"E apesar de todas as coisas que eu já fiz eu acho que te amo melhor agora, estou escondido, perdi a cabeça, eu farei qualquer coisa por você na hora que precisar e te manterei protegida da tempestade que está soprando agora."

— Edinho Sheeran My Preciosous

A primeira coisa que Ana sempre odiou em hospitais era o cheiro. Desinfetante puro, química de limpeza, era como se alguém estivesse morrendo. Talvez pelo fato de Ana ter estado a beira da morte todas as vezes que entrou em um, ou alguém realmente estar morrendo.

Ela deixou se jogar numa das cadeiras da sala de emergência, encarando a janela para nao ter de olhar para ninguém, permanecendo ao lado de Grace que chorava de uma forma que fazia a morena ter o coração mais do que apertado. Ou fosse apenas seu coração que estivesse apertado por si só. Ela não havia parado para pensar, sequer se concentrava em seus pensamentos, a tensão no ar já era o suficiente para fazê-la desligar de tudo em si.

Christian estava na mesa de uma cirurgia.

Era isso.

Ele nunca havia sequer quebrado algum osso, nunca esteve em uma maca de hospital, só via médicos por rotinas em uma clínica. Nunca houve nada errado.

Mas agora ele estava nunca mesa de cirurgia.

Um acidente de carro que não parava de passar na tela da TV do Hospital Geral de Seattle, o audi R8 completamente detonado depois de colidir com um caminhão em alta velocidade.

— Eu vou comprar um café, alguém aceita? - Elliot se pronunciou, levantando-se.

Algumas cabeças confirmaram. Ana continuou encarando a janela.

Ela tinha total consciência do mundo ao seu lado, mas de alguma forma, era como se ela não estivesse fazendo parte dele naquele momento, como um expectador ao longe.

Ela queria explodir, mas só ficou parada, em silêncio.

— Dr. Grace - alguém falou, e foi o aval para fazer todos se virarem.

Era o Dr. Hanrri, amigo de trabalho de Grace, segundo a enfermeira de cabelo curto, ele quem estava operando Christian. Ana o conhecia, ele era um de seus médicos.

— Hanrri, finalmente. Como está o meu filho? - Grace questionou chorosa.

Só então Ana percebeu como Elena estava agarrada a Grace, segurava sua mão e tinha um dos braços ao redor de seus ombros, como se dividisse a dor que ela sentia.

Ana suspirou e se concentrou em prestar atenção no médico.

— O impacto, felizmente, não atingiu nenhum orgão vital de Christian.

— Graças a Deus - Grace sussurrou, Carrick ao seu lado.

— Duas costelas quebradas e uma perfuração no lado direito intercostal, ainda assim nao atingiu uma arteria e nada hemorragia. Podemos chamar de sorte ou milagre, ele está estável e se recuperando muito bem.

O coração de Ana deu um baque de 360°, como se respirasse fundo para então voltar a bater normalmente.

— Obrigada - Grace agradeceu e Mia soluçou novamente. - Eu posso vê-lo?

— Eu quero vê-lo! - Mia falou junto.

— Um de cada vez por alguns minutos, já passamos do horário de visitas - Dr. Hanrri murmurou, dando uma piscadinha para Grace, que lho sorriu pequeno antes de virar para abraçar Elena.

Ana se levantou, dando uma passo em direção a portas, pensando em respirar um pouco de ar puro, ou só ficar sozinha com seus pensamentos, mas pareceu outra coisa para os demais.

— Você vai primeiro? - Mia questionou.

Ana se virou.

— O quê? - murmurou.

— Ver o Christian - Grace respondeu. - Você quer ir primeiro, querida? Sem problema algum. Eu sei como ficaram amigos nas últimas semanas.

Ana mordeu o lábio inferior, e segurou a barra da blusa, numa mania nervosa que tinha.

— A gente espera, relaxa - Mia sorriu sincera e voltou a se sentar na cadeira junto a Ethan.

— Vamos, é por aqui - a enfermeira de cabelo curto falou, indicando o corredor.

Ana mirou os outros, todos em expectativas, na boa vontade de deixá-la ir primeiro depois de horas e horas esperando uma notícia sequer. Ela não podia dizer não... ela nem queria dizer não.

— Claro, vamos - ela respondeu, seguindo a moça.

Era frio, como sempre era, os corredores de um hospital. Ela parou numa porta e a enfermeira a abriu, mostrando a cama hospitalar diretamente.

A segunda coisa que Ana sempre odiou em hospitais era a possibilidade de algum dia ter de ir a um por causa de uma pessoa que ama.

Ela não amava Christian. Era forte demais dizer isso mesmo que ela tenha acabado de enlouquecer nas ultimas horas. Mas havia algum sentimento ali, você nao pira por alguém que odeia.

