1000 Alices

Capítulo 1 – Coelho.


Soltei minhas malas pesadamente, deixando-as cair no gramado, e olhei para a casa em que minha avó morava, antes de desaparecer. Há exatas duas semanas, a idosa sumira, sem deixar rastros. Os vizinhos não a haviam visto, a enfermeira que morava junto dela também não, e depois de investigar por algum tempo, a polícia resolveu concentrar seus esforços em casos “mais importantes”. Segundo eles, as chances de uma mulher daquela idade estar viva depois de alguns dias na rua eram improváveis.

Minha avó pode nunca ter sido uma pessoa muito sã, mas eu a amava do fundo do coração e, por isso, decidi visitar sua casa mais uma vez antes que minha família resolvesse vendê-la ou algo assim. Acreditava que, ficando ali, me sentiria mais próxima dela uma última vez.

— Vamos lá — murmurei, destrancando a porta e entrando.

Olhei para a sala, tudo era exatamente como me lembrava: a parede com os relógios, a estante com coelhos de pelúcia e coroas vermelhas, o tapete com estampa de zebra, a poltrona vermelha, a janela branca que dava visão da floresta que ficava nos fundos. Tudo nos mesmos lugares. Exceto, talvez, por uma mesa marrom que nunca vira antes. Sobre ela, um envelope. Numa belíssima letra cursiva estava escrito “para Hilary”. Reconheceria aquela letra em qualquer lugar, era de minha avó. Eu sempre invejara o traçado impecável, a letra enfeitada e cheia de curvas.

Como ela saberia que eu iria para ali? Era possível ela me conhecer tão bem, mesmo nunca tendo se importado comigo? Todas as vezes que eu a visitava, ela me tratava com hostilidade e se trancava no quarto. Mesmo assim, eu voltava todos os fins de semana. Por algum motivo, gostava muito daquela velha ranzinza. E sabia que seria a única a chorar em seu velório. Se é que teria um.

“Cara Hilary,

Nunca fui a melhor avó do mundo, sequer fui uma boa pessoa, mas sinto que agora é a hora de mudar isso. Quero te salvar do mesmo destino que eu, então, por favor, nunca siga o Coelho, nunca vá para além da Toca.

Eu voltara ao País das Maravilhas regularmente, desde que caí lá pela primeira vez, para visitar todos que um dia me elegeram como sua rainha. Eu amava aquele lugar, com todas as minhas forças, e estava disposta a me mudar para lá definitivamente no meu vigésimo quinto aniversário. Estava tudo preparado para minha mudança: minhas malas estavam feitas e eu já havia inventado uma desculpa convincente para justificar minha ausência nos próximos natais. Mas, por algum motivo, quando eu fui procurar a passagem lá, a toca do coelho havia sido tapada com terra, tão escura quando o céu noturno. Eu escavei por dias, tentado reabrir aquela toca, que me levaria para o meu lugar, onde havia pessoas como eu, pessoas que me entendiam, meus amigos. Mas nada. Não havia nada ali, além de terra, terra e mais terra.

Todos já me achavam louca, mas a partir daquele dia, minha condição se tornava cada vez mais degradante. Pensaram até mesmo em me internar por esquizofrenia. O País das Maravilhas era como uma droga: a partir do momento que você usufrui dele uma vez, se torna dependente daquele lugar. Então, eu havia me tornado uma drogada e não podia vender meus móveis e roubar carros para satisfazer minha dependência. Não havia nada que pudesse ser feito para reaver a fonte do meu vício. Eu ficaria numa abstinência eterna. Precisaria aprender a conviver com isso.

Um dia, quando eu estava sozinha, sentada na sala, apreciando minha parede cheia de relógios, de analógicos a digitais, o Coelho Branco me fez uma visita. Nunca mais tinha visto aquele velho coelho desde que a passagem se fechou. Mas ainda me lembrava de seus olhos vermelhos e apressados, que nunca se mantinham fixos num mesmo lugar por muito tempo, suas roupas estranhas e suas longas orelhas. Ele ficou parado no canto da sala, me olhando, sem dizer nada, por muito tempo. Em seguida, correu porta afora.

Às vezes, me perguntava se aquela visita realmente acontecera. No fim das contas, não importava de fato, afinal, eu era somente mais uma. A única Alice que realmente se chamava Alice.

Com amor,
Vovó.”

A carta era simplesmente insana. Coelhos? Tocas? País das Maravilhas? Do que diabos ela estava falando? Um soluço ficou preso na minha garganta. Até tentei imaginar o que ela sofreu sua vida toda, acreditando que aquele lugar era real, que ela era a rainha deles e que existia um coelho “mágico”. Mas era uma realidade muito distante.

— Droga! — grunhiu alguém, com uma voz infantil. — Estou atrasado! Muito atrasado!

Olhei em direção à porta, instintivamente, bem a tempo de ver um flash branco passar correndo. Qual era a probabilidade de ter mais alguém ali? Pouca, levando em conta que minha avó não era de muitas amizades. A menos que fosse uma dessas crianças baderneiras. Corri para fora o mais rápido que pude, tentando pegar o “intruso”. Eu corria rápido, mas aquele pequeno flash branco conseguia me superar.

Quando ele entrou na floresta, só o que fiz foi continuar correndo. Era difícil, levando em conta as raízes, galhos e outras coisas que ficavam pelo chão. Mas continuei, torcendo para que meus tornozelos não resolvessem torcer.

Então, ali estava eu: uma pessoa de vinte e três anos, correndo atrás de algo que eu nem sabia bem o que era. O que eu temia aconteceu, torci meu tornozelo e caí no chão, batendo com a cabeça. Dois olhos avermelhados entraram na minha visão turva.

— Quem é você? — perguntei.

— Essa é uma pergunta complexa — respondeu o Coelho, tirando um relógio do bolso. — Preciso ir, estou atrasado!

O Coelho se jogou dentro de um buraco mediano e eu me atirei atrás dele, tentando agarrá-lo. Mas a toca não possuía chão, somente um buraco que parecia não ter fim. A última coisa de que lembro é do som do vento nos meus ouvidos e das patas velozes do coelho correndo para longe.