1001 cartas para chegar até você

Capítulo 11 – Nuvem de confusão


Depois de ouvir diversas vezes a música, Mônica acabou copiando o áudio para o celular. Uma parte dela queria ouvi-la ainda muitas vezes. Uma outra fazia perguntas que Mônica não sabia responder, como por exemplo: o que ela sentia por DC? A questão era capiciosa, para a qual ela não tinha uma resposta definitiva. Ela amava Cebola; repetiu mais uma vez como um mantra que ecoava do passado e ecoaria até o fim dos tempos. Era o destino dela, não? Casar-se com Cebola, ter filhos com ele, ser feliz para sempre com seu prometido... O Do Contra não se encaixava nos planos dela. Ironicamente, ele contrariava todos os planos que ela fez para si – ou que os outros fizeram por ela. Por que afirmar isso dava a ela vontade de pegar a mão de DC enquanto ele a tirava de seu mundinho?

Para fugir desses pensamentos conflitantes, concentrou-se em ficar pronta para a escola. Reparou no pendrive em cima da escrivaninha enquanto punha os livros na mochila. Teria de devolvê-lo hoje sem falta. Faria isso assim que chegasse na sala de aula – se DC estivesse lá. Caso contrário, teria de esperar até o intervalo... Onde correria o risco de ter testemunhas demais. Poderia encontrá-lo no fim da aula, mas o Cebola... Precisava também falar com Cebola, sobre o vestibular, o MIT, e principalmente o futuro deles. Ainda que ninguém duvidasse que os dois ficariam juntos para sempre, isso não significava que eles não deveriam planejar, discutir as possibilidades. Antes de mais nada, precisava devolver o pendrive!

Como se pudesse adivinhar os planos dela, lá estava DC. Sentando no chão, cabeça baixa focado no seu caderninho, escrevendo alguma coisa para passar o tempo. Aguardava-a na entrada do colégio? Era mais cedo do que o costume e não havia ninguém por perto. Ideal para a missão dela.

— Bom dia, DC.

— Mônica, má noite!

— Acordou mais contrariado do que o normal? – rindo, abriu um sorriso mostrando todos os dentes para o rapaz, que reagiu igual. Ele levantou os ombros e com um sorriso torto sinalizava não saber a resposta para a pergunta retórica dela.

— E a música? – perguntou-a com os olhos fixos no rosto dela, eles brilhavam ansiosos.

Se ele manipulava a realidade como o convinha e a enlouquecia, ela também sabia brincar.

— A bateria do Cascão estava alta demais, não deu para prestar atenção. Depois você me passa outro arquivo, um que o som do violão que eu toquei estiver mais nítido... – ela disse com um ar atrevido e desafiador entregando-o o pendrive.

O sorriso dele se alargou no rosto.

— Talvez a gente grave um som melhor no próximo ensaio. – ele sugeriu

O sorriso confiante não saia do rosto dele. As mãos macias dele tocaram nas dela e um arrepio subiu pela espinha da garota. Afastou-a rapidamente, encarando-o. Por incrível que fosse, por um instante viu o rosto dele mudar: não tinha a fachada cínica e segura de sempre, transparecia uma emoção forte ante o toque dela, como se ela fosse um anjo... Mas isso era tolice. Durou tão pouco que podia ser só imaginação dela. Logo estava de volta o sorriso brincalhão. Ele virou-se para guardá-lo na mochila. Depois levantou-se, porque ia para a sala de aula. Ela se despediu, dizendo que ia esperar os amigos chegarem. Talvez fosse decepção no olhar dele, mas não devia ser. Ele só deu de combros e se foi. Que esquisito. Se ele queria que ela o acompanhasse, por que não pedir? Mas o que esperar do Contra?

Na sala de aula, tentava resolver um exercício de Biologia... Precisava se concentrar nisso, mas sua cabeça estava tão confusa. Por que ele agia de forma tão estranha? Se ele queria brincar de mistério, cabia a ela o papel de investigadora? A música fazia um convite e fazia óbvias referências a Mil e uma noites... Eram notoriamente um paralelo com as cartas. A história sem fim... Teria 1001 cartas? Para que tanto trabalho? Qual era a vantagem de enlouquecê-la?! Ela precisava investigar, arranjar provas e colocá-lo contra a parede. Como?