Putz, ela nem mesmo odiava ele de verdade!

— Vou te dar mais privacidade, qualquer coisa é só chamar - disse a enfermeira, antes de fechar a porta atrás de Ana.

A morena engoliu em seco e se aproximou.

Não era tão ruim quanto ela imaginou.

Talvez o tubo de respiração fosse um pouco assustador, mas somente o que se via era um arranhao no lado superior direito da testa, havia também um curativo grande no braço direito e alguns arranhões vivos, o lugar da cirurgia estava tampado, e mesmo de perto, tudo estava perfeito nele.

O bipe do coração era calmo e cadenciado, ele estava bem.

Seu mundo desabou um pouco, mas ela se segurou, sentindo o baque pesado que era horas de um coração apertado voltando a bater normalmente. Soltou o ar pela boca, engolindo em seco em seguida, sentindo os olhos arderem com as lágrimas.

Ela apenas se sentou na cadeira ao lado da cama, bem ali, segurando sua mão um pouco fria, mirando seu peito subir e descer... era como se o mundo todo tivesse ficado em silêncio.

— É tão estranho como as coisas acontece rápido - ela sussurrou, sabendo bem como ele não escutaria e era a única forma dela desabafar. - Eu te odiava e agora to aqui, quase onze da noite num hospital em vez de estar na minha cama vendo série - revirou os olhos. - Sua mãe nos chamou de amigos hoje, tem noção? Nós somos amigos? Eu nem sei responder isso, e é estranha qualquer resposta que eu pense em dizer, talvez quando você acordar possamos resolver isso. Só sei que eu... me apeguei a você, de uma forma que eu jamais imaginei que poderia acontecer, ainda mais depois de tudo, ainda mais com você. Mas agora eu passo os dias sentindo sua falta, eu fiquei brava por não ter me contado sobre Carla, vou sentir muita falta de você, sei que nossa amizade não vai acabar e a tendência é só crescer, mas senti saudade de ficar olhando esses seus olhos perfeitos - ela bufou na ultima palavra - enquanto disserta sobre como estava certo em não me contar - ela limpou uma lágrima que escorreu por sua bochecha. -Você de repente se tornou uma pessoa que eu... meio que gosto um pouquinho. Eu te odiei por tanto tempo, sentia tanta raiva que nunca sequer me permiti pensar que você poderia se arrepender, que pudesse mudar - ela suspirou, fungando um seguida, limpando as lágrimas com a mão livre. - Acho que eu nunca te conheci de verdade, nunca fomos amigos para eu poder te conhecer. Eu tinha uma visão tão errada de você, e eu cresci com isso. Mas aí eu cheguei aqui e você parece... parece um cara dos livros que eu leio. Não estava preparada para isso, sabe? Você me desmontou e agora está querendo montar de volta - ela riu sem humor. - Eu sei o que você está fazendo, Christian, eu finjo que não, mas eu sei. E está funcionando. Você faz meu coração acelerar, já me deixou até com ciúmes por motivos super bobos, você... você mexe comigo - ela bufou com a própria constatação, sem ao menos perceber, com a mão livre acariciando seu cabelo. - É muito mais complexo que eu imaginava, mais intenso do que eu pensava. Eu sei que não é meu costume dizer isso, mas eu não odeio a situação, nem odeio você. Talvez eu nunca te diga isso enquanto você puder me escutar, mas eu não odeio. Não o tempo todo pelo menos. Tipo agora, bem nesse momento... - ela se aproximou totalmente, deixando os lábios bem perto de sua testa, tirando o cabelo do caminho - eu quase amo você - declarou depois de deixar um beijo singelo.

Uma batida na porta foi sua deixa para se levantar, sabia que precisava dar lugar a outra pessoa, outro familiar que... amava Christian.

Limpou o rosto e usou a manga do casaco para disfarçar o rosto vermelho, saindo do quarto logo em seguida.

Não foi difícil dizer que Ana nao dormiu aquela noite, e as 6h ela ja estava de pé. Não sabia necessariamente para o que, mas ela estava com uma calça jeans, tenis e moletom. O cabelo havia sido penteado finalmente e ela até havia passado um blush nas bochechas para disfarçar a palidez que lhe atingia a cada vez mais.

Estava piorando, a cada dia, a cada minuto a mais era como um sopro difícil que saía de seus pulmões.

Mas não havia nada sobre transplantes em seus planos, só mais reposição de leucócitos e cada vez mais plaquetas. Logo seu corpo pararia de produzir o pouco que produzia, pararia de aceitar algo que não foi feito por si e pararia. O seu tempo estava correndo, e ela parecia tão bem que chegava a ser mórbido.

