso, estava praticamente decidido: o Pesadelo tinha pelo menos cinco metros de vantagem do segundo colocado. Os bebuns urravam e pulavam, e pouco antes do monstro cruzar a linha de chegada, um estouro soou na parte direita do pátio. Um estrondo diferente de gritos de torcida. Paul arrepiou-se ainda mais quando viu que a parte da arquibancada onde os bêbados estavam não suportou o peso, e desabou.

Todos os outros monstros já estavam bem à frente. Porém havia o Peco Peco, último colocado, assustado, sem entender o que ocorria à sua volta. No momento em que a arquibancada de madeira ruiu ao seu lado, foi a gota d’água – desesperado, disparou num delírio irracional pelo páreo, com medo de ser atingido pela madeira que voava com o desabamento. Ultrapassou a todos, até mesmo o Pesadelo, e chegou em primeiro.

O público estava boquiaberto, nunca isso havia acontecido antes. Apenas uma pessoa gritava, pulava e dançava: um homem com roupas estranhas, não parecia ser da cidade. Ele tinha o olho direito roxo, talvez tivesse levado um golpe recentemente, mas isso não importava. Ele só gritava:

— Eu ganhei! Estou rico! Eu ganhei!

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Quatro horas da tarde, a poeira já havia baixado. Duas pessoas levemente feridas, metade das arquibancadas da direita inutilizadas, e um rombo de sete milhões de Zennys no orçamento do Sr. Paul. Aquele viajante realmente fora sortudo.

O dono das corridas estava em seu quarto, massageando as têmporas. Desde quando a corrida havia se iniciado, Paul não largara a sacolinha de Zennys, só tendo se dado conta disso naquele momento. Achou-a familiar, de alguma forma. Quando a dor de cabeça melhorou, decidiu arrumar as coisas. Arrancou um fiapo de palha de um saco de rações de monstros e amarrou o saquinho.

— Ei, Dalva, venha cá! — A criada chegou momentos depois. – Preciso arrumar aquelas arquibancadas. — Olhou para o saquinho por alguns instantes, e completou — Estou precisando de madeira. Chame O Grande, diga que pago adiantado.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.