Primeiro, Mônica cogitou segui-lo... Por um dia inteiro? Seria muito estranho... E para quê? A carta já poderia estar no correio, se DC tiver a colocado bem cedo, antes de ir para aula... Considerando que morando perto, ele teria uma rota fácil até a casa dela e depois poderia seguir para a escola... E daí se ele tem que dar uma voltinha a mais? É o Do Contra de quem estamos falando, ele nunca pensa na rota mais fácil... A exemplo do dia no cinema. Se ele conseguiu ir até a casa dela e voltar ao shopping, demonstrava que ele não se importava de caminhar muito e rápido... Ele a mantinha ao alcance de seus olhos, sempre pensando em um passo antes dela... Mônica estava presa na teia, à mercê dos caprichos da aranha... Como é que ela pode usar a teia a seu favor? Pulando corda com ela, como faria DC...

No colégio, ela pensou, Mônica poderia observá-lo ao máximo. Poderia saber sua rotina, mas para isso teria que lidar com testemunhas demais, inclusive a fofoqueira da Denise. Não era o ideal. Como arrancaria uma confissão? “De acordo com minhas anotações, você lancha às 9 e meia e por isso que você escreve cartas para mim” Ou “você presta atenção nas aulas, isso só pode significar que você passa a madrugada toda escrevendo na máquina de escrever!” Que conclusões ela poderia chegar? Como faria um plano infalível sem o Cebola saber? Ela corou. Não bastaria observá-lo o dia todo, precisaria de tirar uma foto dele colocando a carta no correio. E capaz dele de se negar, falar que estava entregando panfletos! E aquele áudio! É tudo tão incriminatório já. Ele quer que ela reúna provas?! Conhecendo-o... Talvez. Para quê?!

A ideia de Magali surgiu como uma oportunidade de ouro! No intervalo, enquanto as duas estavam na fila para comprar um lanche, a amiga comentou da letra da música e o quanto ficou inspirada a escrever uma serenata para o Joaquim. O rosto dela estava corado e ela falava baixinho, talvez pensando se deveria ou não. Magali admitiu que até começou a rascunhar algo, mas estava tão... E no domingo ia ser aniversário dele, a mãe do Quim falou que iam fazer uma festinha... E ela até pensou em tocar, mas isso era uma loucura, muito em cima da hora... Mônica não poderia perder a chance!

— Você podia pedir ajuda do DC com a letra e a música, Magá! E é claro que o resto da turma vai adorar seu plano. Se a gente ensaiar bastante, tocar no domingo vai ser moleza. Se você falar com ele hoje, talvez vocês até possam ficar depois da aula, o que acha? Você pode ficar uns minutinhos a mais, não precisa ficar uma tarde toda, só para mostrar suas ideias...

Magali ficou sem palavras por uns segundos, talvez Mônica tenha se precipitado... No entanto, a amiga voltou a encará-la, seu rosto coberto por um tom avermelhado, mas com um sorriso brilhante. A ideia era boa. Assim que comprasse um lanche, iria pedir ajuda a DC. Elas o viram próximo, era só chamá-lo para mesa deles. Mônica ficou contente por sua amiga, ainda mais que isso seria a oportunidade que lhe faltava. Se Magali retê-lo na escola...

— A ideia é ótima, mas será que os meninos vão topar? Será que eles já têm planos? – o receio era nítido no rostinho gracioso de Magali.

— Acho que enquanto o time não voltar a treinar, o Cascão está livre. O Cebola tem um horário mais flexível... Além do mais, é só uma semana, ninguém vai morrer... – Por sorte, Magali concordou.

Terminaram de comprar o lanche. Mônica foi se sentar com os meninos, enquanto Magali chamou DC para se juntar a eles na conversa. Ela estava tímida ao expor a ideia:

— Andei pensando na serenata... Bem... E se a gente tocasse no aniversário do Quim? A mãe dele está pensando em fazer uma festinha bem pequena, só para a família... Seria bom a gente tocasse uma música para ele...

— Só se isso contar como o presente de aniversário dele...

— Cascão! – Mônica o repreendeu.