O acidente de Christian meio que havia mudado o rumo das coisas, tudo parecia girar ao redor dele de repente. Mas aí Ana acordou num dia ruim e até Elena segurou seu cabelo enquanto a garota forçava o pouco que comera na noite anterior para fora de seu estômago.

Mas de qualquer forma, Ana saiu, ela fora com Mia até o HGS com a desculpa de que só iria acompanhar Mia na visita a Christian, tentando disfarçar a ansiedade estranha que tomava seu corpo.

— Está um dia tão bonito, como se o universo entendesse que hoje é véspera de ano novo. Sabia que o Dr. Hanrri disse que devido as exames de Christian ontem a noite, ele pode ir par casa hoje? Absoluto repouso, mas vai poder estar com a gente na virada do ano...

Ana continuou balançando a cabeça e concordando com tudo que Mia dizia, nao tendo muito o que dizer, mas prestando atenção em cada frase.

Diferente da última vez que o vira, há três dias, Christian estava de pé quando Ana entrou com Mia no quarto 309 do terceiro andar.

— Nem parece foi amassado num carro há alguns dias - foi a primeira coisa que Ana disse ao vê-lo sendo avaliado por Grace e o Dr. Hanrri.

Christian virou o rosto para encará-la e lhe deu uma piscadinha.

Eles não haviam se visto, mas Ana meio que havia trocado mensagens com ele.

Trocado mensagens com Christian Grey. Até chegou a mandar suas figurinhas do whatsapp. Onde eles iriam parar?

— Ana! - Grace a repreendeu com carinho.

A morena levantou as mãos em rendição.

— Foi mal, eu esqueci que agora ele é o queridinho - ela resmungou mal humorada. - Não esqueça que eu estou morrendo, logo ele vai ficar bem.

Fora uma poiada de humor muuuito negro, a qual Christian teve de segurar uma risada, Mia cruzou os braços bufando e Grace balançou a cabeça em descrença enquanto sussurrava algo como "que Deus nao esteja te escutando".

De qualquer forma, Ana se aproximou mais, cumprimentando o Dr. Hanrri, que pareceu de uma hora para a outra ter paralisado como o Chaves, e seguiu sentando-se na cadeira.

Ela queria parecer despreocupada, mas a verdade é que estava extremamente cansada apenas por ter andando do estacionamento até o elevador, e então do elevador até o quarto.

— Tudo certo, Christian, eu volto logo. Grace pode me acompanhar? - Dr. Hanrri falou apressado, e sem esperar resposta, saiu do quarto.

Grace franziu o cenho, deu um beijo na cabeça de Christian e então saiu também sem dizer nada mais.

Mia continuava meio que agarrada a Christian, a cabeça deitada em seu ombro.

— Está tudo certo, né? Você tem que ir para casa hoje. Como o ano novo vai chegar sem você com a gente? - Mia falou.

Ana sorriu, mas desviou o olhar de Christian quando percebeu que ele a encarava.

Desviou o olhar para um local abaixo de seu queixo.

O Grey continuava sem blusa, e Ana queria desviar o olhar para outro lugar agora.

— É claro que vou. Está tudo bem - ele a tranquilizou, mas Ana ainda sentia o olhar queimando sobre si.

— É o Ethan! - Mia falou/gritou de repente, pegando seu celular que tocava Halo de Beyonce a plenos alto falantes. - Eu já volto, não sai daqui.

— Não teria como nem se eu quisesse - ele falou para a garota, que riu escandaloso e então saiu do quarto.

Ana riu baixo pelo entusiasmo totalmente aparente de Mia só por Ethan ter ligado. O noivo viajou naquela manhã, iria passar o ano novo com os pais na Inglaterra. A princípio Mia também iria com ele, mas na noite anterior ela alegou que não conseguiria sair de perto de Christian tão cedo.

Ana não poderia julgar.

— Vai ficar uma cicatriz - disse a morena, encarando o abdomen do outro, o curativo bem ali.

— Não me diga - ele ironizou, pegando uma camisa, fazendo uma careta ao ter que se virar e sentir uma fisgada. - Você parece muito cansada, o que houve?

Como ele fazia aquele tipo de coisa?

— Nada - ela deu de ombros. - Bom, cicatrizes são sexys.

— Você está se sentindo bem? - ele ignorou sua frase.

— Foi você quem capotou com o carro não eu - ela desdenhou.

— É você quem precisa de um transplante, não eu - ele rebateu.

Ana mordeu o lábio inferior.

— Touche - ela sussurrou. - Eu estou bem. Alguns dias são só... mais difíceis do que os outros.

Christian levantou uma das sobrancelhas, mas deixou para lá.

— Eu tomei todos os remédios, nos horários certos até. Sou uma boa garota. Mas não posso fazer mais nada - ela declarou, aproximando-se quando percebeu que Christian nao conseguia colocar a camisa sem reclamar de dor. - Deixa que eu te ajudo.

