Adele
VI. Pianos e cartolas
Nunca em 25 anos, meus dias seriam tão agitados quanto estavam sendo em novembro. Eu encontrar-me-ia com o senhor Banks dentro de poucos dias, na penúltima semana de dezembro teríamos o baile natalino e logo após eu estaria liberada para visitar minhas madrinhas em Avignon. Lilian e Thierry casar-se-iam à altura da segunda semana do mês de maio e poucos dias depois eu completaria 26 anos. Este era o plano que eu pretendia seguir, ao menos.
O meio de novembro me foi marcado com uma sessão de leitura e música com Thierry. Por mais que eu me impelisse meu coração a controlar seus sentimentos cada “bom dia” e a cada mínimo sorriso de Thierry meu coração falhava uma batida. Até o momento em que eu me censurasse, a sensação era até boa.
É incrível – penso eu hoje, já velha – como passamos anos em companhia e sentimento neutro por certa pessoa e, após tanto tempo desenvolver algo a mais. Francamente, se houvesse escolha, eu arrancaria meu coração e faria o favor de jogá-lo na sarjeta e deixar os cavalos e carruagens o pisotearem.
Enfim. Quanto à sessão, Thierry convocou-a logo após o almoço, mesmo sabendo que eu estaria. Ele me pegou de surpresa enquanto eu lavava a barra de um dos vestidos de sua irmã.
— Adele? — chamou ele, fazendo-me derrubar a barra de sabão num sobressalto. Thierry veio logo a meu lado em amparo. — Oh, perdoe-me.
— Cristo, assustastes-me, senhor — comentei, em meio a risadas. — Está tudo bem, o susto já me passou. O que o senhor deseja?
— Acaso estais ocupada?
— Oh, não. Só mais esse vestido e já encerrarei a lavagem. E após isso, terei cerca de meia-hora antes das trocas de roupas anteriores ao jantar.
— Devo entender isso como um estou ocupada? — ele riu.
— Um pouco, sim. Prefere esperar aqui, senhor?
— Se não for incômodo, é claro.
Sorri discretamente e voltei a esfregar a barra. Minhas mãos ardiam e Thierry permanecia ao meu lado. Incapaz de ficar quieto, comentou:
— Suas mãos são tão contrárias as das mulheres da sociedade. Tão cheias de calos e ásperas. A soda cáustica desses sabonetes são horríveis, eu não desejaria isso a ninguém. Eu sinto muito que tenha de passar por isso.
— É o meu trabalho, senhor — dei de ombros. — Eu também adoraria deveras ter nascido em família abastada, mas já que o destino quis assim, que seja do melhor jeito.
— Tens um modo adorável de ver o mundo, Adele. Seu nome significa nobreza, estou correto?
Corei com o elogio e me permiti sorrir por um instante. Analisei a barra do vestido e concluí estar limpo o suficiente para ir ao enxágue.
— Sim, senhor, está. As freiras foram gentis e cruéis simultaneamente ao me escolherem este nome.
— A nobreza, afinal, não se encontra apenas nas posses — ponderou Thierry. — O bom caráter é a mais nobre das qualidades humanas.
Assenti com a cabeça e novamente meu coração se encheu de orgulho.
— Se me permite dizer, senhor, eu sou da opinião de que vosmecê será um homem incrível no futuro.
Thierry soltou um risinho envergonhado e desviou o olhar, assim como eu. Terminei de torcer o vestido e apontei com a cabeça para Thierry me seguir. Caminhamos para a área externa da lavanderia, onde ele pendurou o vestido para mim, vendo que eu tinha de subir num banquinho de madeira para alcançar os varais. E é claro que ele fez isso em tom de brincadeira. Logo após isso, nos voltamos para dentro da Casa Chevalier, onde ele me conduziu para a biblioteca.
— Já lhe apresentei à gramática, à matemática e até mesmo à física, como bem descobri — ele me lançou um olhar travesso. — Mas hoje eu gostaria de lhe apresentar às minhas duas paixões, como se nunca houvesse as visto, a literatura e a música. Sente-se, Adele, por favor.
Sentei-me à mesinha de centro enquanto observava Thierry correr os dedos apaixonadamente pela estante, os cabelos loiros contrastando com o ébano da madeira. O sorriso lhe adornava o rosto como a uma guirlanda adornava os Natais, cheio de graça e simplicidade. Em alguns segundos, foi até mim com alguns exemplares empilhados e colocou-os em cima da mesa. Sentou-se a meu lado, inspecionando o ambiente e o lado externo antes de fazê-lo.