— Certeza que a comida vai ser boa, e nada melhor que um cachê gostoso. – falou DC

— Então, tô dentro! – Cascão abriu um sorrisão.

— E a agenda de todo mundo dá? Não quero atrapalhar ninguém... – a voz receosa de Magali dava forma a sua insegurança.

— Não se preocupa, Magá. A prioridade é o ensaio, vamos nos dedicar ao máximo para não te envergonhar na frente do Quim e da família. – Cebola disse amigável, ainda que não pudesse esconder um pouco de sua contrariedade.

— Que bom, turma... DC, estou escrevendo uma letra, mas preciso de bastante ajuda com os versos e a melodia... Você poderia dar uma olhada nela, depois da aula? Não vai tomar muito tempo, porque eu já combinei com a Milena de ir na casa dela estudar Física com ela e a Marina...

— Claro, Magá. A biblioteca depois da aula deve ter um lugar para gente...

— É, tem que aproveitar que os pernilongos do amor estão picando o rapaz. – Brincou Cascão, cotovelando DC, que parecia indiferente.

Por um instante, Mônica sentiu o coração falhar. Amor? Cebola a tirou dos pensamentos, o sinal tinha tocado e eles tinham que voltar para a sala de aula. Coincidentemente era física. Para jogar uma indireta? ‘Dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Não tem como ela gostar de duas pessoas ao mesmo tempo, certo? E ela ama o Cebola, é destino... Decidiu não pensar mais nisso. Talvez fosse o sinal divino para outra coisa: não tem como o corpo de DC estar na casa dele e na biblioteca ao mesmo tempo, por isso ela teria como investigar.

No fim da aula, Cebola e Mônica foram para casa juntos. Magali concordou em mandar mensagem para a amiga assim que terminassem, para contar como foi e como que ficou a letra. Perfeito! Seu plano já estava em ação... No caminho de volta para casa, lembrou-se da conversa que queria ter com Cebola sobre o futuro, o MIT, as decisões dele, os planos... No entanto, não seria seguro estender a conversa, talvez durasse minutos demais, e ela precisava estar em outro lugar antes... A cabeça dela estava na casa de DC, onde ele não estaria e ela poderia investigar, obter provas, ou uma resposta para isso tudo...

Disfarçou a pressa e despediu-se logo de Cebola. Aguardou no portão até que ele sumisse de seu campo de visão e correu para a casa de DC. Depois diria à Dona Luísa que ficou agarrada na escola, por causa de um trabalho em grupo que tomou um tempinho a mais. Uma mentirinha boba por uma causa nobre: respostas!

Obviamente a garagem estava fechada: não tinha ninguém ali. A mensagem de Magali seria seu alarme para sair de lá o quanto antes. Parecia o plano perfeito, na cabeça dela... Nimbus vinha chegando da faculdade naquele exato momento, enviado pelos deuses. Improvisando, Mônica inventou que teria um ensaio da banda, pediria ao mais velho que abrisse a garagem para que ela esperasse o pessoal, e Nimbus a deixaria lá sem suspeitar de nada... Ela já sentia o sorriso maléfico brilhar em seu rosto. Era perfeito demais. Sendo assim, é claro que não saiu como o planejado...

— Ele disse que tinha ensaio mesmo? Tem certeza? – a voz de Nimbus não disfarçava sua desconfiança.

Por que ele questionava a mentira dela? Por que não simplesmente acreditava?

— É, foi repentino. Sabe como seu irmão é, né?

— Sei sim. – ele riu acompanhando o riso nervoso da garota.

— E o Cascão vai vir logo depois do treino, junto com o Cebola. Magali já deve estar vindo depois de pegar um livro na biblioteca. Não entendo porquê o DC não chegou ainda. – será que era plausível sua mentira?

— Ah, é típico dele atrasar, faz parte do charme, né? – riu alto.

— Acho que eu cheguei cedo demais então... – sorriu sem graça, torcendo para ele sumir.

— Acho que sim. Posso te fazer companhia até alguém da turma chegar.

— Obrigada. – Por quê?!