Ele deixou que ela o ajudasse/literalmente colocasse a camisa em si.

— Você vai precisar de alguém para fazer isso para você durante alguns dias - sussurrou ela, deixando sua mão sobre a barra da camisa mesmo depois de ela já estar perfeitamente colocada no corpo de Christian. - Eu não estou fazendo nada ultimamente. Posso ajudar a colocar... e tirar.

— Você é uma fofa - Christian foi sarcástico, mas não a afastou, mesmo que ela já estivesse invadido por completo seu espaço.

— Eu sou um amor - Ana murmurou, ficando na ponta dos pés, na altura exata de seus lábios com os dele.

— Não... - ele sussurrou, quando quase se tocaram.

Ana levantou uma das sobrancelhas, parada no mesmo segundo. Christian também não se mexer, mesmo que estivessem tao perto, que a tensão no ar fosse quase insuportável e que o cheiro dela invadisse seu sistema de forma quase obsessiva.

Puta merda, como ele queria beijá-la! Mas era difícil, com Ana tudo era difícil.

— Você não quer me beijar? - ela questionou, sem expressão.

— Eu quero beijar você... eu só não quero continuar com issso... uma hora você me odeia, e aí você me beija e acha que talvez nao me odeie tanto.

Ela deu um passo para trás e desviou o olhar. Ainda estavam insuportavelmente perto para o seu bom cérebro raciocinar.

— Não vamos nos beijar se você não tem intensão de ir além - ele murmurou, tocou sua cintura com a ponta dos dedos e então a puxou para mais perto, colando os corpos e fazendo os corações martelarem um contra o outro. - Eu nunca quis ir além com ninguém, até te ver de novo - sussurrou.

Ana engoliu em seco. Aquela proximidade toda estava fazendo-a quase delirar de ansiedade e medo.

Puro medo.

Não queria se deixar levar, não queria ter uma vida como aquela, não queria ter decisões para tomar.

Mas ela querer ou não parecia não importar para o seu coração que agia como uma hélice de helicóptero àquela altura.

— Está me deixando meio sem graça e também com o coração batendo rápido - ela respondeu.

Ele riu baixo.

Antes que Ana pudesse responder algo mais, alguém bateu a porta, o que fez os dois se afastarem enquanto Christian dizia para quem que fosse que entrasse.

Era Grace e Dr. Hanrri. E logo atrás o Daniel Hasting e Vanessa Castro. Seus médicos.

Ou Christian estava muito mal, ou Grace e Hanrri estavam bastante atentos a aparência de Ana.

Mas daquela vez ela havia feito tudo certo, havia tomado os remédios, comido em todos os horários de refeição, feito o mínimo de esforço para não se cansar. E até evitou ao máximo sair por causa do frio, aparentemente ele era um pegador de pessoas com imunidade baixa.

Como ela mesma dizia: fora uma boa garota.

Não havia nada mais a ser feito da parte dela.

— Ana, filho, nós... nós descobrimos uma coisa - Grace começou, os outros pareciam paralisados demais para tal. - Eu não sei como não descobrimos antes, nós ao menos tentamos.

— Sequer pensamos nisso - Daniel comentou.

Momentos tensos fazem o coração de Ana apertar, suas mãos suarem e seu corpo inteiro se arrepiar. Era uma característica sua, da mesma forma que sua personalidade era sua, que seu corpo era seu, que suas manias eram suas... Mesmo que ela recebesse injeções em seu corpo de leucócitos e plaquetas de outras pessoas, ela nao deixava de ser ela. Ela não deixava se ser ela mesma só porque outra pessoa salvava sua vida.

— Com toda a situação eu nao havia percebido, até hoje, quando você chegou. Uma piadinha de mal gosto me fez lembrar de algo que eu não tiro a cabeça desde que te conheci - Hanrri falou dessa vez. - Ana... - ele se aproximou totalmente, pegando uma das mãos de Ana e virando sua palma para cima.

A cor quase azulada do frio que seu corpo estava, a pele um pouco pegajosa, mas lá estavam, as pequenas manchinhas roxas. Malditas.

— Christian tem o mesmo cromossomo 6 que você, a histocompatibilidade foi de 100% impressionantemente...

— Isso quer dizer que Christian é compatível com você - Grace continuou, mal se contendo.

— Espera, espera - Ana se alterou, fazendo-os se calarem. - Vocês que o Christian me doe parte da medula dele? - ela questionou. - Você - ela apontou para Daniel - me disse que a possibilidade de o meu DNA ser substituído pelo dono da medula da pessoa que for transplantada em mim é tipo 80%. Por isso na maioria das vezes o mais é ser algum familiar de primeiro grau, sem nenhum risco. Você falou sobre filhos e DNA parecido, como o melhor seria eu ao menos saber quem seria o doador.