— O primeiro é este — separou o maior volume. Li o título: O Conde de Monte Cristo. — Ele é grande, mas a história me encanta todas as vezes. É deveras intrigante.
— Acaso o senhor o leu mais de uma vez? — espantei-me.
— Oh, sim, três vezes ao total — ele sorriu. E então passou para o segundo livro, um pouco menor e, no entanto, ainda grande. Anna Karenina. — Este aqui gerou polêmicas quando lançado, por tratar de adultério.
— Adultério! — exclamei, colocando uma das mãos sobre a boca.
— Ainda tem outro, de nome Madame Bovary, mas creio que este fique reservado para depois de seu casamento — Thierry deu um risinho envergonhado. Pegou o terceiro exemplar e leu em voz alta: — Um Conto de Natal. Pode lhe dar breves sustos, mas o sr. Dickens entra em minha lista de soberanos literários.
Assenti com a cabeça e peguei o último da pilha. Inspecionei-o e achei o título meigo.
— Alice no País das Maravilhas? De que se trata?
— Este é meu preferido. É sobre uma menina que cai numa toca de coelho e vai parar em um outro mundo repleto de fantasia e perigos.
— Interessante. Será o primeiro que lerei. E o do sr. Dickens — virei-me para ele, apreensiva. — Senhor, eu poderia levá-lo para Avignon, para lê-lo no Natal?
— É claro! Vosmecê é a pessoa mais cuidadosa que conheço, Adele, é claro que pode. Contanto que me diga se gostou ou não... e o porquê.
Meu coração se encheu de alegria. Levei Alice ao coração e nós agradecemos com o olhar. Eu, pela consideração, e ele, pela atenção. Era adorável ouvir Thierry comentar com empolgação acerca dos assuntos os quais amava. Eram partes fragmentadas dele, afinal.
Thierry levantou-se de supetão e me conduziu pela mão até o piano. Sentei-me junto a ele e esperei.
— Hoje será uma fácil. — Thierry colocou minhas mãos, ásperas e indevidas, sobre o piano e as suas por cima das minhas. Aquela melodia eu já conhecia, mas íamos em ritmo deveras mais lento. Fomos até seu primeiro minuto, que deve ter demorado cinco, e finalizamos por nos olharmos e rirmos.
— Isso foi divertido. Muito obrigada, senhor.
— Não há de quê, Adele — e então seu semblante tornou-se entristecido. — Eu espero que Lilian ainda a queira aqui após o casamento. Teimosa como é, creio que dispensará camareiras.
Assenti com a cabeça e mordi o lábio inferior. Não podia dizer ainda da nova proposta de emprego, até mesmo porque nada estava acertado, mas este também era meu desejo. Fitei minhas próprias mãos e coloquei-as em meu colo, me afastando alguns centímetros.
— Do futuro, não sabemos — consolou-me ele. — Sempre estaremos juntos de uma maneira ou outra, não é?
— É verdade, senhor — levantei-me e fiz uma mesura improvisada. — Se me der licença, eu tenho que... cumprir com os meus deveres. Começarei Alice hoje mesmo. Os outros nomes estão marcados em minha memória, sim?
— Tudo bem, Adele. Tenha um bom trabalho.
Agradeci com um meio-sorriso e meu coração palpitando me retirei dali.
x-x-x-x-x
O dia vinte e três não tardou a chegar, e com ele o nervosismo do encontro com alguém que eu não conhecia, apenas por carta. Eu não fazia ideia de que tipo de pessoa o sr. Banks era, contudo, tratei de arrumar-me bem – na medida do possível – para causar-lhe boa impressão. Eu também esperava que a carta não houvesse sido extraviada. De qualquer maneira, lá estávamos Remy e eu, novamente à cidade.
— Tens certeza de que não estou a abusar de sua gentileza, Remy? — certifiquei-me antes de sairmos.
— Este é meu serviço, mademoiselle — sorriu ele, me ajudando a subir na carruagem. — E, além do mais, você não incomoda a uma mosca, Adele.
— As moscas que mato no jardim discordam desta afirmação — ri suavemente. — Quiçá até planejam uma vendetta*. Bem, sendo assim, fico despreocupada.