Pegou o violão e os arranjos que estavam jogados pela sala. Dedilhou um pouco. Tentou não pensar que aquele era o mesmo violão da serenata no pendrive. Se era para ensaiar, podia fingir. Mas a única pessoa da turma que chegaria para tirar Nimbus dali é o próprio DC, e isso não era ideal... Errou os acordes. Voltou a repetir. Ele a olhava curioso. Será que ele sabia que era tudo mentira? Deveria ter cuidado para ele não ler sua mente, se é que isso fazia parte dos poderes do mago de meia tigela...

— Você já almoçou? – Mônica perguntou puxando conversa, procurando se concentrar no violão.

— Ainda não. Está com fome?

— Não, passei em casa primeiro para almoçar... Mas não quero te atrapalhar, não, pode ir lá se quiser. – deu o golpe de misericórdia.

— Então vou dar uma passadinha rápida na cozinha.

Nimbus pegou a isca, perfeito! Ela só precisava ser rápida. Ela procuraria a máquina de escrever, ou alguma prova de que ele tinha envelopes com o nome dela. Será que deixaria na garagem? Talvez, porque com os ensaios, DC sabia que a turma ficaria ali. Seria mais uma prova óbvia. Procurou segurando o violão, para que Nimbus pelo menos escutasse ao longe ela tentando tocar alguma coisa. Cogitou olhar no quarto de DC, mas como entrar sem ser percebida? E se pedisse para ir no banheiro quando Nimbus voltasse? Só precisava enrolar mais um pouquinho com o violão para dar o golpe. Ele não a seguiria, né? Além do mais, Dona Keiko não parecia estar em casa, devia ter saído para trabalhar... O plano era perfeito demais. Calma, não devia cantar vitória antes da hora.

Ele voltou bem antes do que ela esperava, com um sanduíche e uma lata de refrigerante. Mônica decidiu que não devia perder mais tempo e pediu para ir ao banheiro. No caminho, ela deu um desvio até o quarto de DC, mas o maldito estava trancado. Olhou pelo buraco da fechadura, mas não dava para ver direito. O buraco era estreito demais; surpreendentemente as cortinas rasgadas não deixavam passar luz. Também a parede preta não cooperava... Talvez estivesse demorando demais ou cometido alguma gafe, porque Nimbus parecia aproximar-se. Afastou-se logo da porta. Disfarçando, ela voltou para a garagem.

O rapaz ficou sentado em um dos móveis, tomando um guaraná e lendo algum xerox da aula. Felizmente, nada de mensagem de Magali, dando à Mônica mais algum tempo... Talvez inútil. Ela não sabia mais onde procurar. Dedilhava o violão, pensando no que podia fazer ainda. Os olhos passeavam pela garagem, mas não encontrava nenhuma pista. A mente vagava até que de repente ela se viu perguntando para Nimbus coisas aleatórias... Possivelmente comprometedoras.

— Vocês têm máquina de escrever? – o estranhamento expresso no rosto de Nimbus deixou-a encabulada, correu para explicar-se – DC datilografou a letra de música que tocamos ontem.

— Ah, ele é bem antiquado, né? – voltou a encarar o xerox que lia.

— Ele se esforça bastante...

— Mamãe tem uma... Guardou de lembrança, nostalgia, mas não usa. DC não quis que ficasse só como peça de museu, então comprou fitas para ela, acredita?

— E ele a usa muito? – não conseguiu esconder o interesse na voz.

— Sinceramente, não sei. Não escuto as batidinhas chatas das teclas. Ultimamente a onda dele é música. – riu – Heavy metal da pesada mesmo, em uma altura relativamente prejudicial à saúde auditiva.

Dava para imaginar DC pondo a música como desculpa para abafar o som das teclas barulhentas da máquina enquanto batia as cartas. Por que ninguém podia saber? Porque é um segredo dos dois. O pensamento a fez corar.

— Mas, se não se importa, por que a pergunta? – o tom curioso de Nimbus a deixou mais constrangida.

— Ah... – Ela precisava falar? Não. Além disso, podia omitir uma coisa ou outra, certo? – É que eu recebi uma carta estranha, datilografada. E é claro que eu pensei que fosse seu irmão. Quem ainda teria e usaria uma máquina de escrever se temos computadores à disposição? Bem, mas ele disse que não foi ele, por isso eu não sei bem o que pensar...