Daniel balançou a cabeça, mas fora Vanessa quem falou

— Isso é verdade, Ana, mas não é como se você fosse ter um filho com Christian algum dia, não é?

Foi um daqueles momentos tensos em que ninguém fala e só espera você responder. Constrangedor. E Ana não respondeu. Ela apenas passou a mão pelo rosto, o cansaço chegando ao limite, e saiu do quarto sem ao menos se despedir.

Ela não estava sendo egoísta - pelo menos era o que achava - ela só nunca imaginou que aquilo poderia acontecer. Que de todo o mundo, talvez 5% dele fosse 100% compatível com Ana, e uma dessas pessoas era o Christian?

Como? Por que o mundo tinha essas coisas? Por que parecia que o destino queria colocar ela junto dele da forma mais literal possível?

Ela queria gritar com o mundo, queria quebrar as coisas, queria brigar, queria bater no peito e dizer que não precisava de nada daquilo.

Mas foi só ela chegar do lado de fora do quarto, que teve que se sentar, se sentindo tonta, a cabeça girando, as mãos completamente frias e pegajosas.

Como ela podia ser durona daquele jeito?

— Amiga, o que houve? Você está bem? - Mia questionou, sentando-se ao seu lado de repente.

Ana engoliu em seco, a tontura passando.

— Eu estou assim. Eu preciso ir num lugar agora, nos falamos depois - a morena se levantou, dessa vez sem nenhuma complicação, e sem esperar resposta, andou apressada pelo corredor.

Pela primeira vez não queria falar com Kate, não queria expor seus sentimentos ou qualquer coisa assim para alguém que iria lhe ouvir e dizer que aceitava o que ela quisesse fazer. Ana queria que alguém decidisse por ela, e não uma plateia que aplaudia todos os seus erros e acertos.

Ela precisava de ajuda e não de conselhos.

Era exatamente 10h21min da véspera de ano novo.

Destino ou não, havia um táxi vazio bem na frente do hospital. Destino ou não, na porta do consultório 2 do andar 17 do prédio La Mar havia uma plaquinha com a palavra LIVRE.

A secretária do andar sorriu para ela antes de questionar sua visita, pois não havia nenhuma hora marcada. Ana podia sentir a necessidade dela em perguntar sobre sua vida, mas viu sua educação em apenas assentir e deixar que Ana entrasse já que não havia nenhum paciente.

Sem cerimônia a garota bateu uma vez na porta de vidro e entrou. A mulher estava lá, sentada na mesma cadeira de sempre, com foto de sua família perfeita em cima da mesa e várias post it colados na lateral da madeira.

— Eu sei que te tratei como uma droga no outro dia, eu sei que eu disse coisas que magoaram você só pelo simples fato de eu querer que alguém se sinta pior do que eu, eu te dei um ódio gratuito, não te deixei explicar, eu sei que você está doente e sei que o momento é horrível, mas preciso de alguém para conversar e você é a única pessoa desse mundo que conseguiu fazer eu falar de coisas que eu nem sabia que sentia ou que aconteciam comigo. Preciso da minha psicóloga de volta por alguns minutos - Ana descarregou as palavras sem ao menos respirar, uma das mãos batendo na coxa direita numa mania de nervosismo que Carla também tinha.

Era engraçado como depois de você descobrir a verdade, começa a perceber coisas óbvias que não via antes, mas sempre estiveram ali, bem na sua cara.

Carla se levantou, abriu um sorriso sincero e apenas indicou o sofá de canto para Ana.

Não fácil, para nenhuma das duas. Carla desesperadamente só queria poder dar um abraço, fora uma coisa que ela nunca fez e sempre quis desde o seu nascimento. Enquanto Ana só queria que a mulher lhe desse respostas sãs e dissesse que estava tudo bem, que não era só ela quem se sentia daquela forma.

— O Christian é 100% compatível comigo - Ana declarou, e a mulher arregalou os olhos.

Do ponto de vista bem de fora, para Carla, Christian sempre fora um personagem complicado na história de Ana, ele não era o vilão, mas nem de longe o mocinho, ele podia não ter sido o culpado, mas fizera participação de grande parte da tragédia. Depois de descobrir quem era Ana, que a menina inconstante, jovem e um pouco distorcida era sua preciosa filha que ao menos pôde tocar uma vez sequer na vida, Christian se tornou mais importante. Ele era o "lado ruim" de Ana, ele era o alvo dela para todas as escolhas erradas, a culpa perfeita para justificar suas atitudes. Mas também era uma espécie de balsa, como uma âncora para segurá-la sempre, para mantê-la sã e sendo ela mesma. Era um paradoxo, Carla nao sabia se gostava dele perto ou longe.