O caminho até a cidade foi novamente previsível. Desta vez, preferi encostar a cabeça em minha mão e ir de olhos fechados por todo o trajeto. Eu sentia gotículas de suor começarem a manchar o envelope de carta, mas preferi ignorar.
A Catedral de Montpellier permanecia majestosa como eu lembrava desde os dezoito anos. Vê-la provocou aperto em meu coração de saudades da Irmã Josephine. Josephine D’Mathieu, minha mãezinha. Ela, as outras três freiras e Melina. Um acervo completo de cinco mães na ausência de uma biológica. Sorri ironicamente com o comentário.
Remy parou a carruagem bem em frente à Catedral, abriu a portinhola e ajudou-me a descer. Disse a ele que demoraria no mais tardar uma hora e que, se ele quisesse passear pelo centro da cidade, estaria livre. Ele assentiu com uma breve mesura e murmurou um tome cuidado.
Circundei a Catedral em busca de uma pessoa que se assemelhasse com um inventor. Encontrei duas senhoras alimentando pombos, uma freira que mandou lembranças à Irmã Josephine, e um floricultor. Balancei a cabeça e a circundei uma vez mais, desta vez prestando atenção.
Céus, eu nunca havia visto um inventor. Que aparência um deveria ter?
Na terceira volta – e aquela Catedral era imensa – a mesma freira que mandara lembranças à Irmã abordou-me.
— Está perdida, minha querida? — e colocou a mão em meu ombro, solidária.
— Ah, irmã, eu não sei lhe dizer. Marquei encontro com um jovem inventor, mas... sequer sei qual é sua aparência, está sendo uma tarefa árdua.
— Ora, que estranho... há pouco tempo um jovem perguntou-me se eu não conhecia alguma Adele. Eu disse que sim, mas que não a via há alguns anos, e desde então ele vem fazendo a mesma coisa que vosmecê.
— Está circundando a Catedral? — abafei um riso, e depois assumi uma expressão séria. — Céus, e se desistiu?
— Tenho certeza de que não, meu bem. Aliás, é seu dia de sorte — ela virou-se para trás e acenou com a cabeça, indicando uma figura engraçada se aproximando. — Aí vem ele. Deixarei vocês a sós.
Agradeci com a cabeça e novamente o nervosismo tomou conta de mim. A figura que se aproximava trazia um papel em mãos – creio eu que também fosse a minha carta – e com a outra ajeitava a cartola que, a medida que andava, insistia em fugir de sua cabeça. Os cabelos castanhos eram em corte bem rente e os olhos azul-acinzentado. O mais curioso eram as orelhas, que descobri mais tarde denominarem-se élficas. Trajava uma roupa estranha – paletó marrom, camisa surrada branca, esta escapava de uma calça social azul. Sapatos pretos e cachecol roxo. Céus, que poluição visual.
Arrumei minha postura e assumi meu melhor sorriso, dei um passo para frente e o cumprimentei polidamente.
— Olá, senhor. Boa tarde.
Ele se interrompeu e me lançou um olhar curioso.
— Sinto-me lisonjeado, milady, mas no momento estou à procura de outro alguém. Agradeço o interesse. Se me dá licença.
Harvey fez que iria sair, mas eu fui para o mesmo canto. Mesmo sendo consideravelmente menor em estatura, meu corpo era mais forte.
— Sim, eu sei — e novamente sorri, desta vez com menos afeição. Mostrei-lhe a carta e o assombro tomou conta de seu rosto. — Já é a terceira vez hoje que o procuro, senhor.
— Céus! — ele retirou sua cartola e senti-me vitoriosa ao contemplar o rubor preencher suas faces. — Perdoe-me deveras, senhorita. Eu... não imaginava que tivesse essa aparência. Irmã Josephine não me disse que era tão... — e então ele pigarreou. Ergui uma sobrancelha. — Perdoe-me novamente, senhorita.
— Pode chamar-me Adele. E eu também não esperava que tivesse a sua aparência — cruzei os braços.
— Adele — repetiu ele. — Isto é algo ruim?
— Não, de maneira alguma. Bem... sem mais delongas, conheço um lugar onde podemos conversar sem ser interrompidos. Podemos ir?
Ele assentiu com a cabeça, ainda atordoado. Ofereceu-me o braço, que aceitei com um sorriso maldoso. Lancei um olhar para a freira que me ajudara, numa mescla de agradecimento e constrangimento, que me foi devolvido com um que não soube assimilar.
A tarde seria longa.
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