— Verdade, isso é uma coisa que só ele faria. – pensou reflexivo – Por isso mesmo é que pode não ser ele. Será que tem alguém fingindo ser ele?

— Oi? Como assim?

— Se não for ele, pode ser alguém querendo fazer você acreditar que seja ele.... Simular uma carta que só meu irmão escreveria... E o que está escrito? – o olhar dele brilhava, bem curioso.

— Ah... É uma história que não termina, como um trecho. – Ele precisava saber detalhes?

— Sério? Que loucura. – soltou uma gargalhada divertida – Só pode ter sido o DC... Mas por que alguém te mandaria isso?

É isso que ela tentava descobrir esse tempo todo.

— Ainda acho que é seu irmão.

— Pode até ser, mas se ele disse que não foi ele... Bem, ele não costuma mentir.

— Mas ele também costuma a manipular a verdade. – Nimbus riu do comentário dela.

— Sim, ele tem essa mania, acho que é para passar o tempo. – mais uma pausa – quer saber? Eu ainda acho que é alguém fingindo ser ele.

— Tudo bem, você pode estar certo, mas por quê? E pra quê?

— Eu não sei. Vai depender do conteúdo da carta...

— Não tem nada demais. – disse desviando o olhar, constrangida. – É uma história que não acaba.

— Será que é uma pessoa buscando crítica literária?

— Sem deixar um remetente? Um endereço... Como é que eu vou responder? Além do mais, por que só eu recebi?

— Você contou a alguém?

— Não.

— Então como sabe que só você recebeu?

— É... – ficou encabulada com a constatação lógica.

— Também deve ser por isso que é tão a cara do meu irmão. Alguém está o personificando para que atribuam a ele a autoria da história. Assim, se a história for ruim, a culpa é dele.

— Sinceramente, isso continua sem fazer sentido.

— É, verdade... Mas como se pode atribuir sentido a algo tão aleatório? Desculpa não poder te ajudar. Talvez ainda não faça sentido, porque não acabou. Quem sabe você não recebe mais uma carta com a continuação...

O celular vibrou assim que recebeu a mensagem de Magali: “Terminamos por aqui. Vou almoçar com as meninas e estudar. Mais tarde posso passar na sua casa? Quero te mostrar a letra.” O coração saiu da boca de ansiedade.

— Ah, Nimbus, você não vai acreditar! O DC acabou de desmarcar o ensaio... Mas... Valeu pela companhia e pela conversa. – Apressou-se.

— Ah, sem problema. Se precisar de ajuda...

— Sim, claro, claro, obrigada. Até mais. – apressou-se em sair dali, adrenalina nas veias.

Correu direto para casa, passos bem apertados. A primeira coisa que fez foi checar o correio, onde uma carta a esperava. Desculpou-se pelo atraso com a mãe, almoçou pouco e depressa e foi para o quarto ler a história:

***

No dia seguinte, o mercador de Zenóbia retoma sua narrativa, aliviando a tormenta da espera:

A Fada Harb Sayida segurava o singelo presente, contemplando absorta seus detalhes. A densa fumaça dissipava-se preguiçosa. Os respingos de lava acalmavam-se, tornando-se menos numerosos e mais espaçados. Os vários rios que os contornavam solidificavam-se como cicatrizes cinzas a remendar as fissuras. Tudo indicava que a fúria da Senhora dos vulcões havia se extinguido. Seria graças à rosa de gelo? Farhad Al-Naim agradecia em pensamento a Fada Jandira Al-Nour por tê-lo salvado da ira mortal da prima. Pensava também no que dizer para não a provocar mais do que o necessário. Devia pedir sua ajuda, afinal, tinha o dever a cumprir: libertar a amada.

Farhad Al-Naim mantinha-se imóvel, apoiando-se contra a parede de pedra. Observava atento a Fada Harb Sayida, cujo semblante era absorto e distante. O ar ficava mais leve e era mais fácil de respirar. Ponderava sobre o que dizer, esperando o melhor momento para fazer o pedido, mas as palavras morriam em sua boca fechada. A Senhora dos rochedos e dos vulcões estava imóvel, seu olhar fixo na rosa, quando se dirigiu ao rapaz sem olhá-lo: “O que pretendes, Farhad Al-Naim?” Sua voz grave arrastava consigo impaciência e melancolia.