— Ele pode salvar a minha vida, literalmente. Mas eu não se eu quero que ele faça isso - Ana continuou.

Carla balançou a cabeça.

— Quer me contar o motivo?

Era sempre perguntas, era sempre escolhas. Carla nunca exigia nada de Ana, ela sempre perguntava, dava opções, até mesmo exemplos, talvez fosse por aquilo que Ana meio que gostava dela antes, porque ela lhe deixava decidir.

— Eu não sei dizer, eu só... Talvez possa ser egoísmo, mas eu penso em tanta coisa ao mesmo tempo. Nada mais poderia ser como antes, eu nunca vou poder voltar.

— Ana, você ainda tem essa ideia de que a sua vida vai voltar a ser como antes, que você vai apenas voltar a viajar o mundo sozinha ou com sua amiga, vai encontrar pessoas e dormir com elas no mesmo dia, que vai ignorar o seu pai por dias e depois atender sua ligação só porque ficou com saudade mesmo sem admitir para si mesma. Eu sinto muito, mas isso não vai mais voltar. Você não tem mais que camuflar seus sentimentos, ou suas verdades. Você nao tem motivos para fugir. Antes você achava que ainda era uma menina que não conseguiria olhar para as pessoas que te magoaram sem querer machucá-los também. Mas você é uma mulher, você cresceu aqui, cresceu novamente. Não acho que odeie Elena, você é só decepcionada demais com ela para conseguir sentir qualquer coisa como compaixão ou até mesmo carinho. Mas Christian foi uma reviravolta, ou talvez um conhecimento. Você nunca soube quem ele era de verdade, você era menina apaixonada por um garoto bonito. Você voltou e ele é um homem interessante demais para que você não continue a conversa. Não acho que você conseguiria ir embora por livre e espontanea vontade, sem ninguem para culpar - Carla foi direta.

Ana mordeu o lábio inferior e colocou os pés no sofá, abraçando seus joelhos, absorvendo as verdades duras que Carla havia jogado em sua cara.

— Você tem uma vida inteira pela frente, agora sabe que tem mesmo. Não deixe seus sentimentos ou as pessoas ao seu redor tirar isso de você. Garanta a sua vida, seus dias, garanta tudo isso para então começar a pensar no que fazer com eles. Por que você, não é? Você os quer?

Ela queria? Ela queria seus dias? Ela queria o resto de sua vida? Claro que na prática ela podia fazer um transplante garantindo uma qualidade de vida, e no dia seguinte ser atropelada por um ônibus. Mas em tese, tudo era mais fácil, tudo era preto e branco. Ela faz o transplante e vive uma vida longa, ou não o faz e morre, quem sabe, em dois meses ou menos.

Ela tinha uma escolha, finalmente.

E era assustador uma garota de vinte e dois anos ter de pensar em qual das opções ela iria apostar.

E era triste.

Muito triste.

— Eu não sei o que eu quero - ela declarou num sussurro, com medo de suas próprias palavras.

As últimas semanas foram vividas a ferro e fogo, ela tinha uma questão de "morte" em sua vida e aquilo a fez se fechar para muitas coisas. Ela aceitou o presente como se o passado nao tivesse existido porque ela poderia morrer logo. Mas então surge opções, surge uma solução e não sabe o que faria com os pingos nos is que havia colocado.

— Eu não sei... não sei o que fazer com o resto da minha vida - falou.

Carla se aproximou, para a própria surpresa, Ana não se afastou, nem mesmo quando a mulher sentou-se ao seu lado.

Olhando bem de perto, a morena conseguiu ver fracas olheiras abaixo dos olhos da mulher, mesmo com a pele maquiada, pôde ver o semblante cansado e o brilho um pouco apagado.

Ela estava doente. Ana sabia, mas não havia se dado conta.

— Eu sei que isso é ridículo. Eu estou aqui falando sobre não ter certeza do que eu quero com a minha vida, quando você ao menos tem opções - disse a garota.

Carla sorriu de lado.

— Eu tenho opções. Farei químios, tratamentos. Algumas noites vão ser bem mais difíceis do que as outras, mas eu escolhi que vou tentar, vou lutar. Você havia feito essa mesma escolha, lembra? Você me disse isso, que havia escolhido tentar. Não é só porque de repente parece que ficou fácil, que o mérito nao vai ser seu.

— Você acha que eu estou fazendo drama? - Ana questionou indignada, baixando os pés de volta para o chão. - Acha que eu quero chamar atenção? Que eu quero uma medalha de ouro por toda a minha "luta" e como agora eu posso fazer um transplante, que eu posso simplesmente ser agulhada, está tudo perdido para mim, não tem mais valor?