Os olhos do rapaz a encaravam e suas palavras continham uma mescla de espanto, alívio e esperança. Respondeu-lhe: “Pretendo ir até a Deusa do Destino e pedi-la que desfaça o erro cometido por Said Al-Faruk. Quebrarei os laços eternos entre a Fada Jandira Al-Nour e eu. É em nome dela que venho pedir-vos material para a espada que capaz de vencer a quimera. Não posso morrer antes de cumprir minha sina.” Encarando-o com desprezo, a Fada lhe retrucou: “Já sei o que minha prima te pediu. Agora pergunto-te o que pretendes tu?”

O espanto era óbvio no rosto do rapaz. A voz dela continha uma acusação velada, e isso fez com que ele ficasse mudo. A Fada Harb Sayida continuou: “Não esperas que eu acredite que não quer passar a eternidade com Jandira, não é? Finges que dela desistiu, veste esta nobre máscara de salvador para esconder tuas verdadeiras intenções...” O escárnio em cada palavra era como o perfurar de uma adaga. “Ou então vais me dizer que não a amas mais? Que teu único desejo é a felicidade dela? Esperas mesmo que eu acredite nisso?”

Farhad Al-Naim lhe sorriu e respondeu: “É verdade que a nobre Fada Jandira Al-Nour e eu fizemos um acordo: desfarei o erro do passado, em troca ela há de considerar passar esta última vida ao meu lado.” Ele prostou-se de joelhos diante dela, curvando-se submisso: “Eu a amo, mais que tudo neste mundo, e por isso vou libertá-la. Não posso mantê-la presa eternamente às vidas de um mortal, quando eu mesmo não posso lhe oferecer a eternidade. Não é justo deixá-la sofrer a perda contínua de alguém que seu coração é obrigado a amar. Bem sabeis, Fada Harb Sayida, que vossa prima não merece tal castigo, por isso ajudai-me.”

A Fada desviou o olhar para a rosa de gelo. Frágil e bela. Talvez pensasse na prima e no coração amargurado que trazia pelas eras. Sentia o peso do apelo do rapaz, sabia da dor que sofria a prima e parecia compreender a força de seu pedido. No entanto, no momento seguinte, ela soltou uma gargalhada de escárnio: “Duvido que de frente para a deusa Um-Carim Tamara Al-Miray mantenha este discurso heroico. Quando for confrontado com a realidade, quando perceber que estará abdicando da fada amada... Duvido que desistirá das promessas de amor eterno, ainda que agora pareçam-lhe mais grilhões aprisionantes do que juras apaixonadas. Se pretendes novamente mexer nas linhas da eternidade, como posso confiar que não farás outro estrago? Queres mesmo que eu creia que te bastará apenas uma única vida ao lado dela, mortal? Contentará apenas com isso? Se antes quis amarrá-la a tua vida a qualquer custo, com igual fervor pretendes deixá-la livre?”

Farhad Al-Naim percebia a olho nu o ressentimento que a Fada Harb Sayida guardava por Said Al-Faruk. Em sua vida passada, cometera erros que ele mesmo preferia não ter feito. No entanto, não cabia a ele mudar o passado, podia apenas lidar com as consequências de suas más escolhas. Remediá-las era o melhor que podia fazer. A Senhora dos rochedos e dos vulcões soava rude, pois seu coração estava amargurado pelo ódio e pelo rancor que nutria pelo errante Said Al-Faruk. E Farhad Al-Naim não a culpava. No entanto, discordava de ser ele o alvo de sua ira. Ela cobrava-o injustamente, punia-o pelo crime que não cometera. Não recusava a responsabilidade de consertar o erro, mas não aceitaria ser punido nem julgado por escolhas que não fizera.