— Não foi o que eu quis dizer, Ana.

— Não, é sim! - a garota se levantou, junto ao tom de voz. - Você acha que eu só uma garota mimada que cresceu numa família desestruturara, mas rica o suficiente para suprir todo o drama?

— Eu não acho que é drama - Carla murmurou, o tom calmo que Ana odiou.

A garota revirou os olhos e odiou mais ainda a onda de desespero que tomou seu peito. Nos últimos dias ela começou a se relacionar com aquela sensação, era sempre a mesma, bem daquele jeito, começava apertando seu peito, como se quisesse deixar seu coração bem pequenininho, e quando existia apenas uma bolinha de coração, era como se ela subisse por sua garganta e a fechasse, um nó embolado em lágrimas, que escorria dolorido por suas bochechas, lhe fazendo se sentir péssima.

— Então é o que? Eu preciso que alguém me diga, eu estou cansada de ser assim - ela declarou para a surpresa das duas. - Estou cansada de explodir por algo bobo, cansada de não me entender, cansada de simplesmente não ir até o hospital e exigir que eles façam a droga do transplante só porque eu não tenho certeza se eu quero isso. É horrível. Como eu posso não ter certeza? - ela explodiu um pouco, quebrou um pouco também, deixando as lágrimas escorreram por suas bochechas enquanto o seu coração era só uma bolinha de nó na garganta.

— Querida, está tudo bem, não tem nada de errado com você - Carla sussurrou, levantando-se, aproximando-se de Ana. - Só está confusa, e isso é tão normal com todo mundo, todos nós nos sentimos confusos as vezes, nos sentimentos deslocados, exagerados, eu também me sinto assim, acho que vou desistir pelo menos três vezes num dia, mas aí eu respiro e o que vale é a minha primeira decisão - ela tocou levemente no cabelo da garota, penteando os fios entre os dedos. - Você está passando por coisas, passou por coisas, que nenhuma garota de sua idade deveria. Você é tão forte, e eu me sinto tão orgulhosa...

Ana não se demorou muito mais no consultório, estranhamente ela precisava de palavras carinhosas e não de conselhos para conseguir respirar. Mas ela fora direto para a mansão Lincoln, ignorando totalmente seu celular com várias mensagens e ligações perdidas, só adentrando seu quarto e se jogando na cama de jeans e sapatos.

Exausta demais para qualquer coisa, ela dormiu por horas.

Quando acordou, o sol já havia se posto, e alguém acariciava seus cabelos.

Ela abriu seus olhos lentamente e mirou a janela de seu quarto, o céu cheio de estrelas, seus pés cobertos apenas por meias e podia sentir suas pernas nuas cobertas por um lençol. Alguém havia tirado seus tênis e sua calça e ela ao menos havia se mexido. Era preocupante aquele fato. Mas alguém ainda acariciava seus cabelos. Virou-se lentamente, logo encontrando seu pai sentado ao lado, as costas na cama enquanto via algo no tablet e a outra mão entre os fios de seu cabelo.

— Pai? - Ana sussurrou, a voz rouca pelas horas dormidas.

— Oi, querida - ele sussurrou de volta, colocando o tablet no criado mudo e então se inclinando o suficiente para deixar um beijo rápido em sua cabeça. - Estava mesmo cansada. Quando era pequena reclamava por ter que dormir de pijama, e agora você dorme de jeans - ele brincou.

Ana resmungou baixinho e se recostou na cabeceira ao seu lado.

— O que faz aqui? - questionou.

— Saí mais cedo de uma reunião para te ver, sua mãe me ligou.

— Elena? - franziu o cenho.

— Sim.

— Ela tem seu número?

Linc riu baixo.

— Fiquei preocupado quando ela disse que não atendia o celular e ninguém fazia ideia de onde tinha ido.

Ana bufou.

— Eu não sou um bebê, e não tenho que dar satisfação para ninguém - resmungou.

— Não, é e não tem. Mas nos preocupamos com você e seria uma ótima ideia saber onde você está quando a qualquer momento corre o risco de...

— Morrer?

— Passar mal - ele corrigiu.

Ana revirou os olhos.

— Eu estou bem - respondeu no automático.

Nem mesmo ela caía mais naquela frase, imagina as pessoas ao seu redor.

— Sua mãe me contou. Na verdade, parece que Grace contou a ela, e então acabou me dizendo por telefone.

— Vocês estão me assustando.

— Ana, você é importante.

— Eu sei que é meio repetitivo e clichê esse negócio de filha revoltada, mas como vocês começam a se importar quando eu já estou crescida e adulta?

Linc passou uma das mãos pelo rosto, suspirando pesado.

— Eu errei muito com você, mas sempre me importei.

A garota bufou novamente.

— Se importou tanto que ao menos tentou saber de mim quando Elena me levou embora. Tem noção do que eu passei? De tudo o que aconteceu?

Linc balançou a cabeça, completamente culpado.

— Eu não tive escolha.

— Não vem com essa. Todo mundo teve escolha, eu fui a única que não tive.

Linc engoliu em seco e desviou o olhar.

— Você não entenderia. Eu não podia... Naquela época eu não podia.

— Por que? Eu não sou mais criança.

— Tem razão, você já é uma mulher adulta. E eu entendo que passou por coisas que eu poderia ter evitado, fiz escolhas ruins e você sofreu por isso, Elena fez péssimas escolhas também, e nenhum de nós pensou em você. Eu sinto muito, nunca vou me perdoar por isso, por minhas escolhas terem machucado você de tantas formas. Eu não digo o tempo todo, eu nunca digo, na verdade... mas você é a coisa mais importante do mundo para mim.

A morena balançou a cabeça e mordeu o lábio inferior.

A relação o seu era péssima, não tanto quando com Elena, mas não era um mar de rosas. Eles apenas não se davam muito bem também, mesmo que nos ultimos anos tenha sido mais uma troca de ligações alguns rápidos almoços em restaurantes, tudo pareceu se tornar melhor quando nao estavam perto um do outro. Era uma novidade o quanto eles de repente estavam bem juntos, desde que seu pai havia chegado em Seattle, eles ao menos haviam discutido, e ele estava ali com ela, dando... apoio?

— Posso perguntar uma coisa? - ela questionou, aproveitando o momento de paz.

— Sempre, o que quiser.

— É bem aleatório.

— Não importa.

— O que acha sobre não ser meu pai biológico?

Linc franziu o cenho e se virou totalmente para Ana.

— O que eu acho? Acho uma puta sacanagem porque você é a garota mais incrível do mundo, e eu não gosto de não poder dizer com sinceridade sobre você ter me puxado.

Ana riu, mesmo.

— De qualquer forma, isso não muda nada - ele tocou em seu queixo, levantando seu rosto para que ela encarasse seus olhos. - O meu amor por você não tem nada a ver com o sangue em suas veias. Ainda mais a partir de agora, aí é que não vai ter mesmo.

A morena sorriu de lado.

Linc nunca havia falado sobre amor, sobre amá-la especificamente. Ela não iria questionar aquela passagem, mas gostou de saber daquilo. Mas então franziu o cenho.

— Como assim ainda mais agora? - questionou.

Ele se ajeitou ao seu lado e cruzou os braços, a expressão um pouco mal humorada.

— Eu não completamente esse transplante, mas entendi a parte de sangue misturado, DNA parecido...

— É... no fim das contas, não vai ter sangue dos Lincoln nem dos Steele, vai ser dos Grey.

— Com 13 anos você e Mia estariam pulando de alegria.

— Com 13 anos eu tinha motivos eu tinha motivos para isso. Mas, sabe, está todo mundo falando disso. Grace e Dr........ já falaram como se já estivesse tudo certo, você, Elena... mas ninguém perguntou a pessoa principal, ninguém sequer pensou em perguntar se o Christian vai querer doar.

— Meu anjo, se ele não quiser, ele vira doar de orgãos.

— Pai!

— Eu não respondo por mim.

— Deus me livre, só de pensar em algo assim.

Linc se virou para a garota, uma sobrancelha levantada.

Ana ficou vermelha.

— Digo, sabe, brigas e tudo mais. Nossas famílias são bem unidas, apesar de tudo, não consigo imaginar algo assim. Seria uma catástrofe.

— Mas que está merecendo...

— Pai! Por favor. Só... não faz isso. Nem de brincadeira - pediu.

— Não sei o que veem nesse garoto - resmungou ele.

Ana revirou os olhos.

— Ele não é um garoto - falou.

— Defendendo? Na minha cara?

— Não estou defendendo, só estou dizendo - corrigiu. - Ele não é.

Linc suspirou alto antes de se levantar.

— Eu beijei ele. - declarou Ana rapidamente. - Beijei o Christian.

Mais de uma vez.

— Espero que não... fique decepcionado, eu não estou.

— É o que importa, não é? - Linc disse apenas.

Ele balançou a cabeça para cima e para baixo, e mais uma vez se inclinou, deixou um beijo em sua testa.

— Se arruma, é véspera de ano novo, deixei o barco pronto, vamos passar a virada na marina - ele falou antes de sair do quarto.

Ana inspirou o ar profundamente e mirou a janela.

Declarações...

Seu celular tocou com uma nova mensagem, a garota pegou o aparelho e olhou o visor.

Christian.

Declarações e declarações...

2019 seria um ano de emoções.