Respondeu-a solenemente: “Não posso convencê-la a acreditar no que digo. Mas creia: Promessa é dívida. Sei o que perco, mas também sei o que ganho. Não assumo a autoria deste crime hediondo, pois não o fiz com minhas próprias mãos. Tomo para mim a responsabilidade de consertar o malfeito, dado que sou o único que poderá fazê-lo. Não duvide que o que mais quero é ver a Fada Jandira Al-Nour feliz.” Levantou-se mais bem disposto e prosseguiu: “Sendo mortal, só posso viver uma vida de cada vez. E penso somente nesta. Não há motivo para que um ser imortal como vossa prima viva em função de mim e de minhas vidas futuras. Hoje sei quem sou e respondo por minhas escolhas; não sou mais quem fui e não sou ainda quem serei. Não anseio o amor que ela me dá com as mãos acorrentadas e sob as ordens do destino. O que mais quero é que ela possa me amar por quem eu sou. Peço-vos apenas que não me punais pelo que não cometi, Fada Harb Sayida. Por obséquio, ajudai-me a libertar vossa prima desta maldição. Ajoelho-me diante de vós e imploro-vos.”

A Senhora dos vulcões e das rochas o olhava para baixo com uma expressão dura de desprezo. O ar de superioridade inflava-a. Sua pergunta soou como um raio certeiro e assassino: “E se depois de completada tua missão, ela não corresponder ao teu amor?” Com a voz triste, mas firme, Farhad Al-Naim respondeu: “Então sentir-me-ei recompensado por ter dado a ela a liberdade que tanto almeja. Terei a livrado do martírio de estar presa a quem ela não ama. Um pássaro na gaiola não canta, vive a pedir por socorro, ainda que isso soe como um lindo gorjear àqueles que o prendem. Novamente vos imploro, ajudai-me.”

Refletindo sobre as palavras do jovem, a Fada Harb Sayida virou o rosto para contemplar nada. Ficou imóvel por um bom tempo. Bruscamente, virou o corpo para ficar de frente para a cratera de onde saíra. A Senhora dos vulcões ergueu um braço e a terra começou a tremer. Jorrou alto em um único jato a lava incandescente, espirrando pedrinhas e faíscas. Farhad Al-Naim tampou o rosto por causa do aumento de fumaça e vapor. O calor beirava o insuportável, mas graças à pele de urso estava protegido. A Fada Harb Sayida manipulava o fio de lava, fazendo-o dançar como uma cobra de fogo. Depois fê-lo girar em seu próprio eixo e enrolava-o habilmente como se faz com um fio de lã. Com o movimento do outro braço, desligou o jato do círculo flamejante, que passou a girar solto no ar. Enquanto a roda girava, comprimia-se e resfriava. Quando se deu por satisfeita, a Fada Harb Sayida trouxera a esfera formada até suas mãos.

Virando-se para Farhad Al-Naim, entregou-lhe a esfera, agora fria e escura: “Aqui está o que me pedes.” Farhad Al-Naim agradeceu-a imensamente, enquanto a Fada dirigia-se à cratera do cume, ignorando-o. Em um tom mais alto, ele declarou: “Usarei vosso presente em prol da liberdade da Fada Jandira Al-Nour, custe o que custar!” A Senhora dos vulcões não se virou para olhá-lo, mas deteve o passo por um breve instante. Sua voz soou como um riso: “Assim espero. Se minha prima te dá um voto de confiança, eis minha contribuição.” Continuou a caminhada e dentro da cratera, deixou o corpo afundar-se lentamente, desmanchando-se suave. A rosa de gelo afundou junto.

Farhad Al-Naim guardava a esfera em sua bolsa enquanto pensava em como chegar ao ferreiro. Sentiu um tremor da terra e escutou baixa a voz da Fada Harb Sayida, em tom jocoso: “Se confias em mim, abro para ti um portal até Saguari, onde Mannu reside. Creio que é ele o próximo a quem deve visitar.” O solo tremeu gentil e pesado por debaixo de seus pés. Diante de si, abriu uma cratera bastante funda. Ao analisá-la de perto, notou a escada que descia até um poço de lava flamejante. Farhad Al-Naim hesitava temeroso. Novamente ouviu um riso jocoso, quase infantil: “Confia em mim como em ti confio.” O coração de Farhad Al-Naim batia incerto, mas percebeu que nada mais era que um teste da Fada Harb Sayida: ele devia provar que estava disposto a fazer qualquer sacrifício para salvar a Fada Jandira Al-Nour, até mesmo descer um poço de lava. Riu fracamente de nervoso, mas concluiu que era melhor e mais seguro passar pela prova de confiança da Fada Harb Sayida do que enfrentar sua ira.

Desceu as escadas. Eram irregulares e ficava mais quente à medida que descia. Seria escuro se não fosse o brilho alaranjado de uma cortina flamejante de lava. Sentia o calor, e este seria insuportável se não fosse pela pele de urso que o protegia. Por sorte não estava sendo sufocado pela fumaça densa. Sentia-se um tanto tolo, mas era esse um dos muitos desafios que teria de enfrentar. E a Fada Harb Sayida era uma aliada. Fechou os olhos e passou pela cortina incandescente. Seu corpo não queimou ao atravessá-la. Sentiu de repente o calor desaparecer por completo. Ainda de olhos fechados, suas narinas foram assaltadas por um cheiro delicioso de comida e especiarias. Abriu-os e deparou-se com as escadarias de um tom terroso como os de sua própria casa. Desceu-as até uma porta aberta da oficina do ferreiro.

Um homem alto de costas martelava um pedaço de ferro. Farhad Al-Naim caminhava incerto. Uma gargalhada alta e alegre preencheu o recinto: “Pela carta da Fada Jandira Al-Nour, julguei que chegasse mais tarde. Seja bem-vindo, Farhad Al-Naim! Já esperava por ti...”

E a areia da ampulheta mais uma vez calou Halam Al-Hakim.

***

Assim que deixou Magali, DC fez um pouco de hora para chegar em casa. Pensava nas palavras de Mônica enquanto segurava o pendrive dentro do bolso. O que ela teria achado da canção? Foi inteligente da parte dela falar da bateria de Cascão, mas ficar sem saber não era a melhor das sensações. A garota o fazia tomar do próprio remédio, será que sentia o mesmo que ele? Foi direto para a cozinha comer qualquer coisa que não exigisse muito do seu tempo ou expertise culinária. Nimbus apareceu na porta, já que foi pegar um iogurte da geladeira.

— Oi, maninho, estava ansioso pela sua chegada! – o bom humor do irmão em plena quinta-feira às vezes o deixava abismado – Quer saber o que aconteceu de legal comigo hoje?

— Não tanto quanto você quer me contar... Desembucha. – o olhar de Do Contra era desinteressado.

— Que plateia mais difícil... Bem, a Mônica veio pro ensaio de última hora e aproveitamos para conversar. Diz ela que recebeu uma carta sem remetente. Perguntei sobre o conteúdo: uma história inacabada... Falei que devia ser romance de folhetim, que ela se inscreveu sem saber...

— É? Estranho... – DC teve vontade de rir do “ensaio de última hora”, mas conteve-se.

— Bastante, né? Ela acha que é correio fantasma, mas eu disse que não conhecia nenhuma entidade paranormal capaz de fazer isso. Poderia até ser um espírito entediado, sugeri que magia pode descobrir o remetente; se ela quisesse, eu poderia ajudar...

— Claro, magia é sua especialidade, né? – soltou um risinho cínico, debochando do irmão mais velho. Levantou os ombros, mordendo o sanduíche – E a história é boa?

— Ela não me disse. Só falou que não acaba...

— Minha teoria é que é tipo um filme de terror: na última carta, ela vai descobrir que vai morrer igual à protagonista da história! Ou talvez algo menos trágico... As cartas são um paralelo entre ela e o futuro, como uma espécie de aviso... Quem sabe o remetente não é a própria Mônica do futuro?! É isso que eu teria dito a ela, mas ela nunca me perguntou.

— Não? Que bom, porque sua teoria é péssima. Duvido que algum espírito ou a Mônica do futuro queira mandar cartas metafóricas. Conhecendo o destinatário, a dona da rua ia entender melhor mensagens mais curtas e diretas, como um telegrama... Além do mais, cartas? Acha que vai continuar isso?

— Seria bem estranho o romance de folhetim parar no primeiro capítulo, não? Seria improvável, apesar de não impossível. Vai saber do quanto querem inovar...

Um silêncio os cobria naquele momento.

— Então, me diz aí... Qual é o plano infalível?

— Pergunta pro Cebola ou espera a última carta. – deu de ombros e foi para o quarto.